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Raposo, o misógino

Henrique Raposo é igual a si próprio: a crónica, que é a sua vida, mostra-o inteiro, apresenta-o como é, orgulhosamente misógino em todo o seu esplendor.

Henrique Raposo tem uma notável obra que o destaca acima dos plebeus que vai pastoreando pacientemente. Não é ciência, não é livro, não é cinema; não é ensaio, não é pensamento, não é política; não é um cargo público nem é cargo privado; não é ser deputado nem ser administrador, financeiro ou empresário; não é ter sido eleito ou sequer candidato. A obra é crónica, senhores e senhoras, é crónica. Mas, como é crónica e só crónica, tem que épater les bourgeois, tem que chocar, deslumbrar e brilhar, tem que buscar a palavra mágica, a frase rotunda, o título iluminado, a bengalada feroz. Quem faz assim pela vida tem destas preocupações, porque se resume a desenhar alvos e a bombardear. Não tem mais nada para apresentar.
Por isso, tenho pena, muita pena de Henrique Raposo, pois quando lhe falta assunto só lhe resta falar de si próprio. E que tristeza que isso é.

Foi o caso da sua crónica de há uns dias, “Ainda bem que o Livre é o CDS da esquerda”. Raposo está preocupado com o Livre, “o meu maior receio, aliás, é que o Livre entre em desagregação”. O maior receio de Raposo, imagine-se, nem pensa noutra coisa. Que o Livre dispensa bem esta defesa e este advogado, não tenho qualquer dúvida, porque o elogio é envenenado: se for visto como o CDS do PS, o Livre perderá os votos para o PS e pouco lhe restará. Mas, nessa crónica, o assunto sobre o Livre é o menos e não me ocupo dele.

O mais relevante é mesmo o que Raposo nos diz sobre si mesmo. Para tanto, vai buscar uma entrevista de Catarina Martins de 23 de maio ao Expresso, há nada menos do que dois meses e meio. E decreta que ela é um “truque de ventriloquia de Francisco Louçã que também é conhecido por Catarina Martins”. A partir daí, com a elegância que é só dele, passa a designar Catarina Martins como “o truque”.

Que Raposo deteste a esquerda, não há surpresa, tem anos de crónica no Expresso a exibir a facécia e a verve. Que abomine as pessoas do outro lado da política, seria de esperar, mesmo que não fosse obrigatório – mas o cronista é assim. Sempre foi assim e, Deus o guarde, assim continuará para toda a eternidade. Mas aqui dá um passo de gigante, que nada tem que ver como a forma como comenta a esquerda ou, nesta crónica, a escolha pelo Bloco ou por qualquer partido dos seus dirigentes. Simplesmente, Raposo acha que neste caso tem luz verde para insultar, porque se trata de uma mulher jovem. Aliás, logo repete o que escreve sobre Catarina a propósito de Mariana Mortágua. Uma mulher, outra mulher.

Diria ele de Francisco Assis, candidato então apoiado por José Sócrates, que é um “truque”? Ou de António Costa, “ventriloquia”? Ou de Carlos Carvalhas, que se seguiu a Álvaro Cunhal? Ou de Fernando Nogueira, depois de Cavaco Silva? Ou de Santana Lopes, depois de Durão Barroso? Ou de Telmo Correia, candidato depois de Portas e antes do regresso de Portas? E por aí fora? Não diria. E não diria por uma razão que é muito evidente: não é verdade, são personalidades com pensamento, com vida, com percurso e que têm uma política a apresentar. Concordamos ou discordamos, mas discutimos essa política e não inventamos uma genealogia para justificar a imprecação e desculpar a pilhéria.

Ora, Catarina Martins, como eles, tem um percurso de vida profissional, uma actividade de parlamentar, um cargo político, dirige um partido. Ninguém lhe sopra o que diz em cada debate com o primeiro-ministro e bem se vê como ele a sente, pressente e ressente.

Mas Catarina tem uma diferença evidente em relação aos outros citados. É mulher. É o que encoraja Raposo a atrever-se a usar o insulto boçal, porque acha que, entre alguns leitores da sua igualha, a coisa poderia colar: afinal, um mulher? Uma mulher só pode ser a imitação de um homem, claro está, é mesmo assim no universo do Raposo. Uma mulher tem que ser “um truque”, não pode ter capacidade para ter a sua ideia, o seu projecto, a sua voz própria. Só pode der “ventriloquia”.

Assim, Henrique Raposo é igual a si próprio: a crónica, que é a sua vida, mostra-o inteiro, apresenta-o como é, orgulhosamente misógino em todo o seu esplendor. Desejo-lhe então o melhor sucesso nesta sua carreira, bem precisa dela. Afinal o que lhe fica é somente a croniqueta sobre as suas próprias qualidades e elas são o que são.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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