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Polémica sobre a moção de censura: acerto no tema e na oportunidade

Esta é uma moção táctica de alcance estratégico. Recusa inevitáveis. Se aprovada, trará eleições num tempo que não é o preferido pela direita e onde o socratismo terá reduzida margem para chantagear com o voto útil. Se chumbada, acentua o compromisso do PSD com a decadência do governo.

1. Porque se apresenta uma moção de censura? Desde logo, por razões de censura.

Ainda não conheço o texto que o BE submeterá à AR, mas dou por boas as razões invocadas por F.Louçã:

"Porque é agora que o governo concretiza medidas destruidoras do emprego porque facilitadoras do desemprego: a redução da indemnização pelo despedimento e o fundo para financiar o despedimento. Queremos que elas sejam retiradas, que sejam recusadas e que sejam vencidas, porque vão criar mais desemprego".

Esta crítica justifica a oportunidade: o pacote que o PS apresentou encontra-se em Concertação Social. O anúncio desta moção dificulta a posição do governo e fortalece os argumentos sindicais.

O segundo e o terceiro motivos, ligados entre si, são consistentes com o primeiro, mas não justificam, por si sós, a escolha do momento: o que ambos nos dizem é que esta é uma moção contra as políticas que rompem o contrato social com as novas gerações.

"Chegámos a uma situação insuportável: um em cada dois trabalhadores está desempregado ou é precário. O PS e PSD aprovaram a retirada do subsídio de desemprego a muitos desempregados, e reduziram o montante para os outros". 

Há um milhão de recibos verdes, muitos dos quais falsos. E podemos corrigir essa situação de abuso, introduzindo novas regras para o contrato dos falsos recibos verdes".

F. Louçã, in facebook

Uma moção destas, "tipo Deolinda", pode não ser muito "política", mas faz todo o sentido para quem esteja a perder as suas ilusões na capacidade da política para alterar um sistema de vida onde "é preciso estudar para se ser escravo". Com as mais recentes decisões do governo, não é apenas o novo trabalho que continua incerto e precário, é a protecção social que diminui em caso de desemprego. Censura, portanto.

2. A escolha do momento foi a melhor? Foi a única razoável.

O Bloco anunciou a moção para o primeiro dia em que terá utilidade prática, 10 de Março. Ou seja, quando o PR estiver obrigado a pronunciar-se se for aprovada. É, portanto, uma moção para valer. 

Se o governo cair por causa desta moção, o bloco é o primeiro responsável. É assim, sem doirar a pílula.

É por isso que se pode concordar ou discordar da moção não apenas em função do seu conteúdo, mas pelas consequências que possa acarretar. O que não se pode é sustentar, no mesmo argumento, que a moção não presta porque é a fingir e... que não presta porque pode vingar. Discussão política, sim, amálgama, não. 

3. O que é uma "moção para valer"? É uma moção que se bate pelas razões da censura que apresenta.

Não é nem mais nem menos do que isto. A utilidade de uma moção não depende apenas do seu resultado. Esta é a mais recente "teoria" do CDS que, tanto quanto me lembro, já apresentou ou votou moções que perderam. Se este argumento valesse, jamais se apresentariam moções sem garantia prévia de vitória. Como se sabe, nunca foi assim. Nem em Portugal nem em qualquer outro país com parlamento plural. 

Para quem a apresenta e para quem a vota, uma moção de censura é sempre um instrumento de acumulação de forças por ou contra uma política e os seus responsáveis. Se passa ou não passa depende. Vamos então a este "depende".

4. E se o governo cai? Se cair, vamos para eleições, é assim a democracia.

Para algumas pessoas, os resultados dessa putativa eleição estão escritos. Para outras - como eu, por exemplo - não. Mas deixemos o poder de adivinhação a quem de direito e fixemo-nos no essencial: a ninguém ocorre cancelar a democracia pelos riscos que possam trazer os seus resultados.

Pode, isso sim, discutir-se a oportunidade de antecipar essa eleição. As pessoas de esquerda que criticam esta moção, fazem-no por razões de oportunidade, por estarem convencidas de que a direita sairia beneficiada de eleições antecipadas. Sucede que essas mesmas pessoas, independentemente da moção e já antes dela, davam por adquirida, quer a derrota de Sócrates, quer a vitória da direita. O analista que melhor tem resumido esta opinião é o meu amigo Daniel Oliveira. Escreveu ele... 48 horas antes do anúncio da moção, ou seja, desconhecendo-a:

"Que José Sócrates está a prazo já não é assunto de debate para ninguém. Que será sucedido por Pedro Passos Coelho também deixa poucas dúvidas."

In Expresso online

F. Louçã avança uma explicação para a possível progressão da direita:

"Não fujo ao problema das sondagens. O que nos indicam é que, a continuar a degradação da governação, pode haver uma vantagem do PSD sobre o PS. (...) Os que nos gritam que a direita vem aí sabem que o PS é hoje o governo provisório do PSD. (...) É extravagante pensar que a solução para barrar a direita é o PS, o partido que lhe abre o caminho, levando-a ao poder efectivo, que é o da lei económica".

FL, ibidem

Este ponto de vista não é substancialmente distinto do que o próprio Daniel sugere, projectando o futuro:

"Sei que os portugueses demorarão alguns anos a esquecer José Sócrates. Com os maus tempos que aí vêm (...) já não vai bastar a indignação retórica com as privatizações quando privatizou, a defesa intransigente, em palavras, do Estado Social quando se fragilizou o Estado Social ou as reflexões sobre a necessidade da Europa mudar de rumo enquanto se aceita um papel passivo dos países periféricos. O que falta ao PS é consistência e consequência".

Subscrevo o diagnóstico, mas não o fatalismo do Daniel. Acho que vivemos tempos de incerteza, com grande volatilidade nas opiniões. O que hoje parece adquirido, amanhã deixa de o ser e a opinião do analista é uma entre muitas. Não acho que exista uma "vaga de direita"; penso que existe, isso sim, uma fronda de desconfiança face à política que temos. Mas, precisamente, este é o motivo por que o resultado de eventuais eleições não é determinado apenas por Sócrates e Passos Coelho. Encontramo-nos, aliás, ante a possibilidade de um fenómeno novo:

"O descontentamento e a crise podem levar à desagregação da geografia eleitoral, deixando o centro-esquerda em estado comatoso prolongado. Já aconteceu em Itália e em França, nada nos diz que não possa acontecer em Portugal".

DO, ibidem

O autor coloca esta possibilidade na sequência de uma derrota eleitoral de José Sócrates. Mas nada obsta a que ela já seja parte dessa mesma derrota. Por esta ou por aquela razão, são prováveis eleições algures entre 2011 e 2012. Se assim é, a escolha do momento para a queda do governo está longe de ser indiferente. Quando o Bloco anuncia uma moção para 10 de Março não está apenas a dizer que a política do governo deve ser estancada quanto antes. Está também a dizer ao povo que prefere eleições quanto antes. E desculpem lá qualquer coisinha, penso que a maioria do povo pensa exactamente o mesmo.

Com efeito, este é o primeiro ano em que a crise está a ser paga, não apenas pelos desempregados, mas também pelos funcionários públicos, pelos pensionistas e pelos jovens. Com ou sem FMI, o isolamento do governo só pode aumentar com o passar do tempo. Em consequência, de pouco valerá a coerência da esquerda, se nada for feito para comprometer mais ainda a direita com as políticas que a comprometem e que marcam a governação. É por isto que não percebo como se pode criticar a oportunidade da moção BE brandindo a ameaça da direita. A antecipação do calendário político é um dos meios mais eficazes para contrariar as hipóteses de PSD e CDS alcançarem a maioria absoluta.

5. E se o governo não cai? Se não cai é porque o PSD o aguenta...

Não é por acaso que esta moção é um embaraço.

Para os dirigentes do PS, ela é "tresloucada", "irresponsável", "radical", "extremista" e sei lá mais o quê. Ao meu colega Vital Moreira só faltou escrever que os aumentos dos juros da dívida deveriam ser facturados ao bloco. Quando, da banda governamental, a histeria substitui a serenidade... é porque devemos ter acertado.

Para o PSD, a moção é um lindo sarilho, como, aliás, as notícias deste fim de semana confirmam. No laranjal uma mão lava a outra - estar na oposição enquanto se abençoam as políticas de austeridade é "dois em um". Sucede que a moção do BE lhes estraga o arranjinho. Obriga-os a sair do terreno de conforto em que se encontram. Por isso, foram de fino gabarito os epítetos que mereceu: a moção seria "arrogante" (como afirmou Luís Delgado, um pequeno partido não pode ousar liderar a oposição...), "extemporânea" ("o ideal para o PSD era que fosse o PR a dissolver a AR", Luís Delgado bis) e, obviamente e sempre, "irresponsável" - esta foi seguramente de Santana Lopes...

Se o PSD votar contra ou se abstiver, não são apenas os mercados que lhe agradecem. Sócrates e Cavaco não deixarão de respirar de alívio pelo "sentido de responsabilidade" laranja - se for essa a decisão. Neste caso, a moção mostra como existe uma unidade fundamental de propósitos por detrás das guerras de alecrim e de manjerona entre PS e PSD. E isso é positivo e porventura decisivo para o momento em que o país for a votos.

Há alguma verdade quando se critica a moção do BE por esta se dirigir não apenas ao governo, mas também à oposição de direita. Não por causa do que lá venha escrito - espero, sinceramente, que não contenha qualquer referência ao PSD - mas pela definição de campos que impõe. Qualquer que seja a sua posição, o PSD terá enorme dificuldade em a explicar.

Ao invés, já não há qualquer verdade na crítica à moção por esta fazer parte da concorrência entre "os vizinhos do lado". O efeito retórico é interessante, mas não a consequência. Independentemente das opiniões sectárias que existam num e noutro partido, BE e PCP têm interesses convergentes na defesa do mundo do trabalho e contra a ruptura no Contrato Social. Caminham separados porque são muito diferentes nas propostas que apresentam; atacam em conjunto porque defendem valores comuns.

6. E o ónus de derrubar um governo? É verdade, não há bela sem senão.

Quem derrube um governo, por impopular que este seja, paga sempre por esse facto.

Sucede que em política não há decisões sem prós e contras, nem é possível erradicar o risco. A moção pode ser um erro ou um acerto, mas não é reflexo de "desnorte" nem tardio sintoma de "infantilidade". 

Mais curioso é o argumento de que a moção representa um balão de oxigénio para José Sócrates. Se fosse verdade, porquê a indignação de quantos receiam, acima de tudo, a ameaça da direita? Lamento desiludir o/a leitor(a) que faça do medo uma conduta: não, não há fins felizes com José Sócrates, porque o homem é o problema 1, 2 e 3 que impede qualquer solução de esquerda para o país. E como o partido não o despacha, terá de ser o povo a removê-lo em eleições. Não sou eu que o digo:

"Os socialistas terão de se preparar para uma longa travessia do deserto. O próximo congresso do PS (...) apenas tornará mais evidente o autismo socialista. Mas vêm aí outros tempos.(...) Depois de José Sócrates, o PS ficará em escombros. Os seus mais fiéis e acríticos seguidores irão tratar das suas vidas. Uns com passagem direta para o novo poder, outros de licença em empresas privadas e públicas, à espera de uma nova vitória. Se o PS os deixar partir de vez (...) quer dizer que aprendeu alguma coisa. Se fica apenas à espera do desastre que será Passos Coelho, então esperemos que a travessia do deserto seja mesmo muito longa."

DO, ibidem

Não tenho pontos de vista tão definitivos, mas isso deve ser da idade. Em matéria de predição sou razoavelmente moderado. Por exemplo, tenho menos expectativas numa liderança mais à esquerda (bem precisaríamos dela, todos), mas em contrapartida não faço votos para desertos a perder de vista.

Muito menos subscrevo a tese segundo a qual "com a guinada à direita a que a política nacional vai assistir, o bloco central não tem qualquer futuro". Bem pelo contrário, o bloco central institucional (entre governo e presidência) só não se transformará em bloco central orgânico se os dois partidos da direita não obtiverem a maioria absoluta. Se a alcançarem precisam absolutamente de um PS, ainda para mais enfraquecido, num grande governo de "união nacional". Nenhum governo de maioria absoluta à justa estará em condições de gerir o PEC IV, o PEC V e o que mais se verá. Isso já é verdade hoje, sê-lo-á ainda mais em 2012.

Esta é, portanto, uma moção táctica de alcance estratégico. Recusa inevitáveis. Se aprovada, trará eleições num tempo que não é o preferido pela direita e onde o socratismo terá reduzida margem para chantagear com o voto útil. Se chumbada, acentua o compromisso do PSD com a decadência do governo.

Não, nada está escrito a não ser o que o se vai escrevendo. E nós escrevemos.

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputado, dirigente do Bloco de Esquerda, jornalista.
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