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O direito de dizer não ao sofrimento

Em nome de quê e por decisão de quem pode ser desrespeitada a vontade livre e conscientemente afirmada de uma pessoa que não quer continuar a suportar o doloroso e arrastado sofrimento a que a doença a condena na fase final da vida?

Poderia alguém, que não um médico ou profissional de saúde, escrever o texto sobre Eutanásia publicado na edição de 10 de dezembro da revista Sábado? Talvez, mas julgo que seria muito improvável. Aquela “confissão”, não se tratando de ficção literária, tem a “marca” de uma bata branca. Porquê? Pela proximidade ao sofrimento, pela convivência multiplicada vezes sem conta com a dor e a morte, pela frustração tantas vezes repetida de querer mas não poder tratar e curar ou tão simplesmente ajudar a aliviar o martírio, realidades que marcam o dia a dia dos hospitais, lares ou asilos deste país mas que estão muito para além da vivência pessoal do cidadão comum.

A grande maioria das pessoas foge da morte a sete pés – no duplo sentido de não querer morrer nem tão pouco pensar nisso – seja da sua própria morte ou da morte dos que constituem o seu pequeno mundo de relações e afetos. Ao contrário, os médicos, os enfermeiros, enfim todos aqueles que fazem de tratar da saúde dos outros a sua profissão, são companhia frequente – quantas vezes única – nos momentos trágicos e atormentados do fim de vida dos seus doentes.

Não admira, pois, que essa experiência intensa e dramática se traduza em narrativas tão impressivas como a que lemos na revista Sábado. Fala da morte quem a conhece, escreve sobre a dor quem a trata, conta-nos o sofrimento quem dele está perto. Não vejo melhor forma de chegar à verdade sobre o fim de vida de tantos e tantos seres humanos.

E é de verdade que este debate deve ser feito. De verdade, sim, não de preconceitos redutores, princípios arbitrários, imposições unilaterias ou generalizações abusivas. Quanto mais difícil é o debate mais verdade ele nos exige. Escrevo estas linhas em obediência a essa exigência.

O fim de vida é muitas vezes o período mais doloroso de toda uma vida, dor e sofrimento que só mesmo a morte consegue interromper. Há quem sofra muito, mesmo muito, antes de morrer. E, no entanto, é um sofrimento absolutamente inútil e gratuito pois dele não resulta qualquer melhoria, qualquer evolução, são situações sem qualquer expectativa que não a morte.

Os progressos da medicina são fantásticos, sem dúvida. Sei muito bem disso. Mas, até hoje, não conseguem eliminar completamente e em todas as circunstâncias quer a dor física quer o sofrimento psicológico e, muito menos, travar a degradação própria da fase final, sobretudo em certas doenças. O progresso dos cuidados paliativos não é negligenciável mas devemos reconhecer que, nas fases mais adiantadas, o melhor que conseguem é remeter a pessoa para um estado de inconsciência e incapacidade geral que nada tem a ver com a pessoa tal como ela foi durante a sua vida. Há um corpo, sim, mas já não há pessoa, em boa verdade.

E se já hoje temos o direito a recusar este ou aquele tratamento ou exame, seja qual for a razão invocada para essa recusa, não é aceitável que esse direito nos seja retirado quando a vida se aproxima do seu fim e nada mais dela temos a esperar que não seja mais dor, mais sofrimento e mais agonia. Em nome de quê e por decisão de quem pode ser desrespeitada a vontade livre e conscientemente afirmada de uma pessoa que não quer continuar a suportar o doloroso e arrastado sofrimento a que a doença a condena na fase final da vida? Se, para acabar com o sofrimento não há qualquer outra alternativa que não seja interromper a vida, quem tem legitimidade de impedir que alguém o faça ou peça que o façam, se for essa a sua decisão livre, informada e consciente? Em nome de quê se pode obrigar uma pessoa a suportar um sofrimento terrível, uma agonia martirizada, de que só a morte a pode libertar?

Respondem-nos que a vida é um bem absoluto – divino ou supremo, na linguagem de outros. Mas, para todos, um direito absolutamente intocável, protegido por uma ética superior que se sobrepõe à vontade da própria pessoa, uma moral possuída de uma legitimidade que transcende e se impõe à consciência e individualidade de cada um.

Se a vida é um direito do indivíduo – e não tenho qualquer dúvida sobre isso – então cada indivíduo, e só ele, pode decidir sobre a sua própria vida. Se assim não for, se admitirmos que o exercício desse direito pode ser definido por outros, com critérios decididos por outros que não o próprio, então, o direito à vida deixa de ser um direito individual e transfigura-se num dever geral e universal, um direito esvaziado por força desta ética da obrigação.

Por mim, defendo uma ética da liberdade, porque só ela permite que seja cada um a fazer as escolhas que a sua vontade e consciência ditam, tanto na vida como na morte. Quero poder dizer não ao sofrimento. Eu e todos que o desejem.

Artigo publicado na revista Sábado, solicitado como reação ao testemunho inédito de um médico português que admitiu ter praticado eutanásia, publicado na edição daquela revista no passado dia 10 de Dezembro.

Sobre o/a autor(a)

Médico. Aderente do Bloco de Esquerda.
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