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Música para quê?

O ensino especializado da música sofre de vários equívocos sucessivos. De governos que, por não se interessarem no assunto, não interferiram, e de governos que, por não perceberem do assunto, acharam por bem ter ideias e metê-las em prática.

Quem for ao Museu Nacional de Etnologia no Restelo, em Lisboa, pode ouvir alguns dos primeiros registos de música popular que músicos como Peixinho e Lopes Graça recolheram num Portugal onde o cimento de auto-estrada parava ao quilómetro 17 à saída de Lisboa. Da rabeca de lata com corda e meia à voz talhada em granito de senhoras da beira, o universo de expressões populares mostrava mundos distintos em vales separados por um único monte (ou montanha no caso da beira) numa tentativa de encenação real dos cem anos de solidão. Não havia escolas para esta gente que provavelmente nunca viu um instrumento, uma coisa da cidade, e isso não os impediu de fazer a sua música. Para quê então, chatearmo-nos com conservatórios? Para quê gastar dinheiro nisto?

O insulto epidérmico desta tese tornou-se a vulgata liberal dominante - música para quê? - contra a qual a esquerda costuma encher-se de brio e brecht e clamar tubarões (cheios de razão, de resto). Não foram nem uma nem duas as vezes que ouvi deputados na assembleia da república questionar a necessidade de o estado sustentar orquestras. Uma pergunta tão legítima quanto perguntar para que servem hospitais, embora, claro está, uma é essencial e a outra é absolutamente irrelevante para a Coisa nacional (o défice) à exceção do prejuízo que cria (semelhante ao gasto de uma grande empresa em post-its, julgo). Em condições normais a pergunta seria merecidamente alvo de repúdio social. No entanto, a nossa pobreza generalizada e uma direita desclarecida que se mexe entre Lisboa e a Comporta sem nunca meter os ouvidos num teatro remetem-na sempre (a pergunta estúpida) para o nosso palco político disfarçada de irreverência reacionária. Não é por acaso que Pedro Passos Coelho foi uma vez avistado num teatro a assistir a um espetáculo de Filipe La Feria, um conhecido empreendedor que sustenta as suas produções graças a subsídios públicos de espécie variada e à solidária contribuição dos próprios músicos, atores e atrizes que para ele trabalham com salários de meses ou anos em atraso, financiando a sustentabilidade de mercado do seu negócio.

A música, especialmente o seu ensino, e ainda por cima a crianças, é pelo menos esta semana, absolutamente consensual. Aproveitemos que isto nunca dura demasiado.

O ensino especializado da música sofre de vários equívocos sucessivos. De governos que, por não se interessarem no assunto, não interferiram, e de governos que, por não perceberem do assunto, acharam por bem ter ideias e metê-las em prática. Assistimos neste momento ao estertor da reforma de 2007 que, na sua essência, acusava os conservatórios públicos de elitismo e promovia a expansão de escolas de música através de fundos comunitários sem qualquer plano coerente a nível nacional e, sobretudo, com incentivo à exploração laboral e má qualidade do ensino em detrimento de projetos pedagógicos estruturados de longo prazo. Algo que o Rui Nabais já bem explicou neste seu artigo.

Nuno Crato acorda para o problema em 2015 em plena alteração de quadro comunitário já com verbas atrasadas às escolas desde setembro de 2014. Garantiu na sua última audição parlamentar em junho que as verbas e a burocracia estavam agilizadas mas, chegados a setembro, pais em todo o país foram notificados que os seus alunos não iriam ter lugar nas escolas onde já estavam matriculados. Chegamos assim ao absurdo de os mesmos alunos matriculados gratuitamente em anos anteriores serem obrigados este ano a pagar propinas mensais (algo que suscita dúvidas legais pertinentes). Mas sobretudo, Nuno Crato agravou os incentivos à exploração laboral dos professores e má qualidade do ensino. A redução do custo/aluno e fim de diferenciação de escalões vai deslocar o custo do ensino para as famílias que passam a pagar propinas, quando conseguirem; e despedir os atuais professores de carreira por novos precários.

Temos várias opções perante este cenário. A mais óbvia para alguém de esquerda é exigir o direito ao acesso ao ensino artístico para todos. E bem. Mas o novo problema que surgiu com Nuno Crato é precisamente ter suprimido do currículo das escolas regulares o ensino para as artes, tornando as escolas profissionalizantes a única alternativa pública para milhares de pais e alunos que querem ter contacto com a música. Estes cortes não correspondem a nenhuma racionalização do sistema de escolas do ensino artístico, pelo contrário, só agravam o problema: nem o ensino regular nem o especializado têm capacidade para responder às necessidades.

Música para quê? Como William Empson escreve, nem no socialismo todos terão oportunidade de ser poetas, mas num mundo que os liberais gostam de dizer global onde qualquer expressão cultural que não se assuma de mercado não existe, é no ensino para as artes e no ensino artístico especializado que reside o potencial para algo genuíno, onde a rabeca de latão pode sobreviver como parte da nossa cultura. Um bocadinho de socialismo, afinal de contas, faz bem a muita gente.

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na FLUL, Investigador do Centro de Estudos de Teatro/Museu Nacional do Teatro e da Dança /ARTHE, bolseiro da FCT
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