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400 ppm de CO2: a atmosfera da Terra como caixote do lixo do Capital

Vivemos perto de um planeta que, nas palavras do eterno Carl Sagan, nos mostra que "as coisas podem dar errado". Vénus é semelhante à Terra em vários aspectos, mas o seu efeito estufa desmedido o transformou literalmente num inferno.
imagem de computador da superfície de Vênus, em Eistla Regio. Fonte: NASA

Com exceção de um ou outro astronauta, a grande maioria de nós vive, do primeiro ao último dia de vida, imerso nesta delgada película de ar que envolve a Terra: a atmosfera. Além de garantir-nos o oxigénio que respiramos e usamos para retirar energia dos alimentos e, graças à presença de ozono em suas camadas superiores, nos proteger da radiação ultravioleta com que o Sol bombardeia o planeta, a atmosfera cumpre também um papel regulador do clima, graças ao chamado “efeito estufa”.

Exercido por gases minoritários na atmosfera terrestre (vapor d’água, dióxido de carbono, metano e óxido nitroso), o efeito estufa é fundamental para o clima ameno da Terra, assegurando a ocorrência de água em estado líquido e, portanto, garantindo as próprias condições de existência da vida como a conhecemos. Sem esse efeito, a Terra seria nada mais que uma esfera congelada e árida; com efeito estufa em demasia, os seus oceanos poderiam ferver deixando para trás uma paisagem infernal como a do planeta vizinho, Vénus, coberto por nuvens de ácido sulfúrico e onde o chumbo escoa, em estado líquido, na sua superfície causticante. É um ajuste delicado, do qual dependemos.

400 ppm: uma marca inédita e perigosa

Especialmente desde o início da Revolução Industrial, atividades humanas associadas ao desenvolvimento capitalista, como a queima de combustíveis fósseis para geração de energia e transporte e o desmatamento, que abre caminho para a expansão da fronteira agrícola, têm sido responsáveis pela produção dos chamados gases de efeito estufa em quantidades acima daquela que o ecossistema terrestre é capaz de reciclar. É como se a atmosfera do planeta fosse tratada, impunemente, como um enorme caixote do lixo, sem preocupação nenhuma sobre as consequências desse lixo (no caso as emissões desses gases) se acumular. Com efeito, é como se a atmosfera terrestre tivesse sido privatizada, para servir de lixeira, pela indústria petroquímica, pelas termoelétricas, pela indústria automobilística, pelo agronegócio, que a utilizam sem pagar um centavo pelo lixo que nela despejam. A crença de que esse uso perdulário da atmosfera pode seguir impune é obviamente incoerente do início ao fim.

Valores recentes de concentração global média de CO2. Março de 2015 fechou em 400,83 ppm. Há um ano, esse valor era de 398,10, quase 3 ppm abaixo! Fonte: http://www.esrl.noaa.gov/gmd/ccgg/trends/global.html[/caption]

Durante os 10 mil anos em que a civilização humana floresceu, em que deixamos de ser pequenos grupos nómadas para, em que pese a incapacidade sistémica de resolver problemas básicos de fome, desigualdade e violência, nos tornarmos 7 mil milhões de pessoas numa sociedade altamente tecnológica, o clima da Terra permaneceu notavelmente estável, com concentrações de CO2 muito próximas ao valor pré-industrial de 280 ppm.

A marca de 400 partes por milhão (ppm) de dióxido de carbono (CO2) já havia sido ultrapassada em 2013 na estação de Mauna Loa, um sítio de medidas localizado no Havaí e que recolhe dados da concentração desse gás desde 1958. Mas Mauna Loa é um único ponto, e agora a marca é global. É preciso retroceder pelo menos 3 milhões de anos no tempo, para encontrar, na história geológica do nosso planeta, concentrações de CO2 tão altas quanto as de hoje. E o estado do planeta era outro, então: temperaturas globais alguns graus acima, oceanos vários metros mais altos, provável ausência de manto de gelo permanente no Ártico, padrões de chuva e seca bastante distintos dos atuais.

Rede global de medidas de CO2. São ao todo 40 sítios de medidas espalhados pelo planeta, incluindo a primeira estação, em Mauna Loa.

Apesar de esperada, por causa da tendência dos últimos anos, a marca de 400 ppm deveria recair sobre os governos nacionais, dirigentes políticos, gestores económicos, lideranças dos mais variados matizes e funções com o peso ensurdecedor de mil sirenes de alerta a soar ao mesmo tempo, como ameaça às vidas humanas ante eventos extremos; como ameaça à segurança hídrica, alimentar e energética; como risco severo de novas e inéditas pressões migratórias. A Física do Clima é clara e cristalina acerca da relação entre aquecimento global e aumento da ocorrência de extremos tanto de seca e calor, quanto de chuva e tempestades! Uma atmosfera mais quente funciona como um maior reservatório de vapor d’água: ele requer mais tempo de evaporação para “ser preenchido”, isto é, atingir a saturação; quando “cheio” (ou melhor, saturado), dele se despejam a maior quantidade de água acumulada. É tão simples quanto inconveniente para nós, humanos.

Alarmes, sirenes, em todo lugar

E alertas já haviam soado, na forma de um novo recorde de temperatura global estabelecido ao final de 2014, que se confirmou como o ano mais quente de todo o registo histórico, iniciado em 1880. Soou quando o período de Janeiro-Fevereiro-Março de 2015 se revelou como o primeiro trimestre mais quente desse mesmo registo, colocando este ano já na rota de nova quebra de recorde global de temperatura, ultrapassando o seu antecessor.

Acreditava-se até pouco tempo que a Antártica, com exceção da Península, estava relativamente "imune" ao degelo provocado pelo aquecimento global. Nada mais falso, como se verificou recentemente com a descoberta de uma grande perda de massa no glaciar Totten.

Soaram, também, na forma de um degelo sem precedentes em ambos os hemisférios, retirando da Terra um importante regulador natural da sua própria temperatura. O gelo, por refletir a maior parte da luz solar que sobre ele incide, contribui para mantê-la dentro de determinados limites. Reduzi-lo implica amplificar o próprio aquecimento global, aumentando a quantidade de radiação solar absorvida pelo sistema climático terrestre. Hoje, o volume de gelo marinho no Ártico durante o verão é apenas 1/5 do que exstia no final da década de 1970, quando teve início o monitoramento da região através de satélites. Glaciares importantes na Groenlândia, na Península Antártica e mesmo no leste da Antártica (antes considerado quase “imune” ao aquecimento global) têm perdido massa a uma taxa assustadora.

Soam e ressoam quando na Sibéria e no Canadá amplas áreas do solo outrora permanentemente congelado (e por isso chamado de “permafrost”) são expostos a temperaturas acima de zero, libertando grandes quantidades de metano e CO2 por conta da decomposição da matéria orgânica; quando se descobre que a mortandade de árvores na Amazónia por causa da sucessão de secas (como as de 2005 e 2010) comprovadamente reduziu a capacidade da maior floresta do mundo em capturar carbono; quando a acidez oceânica (já 30% acima dos níveis pré-industriais) já se interpõe como ameaça real e palpável a diversas formas de vida (corais, pequenos moluscos, equinodermas) que cumprem um papel fundamental nas relações do ecossistema marinho, várias delas estando na base da cadeia alimentar e sendo essenciais para que inúmeras espécies de peixes e cetáceos sobrevivam.

Sim, as sirenes, os alarmes do sistema climático terrestre estão a soar todos ao mesmo tempo. E soam às nossas portas, como ameaça às vidas humanas ante eventos extremos; como ameaça à segurança hídrica, alimentar e energética; como risco severo de novas e inéditas pressões migratórias.

A probabilidade de ondas de calor e tempestades severas cresce assustadoramente a cada grau de aquecimento do sistema planetário. É o que evidencia o trabalho de atri- buição de Fischer e Knutti, publicado recentemente na Nature Climate Change.

Nada menos que três em cada quatro das ondas de calor anómalas como as que se sucedem ano após ano na América do Sul e do Norte, na Austrália, ou na Europa, já são atribuídas ao aquecimento global, com cada vez mais impactos, incluindo sobre a saúde humana. Incêndios florestais têm se tornado cada vez mais frequentes, chegando a quadruplicar a sua incidência no oeste dos EUA.

A sucessão de monstruosas tempestades (furacões e tufões) ocorridas recentemente também é evidentemente atípica: Katrina, Bopha, Sandy, Haiyan, este último com indícios de ter sido o ciclone tropical mais violento a jamais atingir assentamentos humanos, com ventos tão intensos e rajadas tão furiosas que o classificariam como um tufão de categoria 6, caso essa existisse (furacões e tufões são classificados pelos serviços de meteorologia de acordo com uma escala que vai de 1 a 5, ou seja, o Haiyan excedeu os parâmetros conhecidos no presente para tempestades de seu tipo).

Secas atípicas têm assolado regiões tão diversas quanto a Índia e o Sahel africano, o Sudeste e Nordeste brasileiros e a Califórnia e, combinadas com a utilização massiva e irracional de recursos hídricos por monoculturas, indústria pesada, termelétricas, mineração etc., já têm sido responsáveis por condições de iminente colapso de abastecimento em diversas regiões urbanas no mundo afora, inclusive a maior cidade brasileira: São Paulo.

A barreira de 2°C e o carbono “inqueimável”

400 ppm é também uma marca próxima demais do limiar considerado de alto risco em termos de mudança no efeito estufa terrestre (450 ppm, quantidade de CO2 que, estima-se, esteja associada a um aquecimento muito perigoso de mais de 2°C). A partir desse limiar é praticamente certo que alterações irreversíveis se dariam, como degelo significativo da Gronelândia e da Península Antártica (implicando em elevação do nível dos oceanos em vários metros), derretimento do “permafrost” (solo congelado) com exposição de matéria orgânica à decomposição e consequente emissão de metano e CO2 que acelerariam o aquecimento global, impactos generalizados sobre biomas diversos, de ecossistemas marinhos a florestas tropicais.

O jornal britânico "The Guardian" está bancando uma ousada campanha de "desinvestimento", atacando direta- mente a poderosa indústria de combustíveis fósseis, com o lema "Keep It in the Ground" ("Deixa no Chão"). Mas precisamos ter clareza que é preciso ir ainda além!

Mas para evitar que se ultrapasse essa barreira, a partir da qual o risco de danos irreversíveis e catastróficos se torna extremamente alto, nada menos que 80% do carbono fóssil tem de ficar exatamente onde está: no chão! E isso implica no abandono dos projetos caros, irresponsáveis e de alto risco de acidentes em sua exploração, das fontes ditas “não-convencionais”: o betume de Alberta, o petróleo sob o gelo do Ártico, o gás de folhelho (extraído via fratura hidráulica ou “fracking”), o petróleo do pré-sal! Ou seja, muito do carbono fóssil simplesmente não pode ser queimado e a grande contradição é que, na forma de reservas de petróleo, carvão e gás, esse carbono é propriedade privada de meia dúzia de corporações!

E é preciso que se diga: evitar a ultrapassagem de 450 ppm é, na verdade, a primeira tarefa, que torna possível a segunda: retornarmos, via captura de carbono (reflorestamento), a atmosfera para níveis de efeito estufa realmente seguros de 350 ppm de CO2. Manter mais de 400 ppm na atmosfera por um período muito prolongado implica ampliar sobremaneira os efeitos deletérios já verificados do aquecimento global. Mas certamente a primeira coisa que deve ser feita quando se está preso num buraco, a fim de que se possa sair dele, é parar de cavar!

A indústria de combustíveis fósseis precisa ir para o caxote do lixo da História

É por não confrontar com a poderosa indústria de combustíveis fósseis que as propostas voluntárias que os países continuam a propor em mais uma ronda de negociações climáticas (a COP21 em Paris, no final do ano) continuam tímidas. Não tocam em questões essenciais. Não ousam desafiar os poderosos setores económicos que querem continuar a dispor da atmosfera terrestre como o seu caixote do lixo particular! O uso de combustíveis fósseis continua sendo subsidiado em cifras que anualmente ultrapassam, numa estimativa conservadora, os 700 mil milhões de dólares, incluindo subsídios diretos, isenções fiscais, garantia de preço etc. A ascensão das renováveis é lenta e voltada não para a substituição das fonte fósseis mas para introduzir novas fontes de energia para o “crescimento económico”, numa lógica em que cabe tudo para saciar a fome energética do capital: nuclear, fóssil, eólica, grandes barragens... O agronegócio continua a expandir-se, com grandes empresas como a Monsanto a continuarem as suas apostas no binómio transgénico-agrotóxico, praticamente ignorando a inclusão do glifosato na lista de agentes cancerígenos pela Organização Mundial de Saúde.  A indústria automobilística continua a chantagear trabalhadores e governos, como no Brasil, em busca de mais benesses, independente de seu produto implicar cada vez mais em extração de minério, uso de água e energia na indústria, engarrafamentos e emissões (de particulado, substâncias tóxicas e CO2) nas grandes cidades e cada vez menos em mobilidade humana de facto.

Na sua irracionalidade, o que o capital teme é que o valor de mercado das gigantes petroquímicas (hoje estimado em bem mais de um bilião de dólares concentrados em somente meia dúzia de companhias) despenque, pois o preço das suas ações depende de ativos que nada mais são do que especulação com carbono, pois este não pode ser queimado a não ser que realmente se deseje transformar a Terra num planeta inóspito e, porque não dizer, praticamente inabitável. Entrelaçadas aos bancos e ao seu desvario de atender à sede de lucro de mega-acionistas e à sede de ostentação de dirigentes com salários astronómicos, a indústria fóssil segue financiando campanhas contra a Ciência do Clima, promovendo um lóbi imoral contra medidas que limitem as emissões e sufocando iniciativas de democratização dos sistemas de geração de energia e transporte. Na racionalidade que de nós deve ser exigida, não podemos ter dúvidas: a manutenção dos sistemas de suporte à vida humana (água, alimentos, clima estável) exige o fim dos combustíveis fósseis. Ao invés de ser concedido a essa indústria destrutiva o direito de continuar usando a atmosfera como caixote do lixo, é ela própria que precisa ser lançada ao caixote do lixo da História!

Não há solução para a grande crise civilizacional nos marcos deste sistema

É provável, assim, que em nenhum momento de sua trajetória anterior, a humanidade tenha se deparado com tamanha crise de civilização, pois a questão climática coloca objetivamente em xeque a própria existência de uma sociedade humana organizada ou talvez mesmo da nossa própria espécie. Mas é também provável que poucas vezes a saída de uma crise também se mostre tão clara: é preciso zerar as emissões de CO2 e demais gases de efeito estufa. É preciso, partindo de políticas que impliquem em eliminação completa dos subsídios à indústria fóssil e ao agronegócio exportador, taxação dura das emissões de carbono e desinvestimento nos setores poluidores, chegar à expropriação de todas as jazidas fósseis, a fim de garantir que grande maioria permaneça intocada. Ua mudança radical na matriz energética e na base produtiva precisa ser feita, privilegiando a energia solar residencial e o transporte público de massas, assegurando distribuição de rendimento via passe livre, geração doméstica de energia elétrica e prioridade para alimentos produzidos via agricultura familiar e agroecológica e garantindo uma nova onda de empregos verdes (para onde se deve orientar inclusive a massa de trabalhadores que precisa ser deslocada de setores a serem reduzidos, como as indústrias extrativistas, as petroquímicas e as montadoras de automóveis particulares).

Atualização dos dados das maiores corporações do mundo, segundo ranking da Forbes. Atrás do Wal- Mart, nada menos do que 5 empresas petroquímicas e 2 montadoras de automóveis. Essas 7 empresas, sozinhas, movimentaram U$ 2,43 trilhões, mais do que o PIB brasileiro. Fonte: http://www.forbes.com/global2000[/caption]

É uma tarefa urgente, revolucionária, monumental. Urgente, pois precisa ser cumprida na escala de poucas décadas, com ações muito profundas tendo de ser tomadas já nos próximos 5 a 10 anos. Revolucionária, pois só pode ser levada a cabo enfrentando o poder ditatorial da plutocracia fóssil-financeira, que estrangula o Sistema Terra na sua busca irracional de lucro; pois só pode ser de facto realizada por aqueles e aquelas que almejam outra relação com a natureza, em que a vida esteja acima do dinheiro; pois requer que o poder decisório passe de uma minoria gananciosa para a maioria; pois exige que o lucro rápido e fácil do agora dê lugar a condições sustentáveis para as gerações atuais e futuras. Mude o sistema, não mude o clima! Monumental, por não poder deixar de ser abraçada por nenhum/a lutador/a, qualquer que seja a causa a que se dedique mais centralmente. A nossa sociedade não paira no ar; antes depende do resto da natureza. A rotura do sistema climático inviabiliza qualquer organização social e particularmente uma organização social baseada na justiça e na equidade. Não há Socialismo possível em Terra arrasada!


Alexandre Costa é doutorado em Ciência Atmosférica e professor na Universidade Estadual do Ceará. Artigo publicado no blogue O que você faria se soubesse o que eu sei?

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