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Nota sobre “Game of Thrones”: os violadores não são heróis

No final da temporada, é nos novamente pedido que fiquemos do lado do homem que exerce violência em vez de nos solidarizarmos com a sua vítima do sexo feminino. Por Sady Doyle, In These Times.
Na foto: A personagem Tyrion Lannister (Peter Dinklage).

Mas, quer se censure a adaptação para televisão ou o texto original, o problema com a violência sexualizada de Game of Thrones não é apenas o facto de ela existir ou mesmo de existir em grande quantidade. A questão é que a própria história funciona muitas vezes de modo a racionalizar ou a justificar essa violência.

Domingo à noite [15/06/2014], os espetadores de Game of Thrones assistiram a uma cena em que um homem estrangulou a sua ex-namorada por esta ter ferido os seus sentimentos. O homem em questão é Tyrion Lannister (Peter Dinklage), um dos poucos personagens que a série sempre nos encorajou a apoiar sem ambiguidades; a mulher era Shae (Sibel Kekilli), uma prostituta que ele tinha contratado em exclusivo na primeira temporada da série. Houve grande cobertura da cena, incluindo entrevistas exclusivas com os actores, showrunners e com o autor de A Song of Ice and Fire, George R. R. Martin que escreveu a cena, focando nas motivações de Tyrion e o que isto significa para a sua personagem.

Mas, em tudo isso, ninguém parece ter vontade de chamar à cena aquilo que ela é: um ato de abuso contra a parceira. E isso é devido a um exercício narrativo muito complicado e muto perigoso, em nome dos produtores e de George R. R. Martin. Enquanto espetadores, não só nos é pedido que racionalizemos a escolha de Tyrion para maltratar fisicamente a sua parceira, como nos é pedido que acreditemos que ele o fez por “amor”.

No contexto do filme, a morte de Shae não é nem especialmente violenta nem especialmente chocante. Afinal de contas, esta é uma série que se delicia em exterminar personagens principais e o modo como ela é morta não aparece como particularmente sangrenta num filme em que vimos pessoas serem espancadas, castradas e queimadas vivas. (Uma importante cena de acção desta temporada mostrava um homem a rebentar o crâneo do seu opositor como se fosse uma melancia num espectáculo de Gallagher. Depois disso, matar alguém por asfixia parece até muito correto. Mesmo assim, a política de género da cena surge como particularmente repugnante depois de um exame mais próximo e o facto de a maior parte das críticas a terem ignorado diz algo ainda mais repugnante acerca do efeito que Game of Thrones tem na adesão do seu público.

A série já esteve este ano debaixo de fogo por causa do seu sexismo, especialmente em relação a uma cena de violação clara em que a rainha má Cersei Lannister (Lena Headey) é violada pelo seu amante Jaime (Nickolaj Coster-Waldau), supostamente um bom coração. Alguns foram rápidos em condenar a série por exceder os livros; Sonia Saraiya referiu que o filme tinha uma tendência para introduzir cenas de violência contra mulheres onde elas não existiam no texto original.

Cersey e Jaime Lannister

Outros críticos, nos quais me incluo, assinalaram que a tendência de Game of Thrones para usar violência gratuita contra as mulheres está omnipresente quer na série de George R.R. Martin quer no escrito original. Por exemplo, enquanto alguns adeptos argumentaram que a cena de violação clara da rainha-no-exílio Daenerys (Emilia Clarke) e o agora-morto Khal Drogo (Jason Momoa) da série televisiva começou como um encontro ambiguamente “consensual” entre as duas personagens nos livros, outros defendiam que simplesmente condensava o cronograma existente do livro, onde, após uma noite de núpcias “consensual” (se é que se pode chamar “consensual” a uma cena de sexo entre uma rapariguinha e um homem adulto a quem ela fora vendida, o que claramente não se pode) Drogo começa rotineiramente a violar Daenerys até que ela exibe a sua habilidade sexual a tal ponto que ele começa a tratá-la bem. Não só a mensagem deste enredo é espectacularmente retrógrada em ambas as versões – minhas senhoras, se querem que o vosso marido deixe de abusar de vós, tratem de ser mesmo boas a dar-lhe orgasmos! – como é provavelmente menos ofensiva na versão da televisão. Além do mais, no filme o papel de Daenerys é feito por uma atriz adulta e não somos forçados (como acontece nos livros) a confrontar-nos com o facto de que um homem adulto escolheu escrever com um erotismo palpável e visível sobre os mamilos “rígidos” e “doridos” e a copiosa “humidade” vaginal de uma criança de 13 anos.

Mas, quer se censure a adaptação para televisão ou o texto original, o problema com a violência sexualizada de Game of Thrones não é apenas o facto de ela existir ou mesmo de existir em grande quantidade. A questão é que a própria história funciona muitas vezes de modo a racionalizar ou a justificar essa violência. A violação de Daenery não é inerentemente problemática; no entanto, uma narrativa sobre violação conjugal que aparece como verdadeiro amor é um enorme problema porque justifica intrinsecamente o abuso de mulheres e meninas. Igualmente, a questão com a morte de Shae não é simplesmente o ela morrer; é a mensagem que é dada com o seu homicídio.

Daenerys Targaryen e Khal Drogo.

De algum modo, a cena é apresentada como um assassinato de vingança pago pela mesma moeda. Shae passou grande parte da série a trabalhar como prostituta pessoal de Tyrion. Depois de Tyrion a despedir, Shae dá um falso testemunho contra ele num julgamento manipulado de modo a acusá-lo da morte do seu sobrinho King Joffrey (Jack Gleeson). Por fim, quando Tyrion foge da prisão, descobre que Shae tem estado a dormir com o seu pai, Tywin Lannister (Charles Dance), que foi responsável por manipular o julgamento. Somos encorajados a acreditar que Shae deu o testemunho por vingança e mesmo que ela tinha vontade de matar Tyrion: quando ele a apanha no quarto de Tywin, ela agarra numa faca (detalhe que não existe no livro) o que para muitos espetadores os levou a pensar que ele agiu em auto-defesa. Shae “trai” Tyrion; Shae alia-se aos inimigos de Tyrion; Shae ameaça a vida de Tyrion, quer com o testemunho quer com a faca. Por isso, Shae tem de morrer. É simples, não é?

Não, não é. Quanto mais se olha para essa linha de argumentação, menos sentido ela faz. Para começar, Shae não era namorada de Tyrion, era empregada dele. Ela começou a ter sexo com ele quando ele lhe começou a pagar, e parou quando ele deixou de lhe pagar. O filme sugere que se desenvolve um genuino afeto por parte de Shae, mas o facto é que parecer carinhosa com Tyrion fazia parte do trabalho de Shae e o dinheiro nunca deixou de circular. Sugerir que Tyrion tinha o direito a continuar a receber alguma forma de lealdade por parte de Shae é um total equívoco na relação trabalhador(a) do sexo/cliente. Por isso, julgar Shae por fazer sexo com o inimigo de Tyrion, quando a sua profissão é ter sexo com pessoas, também é um disparate; é o equivalente a dizer que um trabalhador despedido é uma má pessoa por arranjar trabalho numa empresa concorrente. E por fim, há o facto de que Shae foi mantida cativa por Tywin antes do julgamento e muito provavelmente teria sido torturada ou executada se recusasse sexo, testemunho contra Tyrion ou ambos. Essencialmente, trata-se de uma personagem que é morta pelo crime de não se ter suicidado.

E se a série tivesse intenção de lutar com as complexidades desse arco – se, por exemplo, tivesse centrado a narrativa na vida de Shae como mulher marginalizada e com a coerção que frequentemente suportava – eu podia até recomendá-lo. Mesmo se os autores tivessem apresentado a sua morte como resultado inevitável da misoginia da sociedade e dos sentimentos pessoais de Tyrion de se sentir com direito aos corpos das mulheres e à sua afeição, poderiam ter feito um aspecto digno de apreço. Mas não é o caso. A história do julgamento e o seu relacionamento permanecem inteiramente centrados nas emoções de Tyrion.

 Fundamentalmente, a morte de Shae não serve senão para sublinhar a mensagem de que devemos ter compaixão pelo assassino: ela é apresentada como uma ex, vingativa e não como vítima – mais um exemplo como o mundo é injusto com o pobre Tyrion Lannister. Numa rápida pesquisa no twitter encontramos dúzias de comentários do tipo: “Ela era de facto uma puta infiel”, “Estou tão desapontado com Shae” e “que se foda a puta”, o que confirma que os esforços do filme de afastar da vítima as simpatias dos espectadores e virá-las para o assassino estão a funcionar para muita gente.

E para acrescentar insulto à violência, espera-se que acreditemos que ele a ama. Ele aparece a chorar quando a estrangula; diz “desculpa” em cima do cadáver dela. Na cena logo a seguir, Tyrion enfrenta o pai, faz um solilóquio comovente acerca do seu amor por Shae e mata Tywin com uma besta por se referir a ela como “puta”. Surge como um acto heróico, uma defesa da honra de Shae e do seu valor como ser humano – o que é dizer que nos é pedido que aplaudamos um homem por “defender” uma mulher que espancou e estrangulou na cama por não gostar suficientemente dele.Isto não só é ridículo como torna a morte de Shae totalmente gratuita. Parece que ela morreu apenas para dar o ímpeto emocional para outro assassinato narrativamente mais significativo.

Nada disto é irrelevante. As mulheres são mortas pelos seus companheiros ou ex companheiros a um ritmo alarmante – 40% de todas as mulheres vítimas de assassinato no mundo, de facto, são mortas pelos homens com quem têm ou tiveram uma relação afectiva. E ainda há mais aquelas que são agredidas fisicamente por eles. Estas são as desculpas que ouvimos: que foi um crime passional, que foi ela que criou essa situação, que ela também o magoou, que ele não conseguiu deixar de o fazer. Que ele está “arrependido”. Que ele a amava. Em Game of Thrones, a narrativa funciona para que estas desculpas se colem a Tyrion. Assim, contribui activamente para a cultura de maus tratos com que as mulheres têm de viver ou… morrer.

Shae e Tyrion Lannister.

Demasiadas vezes, Game of Thrones pede-nos que desculpemos homens que cometem violência contra as mulheres. Acreditar que Jaime “ama” Cersei apesar de a ter violado, que Drogo “amava” Daenerys embora a tivesse violado repetidamente, que Tyrion “amava” Shae apesar da sua evidente crença de que ela não merecia viver se ele não obtivesse tudo o que queria da sua relação. Assim, o problema com Game of Thrones não é o mostrar actos misóginos. É não reconhecer a misoginia desses actos, antes ensinar os seus espetadores a partilhar essa visão perigosamente nublada.

Tradução de Almerinda Bento para esquerda.net.

Artigo de Sady Doyle foi publicado em In These Times.

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