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Diretora do Conservatório: “Desvalorização do ensino das artes é ato político intolerável”

Em entrevista ao esquerda.net, a Diretora da Escola de Música do Conservatório Nacional, Ana Mafalda Pernão, diz estar “cansada” com os múltiplos problemas com que se debate a escola que dirige há nove anos fruto dos cortes orçamentais impostos pelo Ministério da Educação.
Foto de Paulete Matos

 Ana Mafalda Pernão afirma que “é necessário combater a asfixia provocada pelo desenvolvimento de uma mentalidade tecnocrática onde não cabem pessoas capazes de questionar o modelo de sociedade que alguns pretendem impor.”

O orçamento destinado à escola que dirige sofreu este ano um corte de 43 por cento o que coloca em risco a continuidade das atividades letivas? Como é que se chegou até aqui?

Tenho consciência que os tempos que vivemos não são propícios à valorização da criação artística até porque há quem pense que o Estado- e nós somos uma escola pública- não deve ter a responsabilidade de financiar o ensino da música visto por muitos com supérfluo para o crescimento do país. Para estes é necessário criar “máquinas” passíveis de dar continuidade a um determinado tipo de pensamento que se vai alastrando a partir de setores ligados à finança, aos mercados, enfim a tudo aquilo que agora condiciona as nossas vidas.

Mas não acha que essas áreas de conhecimento não são são importantes?

Com certeza que sim, mas não podem ser as únicas. Tem de haver espaço para o ensino da música, do teatro, da dança, entre outras, que são de natureza artística e que são alvo de uma subvalorização intolerável.

Não têm valor de mercado?

Os tempos que vivemos não são propícios à valorização da criação artística

Pelo contrário. São indispensáveis para que o país possa progredir. Se as matarmos estamos a retroceder porque o ato de criar é inato ao ser humano. Por isso é que eu digo que, façam o que fizerem, as pessoas nunca deixarão de criar.

A Escola de Música tem sido notícia. Recentemente publicou no site da instituição uma carta onde faz um apelo aos pais, encarregados de educação e amigos para que estes apoiem a escola. Quando decidiu fazê-lo, já tinha esgotado todos os canais oficiais ou foi também uma forma de pressão sobre o Ministério da Educação?

Seria desejável para todos os que trabalham nesta escola que a mesma fosse notícia apenas pela qualidade do trabalho que fazemos. O problema é que atingimos um limite que não nos dava garantias de poder concluir o ano letivo realizando as ações que um estabelecimento com estas valências exige.

Qualificou a situação como “desesperada”.

Quando o orçamento é reduzido em 43 por cento, ou seja, 70 mil euros, é legítimo que nos questionemos sobre o que fazer. Nunca pensámos em desistir mas perante a ausência de respostas do Ministério, optámos por tentar minimizar o impacto desta situação recorrendo às pessoas que têm ou já tiveram uma ligação ao Conservatório. Porque a situação era de facto aflitiva.

E do lado do Ministério da Educação, teve apenas silêncio?

Não. Antes, respostas evasivas, pedidos de documentos a que se seguiam novas indicações de que era necessário mais um papel e andámos nisto desde meados de maio. O problema é que foi deduzido ao orçamento para este ano uma verba de cerca de 43 mil euros que foi aplicada na realização de obras de manutenção em salas onde os tetos já tinham começado a desabar e também no pátio interior da escola. Havia sérios riscos de colapso de partes do edifício.

Daí as manifestações de alunos e professores.

Foi preciso batalhar muito, chamar a atenção das autoridades competentes para a urgência desta intervenção. As manifestações foram uma forma de dizermos bem alto que estaremos até ao fim na defesa desta escola e do ensino da música. Foram muito importantes porque demonstraram que esta comunidade escolar está unida na defesa dos seus interesses e na evolução de um país que não se pode dar ao luxo de desprezar o ensino artístico.

Depois do apelo, foi desbloqueada uma verba de 35 mil euros, ou seja metade daquilo que consideram ser necessário para manter a escola a funcionar de forma regular. Porque é que o dinheiro só chegou agora?

Diretora da Escola de Música do Conservatório Nacional

Ana Mafalda Pernão, diretora da Escola de Música do Conservatório Nacional

Este valor representa apenas metade da verba que nos foi retirada em relação ao orçamento do ano anterior mas permite-nos respirar um pouco melhor porque conseguiremos sanar alguns compromissos de forma mais rápida. Em relação à segunda parte da sua pergunta não tenho uma resposta clara. Não sei se houve receios, mas conseguimos em dois dias aquilo porque lutávamos há cinco meses.

Respiram agora um pouco melhor o que significa que a intervenção ao nível das infraestruturas não foram mais do que remendos?

O Palácio dos Caetanos onde está instalada a EMCN é muito antigo e necessita de uma intervenção de fundo (a última aconteceu em 1946) o que implica que tenhamos de sair daqui durante um período que poderá ser de quatro anos. Mas esta situação não impedia que tivessem sido feitas obras mais profundas que evitassem, por exemplo, que haja novamente salas onde a água voltou a entrar após as primeiras chuvas do outono. Estancou-se apenas a agudização dos problemas porque são sempre escolhidos os orçamentos com o custo mais baixo.

Estamos outra vez a falar em desinvestimento

Ou contenção orçamental, que é aquilo que nos é dito.

E que implica uma gestão feita no “fio da navalha” porque há muitas pessoas que não sabem que esta escola não se dedica em exclusivo ao ensino da música.

A escola tem 960 alunos (com idades entre os 10 e os 18 anos) que se repartem entre o ensino básico e profissional. E temos também aulas de canto para alunos até aos 23 anos. Além disso, está aqui instalada uma parte do Conservatório da Escola de Dança que ocupa 25 por cento do espaço o que nos deixou sem um auditório. Temos portanto, necessidades específicas que o Ministério não quer entender e considera-nos uma escola igual às outras o que naturalmente nos causa problemas.

O que é que diferencia esta escola?

Não queremos estar acima de ninguém mas não temos, por exemplo, instrumentos que é preciso cuidar como os pianos que precisam de ser afinados ou a compra regular de palhetas. Por outro lado, há salas próprias para ensaios porque o ensino da música assim o exige. É portanto um ensino com especificidades muito próprias. Desta forma, precisamos que as autoridades competentes percebam isso.

E essas necessidades são ignoradas?

É lamentável que tenhamos de ser nós a financiar o Estado através do dinheiro que ganhamos com os espetáculos que os alunos dão um pouco por todo o país para arranjar verbas para o funcionamento da escola

Este tipo de ensino viveu sempre com problemas. É lamentável que tenhamos de ser nós a financiar o Estado através do dinheiro que ganhamos com os espetáculos que os alunos dão um pouco por todo o país para arranjar verbas para o funcionamento da escola. Isto não faz sentido até porque muitas vezes tiramos trabalho a músicos profissionais. É uma fonte de receita muito importante, mas não deixa de ser constrangedor.

O ensino da música é elitista?

Temos alunos com possibilidades económicas e outros que são pobres. A ideia que o ensino artístico é elitista é falsa. Gostaríamos de ter mais meios para, por exemplo, permitir que uma criança de 10 anos não tenha de comprar um instrumento musical e algum tempo depois perceba que afinal não é aquilo que quer para a sua educação musical. Nós fazemos um esforço para que nada falte aos nossos alunos mas por vezes somos alvo de muita incompreensão por parte do poder político.

Será por falta de sensibilidade?

Talvez haja outras prioridades.

Entrou para o Conservatório em 1978 para tirar o curso de piano. Tem também uma licenciatura em Ciências Musicais e um mestrado e Psicologia e Pedagogia da Música. Com este currículo e lutando contra tantos ventos contrários não lhe apeteceu já desistir?

Não. Tenho, felizmente, a capacidade de transformar os problemas em desafios e os “nãos” em obstáculos que têm de ser superados. Sou otimista por natureza mas estou, a nível global, consciente de que o tempo vai ser muito duro. Há uma ideologia subjacente a tudo o que vivemos que, como já disse, quer “robotizar” as pessoas e toldar a sua capacidade de crítica. Volto por isso a dizer que a cultura tem neste campo um papel imprescindível. É urgente repensar os modelos sociais e económicos. E só as pessoas cultas, conhecedoras da realidade, serão capazes de o fazer.”

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