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Escapar à violência doméstica para enfrentar a violência judicial?

A perda dos direitos de parentalidade não pode continuar a ser mais um dos medos que impede as mulheres de se libertarem de relações abusivas.

Na primeira semana do ano, o Tribunal de Cascais começou a julgar um homem por crimes de violência doméstica contra a ex-companheira. Este caso chegou à comunicação, não apenas como mais uma ilustração da violência de género que continua a agredir e a matar as mulheres em Portugal, mas como um exemplo do mau funcionamento da justiça no que se refere à proteção devida às mulheres que têm a coragem de denunciar os seus agressores. É inadmissível que no processo de regulação das responsabilidades parentais tenha sido atribuída ao pai a guarda provisória das filhas de ambos, dado a denúncia do crime de violência ter levado o tribunal a ordenar a colocação de pulseira eletrónica para que o agressor, agora em julgamento, não se aproxime da vítima. A pulseira eletrónica é uma alternativa à prisão preventiva do agressor mas não pode ser um livre trânsito para continuar a vitimizar as mulheres.

A violência doméstica é crime público, porque nós, enquanto sociedade, não aceitamos que a violência em relações de intimidade perpetue as desigualdades de poder entre mulheres e homens e exigimos a punição dos agressores. As associações de mulheres têm tido um papel fundamental na denúncia das violências machistas e têm produzido documentos que alertam para a importância dos Tribunais de Família acautelarem as situações de violência doméstica nas suas decisões.

A Associação Portuguesa de Mulheres Juristas – APMJ disponibiliza online vários documentos, incluindo um Guia de Boas Práticas, sobre os processos de regulação das responsabilidades parentais no âmbito da violência na família, onde diz claramente que a “violência na família constitui o reflexo da estrutura e da ideologia das sociedades patriarcais que definem um papel subordinado da mulher e um processo de socialização que perpetua a aceitação desse papel.” O guia vai ainda mais longe ao reconhecer que tal como socialmente não aceitamos a violência, como uma forma de gestão de conflitos, não podemos aceitar a violência como uma forma de resolução de disputas familiares.

Clara Sottomayor, Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça e autora de livros e de artigos em Direito da Família e das Crianças entre outros temas do direito, defendeu, num artigo publicado na página do Movimento Justiça e Democracia, que o facto de a lei permitir aos juízes e às juízas decretar o exercício exclusivo das responsabilidades parentais, quando o exercício conjunto seja contrário ao interesse da criança, não é suficiente e que teria sido importante “que a lei afirmasse, como excepções ao exercício conjunto, as famílias com história de violência doméstica e aquelas em que existe um elevado grau de conflitualidade.”

No âmbito da psicologia, os estudos feitos sobre a violência doméstica sobre a mulher alertam também para a importância dos Tribunais de Família acautelarem as situações de violência doméstica nas suas decisões. Ana Sani, Doutorada em Psicologia da Justiça pela Universidade do Minho, no artigo intitulado Mulher e Mãe no contexto de Violência Doméstica, citou um “relatório que resultou de uma revisão aprofundada da literatura nas áreas de violência familiar, custódia e disputa de acesso à criança e, ainda, de divórcios de alto conflito sugerem que nos casos em que exista violência familiar, pode ser apropriado para um progenitor ter mais limitado, controlado, ou mesmo nenhum contacto com a criança, devido aos potenciais riscos que a situação representa para esta e para o progenitor não ofensor. (…) [A]s dinâmicas impostas pela violência doméstica contrariam os princípios fundamentais da igualdade, respeito mútuo e confiança impossibilitando um exercício pleno da parentalidade partilhada ou da co-parentalidade.”

No interesse das crianças, no interesse das mulheres e na defesa de uma sociedade justa e da igualdade de género é imperativo desconstruir os mitos, como o de que é possível bater na mulher e ser um bom pai ou de que entre marido e mulher não se mete colher. A violência contra as mulheres é uma agressão a toda à sociedade e ao Estado de direito em que escolhemos viver. Cabe aos Tribunais de Família estar atentos à realidade e não permitir que os agressores sejam o adulto de referência para as crianças.

Este problema não é apenas um problema de falta de coordenação entre Tribunais ou de formação dos juízes e das juízas dos Tribunais de Família. A Convenção de Istambul obriga os Estados a assegurarem que as formas de violência abrangidas pela Convenção sejam tidas em conta na tomada de decisões relativas à guarda das crianças e sobre o direito de visita das mesmas, assim como que o exercício de um qualquer direito de visita ou de um qualquer direito de guarda não prejudique os direitos e a segurança da vítima ou das crianças. O Estado tem de agir para prevenir decisões como a do Tribunal de Cascais. A perda dos direitos de parentalidade não pode continuar a ser mais um dos medos que impede as mulheres de se libertarem de relações abusivas. As mulheres que escapam à violência doméstica não podem ficar reféns da violência judicial.

Sobre o/a autor(a)

Licenciada em Relações Internacionais. Ativista social. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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