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És mulher pobre, desempregada, talvez imigrante? Faz-te Fada Madrinha

Se és mulher, pobre, desempregada, talvez imigrante, a próxima vez que saíres à rua, cautela: poderás ter algum Sucesso (mal-)Fadado a querer velar por ti.

Parece uma telenovela de mau gosto mas não é. É pior, porque é coisa séria. Assim o diz o folheto da ação de formação da Academia do Sucesso/Dress for Success, promovida pelo Governo de Portugal e pelo ACIDI, financiada pela Segurança Social e co-financiada pelo POPH, i.e., com comparticipação de fundos da União Europeia.

A realidade brutal desta coisa cai-nos em cima como um fardo largado do céu por almas caridosas que selecionaram com cuidado o alvo a atingir.

Irei traduzindo, a par e passo, o vocabulário caritativo/gestionês/austeritário para [língua de gente].

Se és mulher, pobre, desempregada, talvez imigrante, o que te faz falta é melhorar a imagem. Nem podiam faltar as fotos do antes e do depois para atestar as maravilhas que faz uma mise, o emprego aparece ao desligar do secador.

Se és mulher, pobre, desempregada, talvez imigrante, o que te faz falta é formação naquilo em que és incompetente, tudo para garantir a tua futura empregabilidade [superação do estado de desprovisão total em que se encontra toda a pessoa desempregada, porque não se esforça, porque é burra, ou porque a sorte não a favorece - em resumo: desempregada? a culpa é tua!].

A formação, dada pela Academia do Sucesso [tão mau que não carece de tradução] dura 3 semanas e tem duas componentes:

Prática
Atelier de costura
Cozinha saudável e económica
Engomar e armazenar roupa de forma eficiente

Teórica
Ética e deontologia profissional das Fadas Madrinhas
Psicologia da família [numa ação de formação profissional? OK, entendidas, para trabalhadoras desqualificadas financeira e socialmente a família é o verdadeiro trabalho]
Finanças do lar [nas outras nem te metas]
Imagem e marketing pessoal [aprende a vender-te, baby!]
Protocolo [boas maneiras]
Integração social [o que é ser desintegrada? não ter cartão de crédito gold nem frequentar os salões da patroa de A Criada Mal Criada?]
Entrevista de trabalho
Coaching

Se não fosse brincar com a exploração de muita mulher até podia ter piada.

A alguém faz lembrar as ações da Mocidade Portuguesa Feminina? Culpa vossa que andam a gastar dinheiro ao Estado quando já nem deviam existir.

Juízos feministas a este propósito? Era o que mais faltava que entre a Supico Pinto e a Jonet nós por cá todas bem. Limpinhas, poupadinhas, remendadinhas, boas-maneiras-obedientes. A abrirem a boca, na entrevista ou noutro lado, que seja para dizer: sim! aguentamos, aguentamos. A Fada do Lar do antigo regime - sob influência da televisão e das referências da Oprah - travestiu-se de Fada Madrinha, a cada austeridade sua fada.

A empregabilidade, percebe-se então é muito variada: descontando o inglês que empresta outro tom de chic (ou deveria dizer posh?) aos 7 itens listados, elas serão empregadas de limpeza (e de limpeza e de limpeza), ajudantes na prestação de cuidados pessoais à terceira idade e a crianças, rececionistas.

Se és mulher, pobre, desempregada, talvez imigrante, o que te faz falta é pagar pela tua empregabilidade. Financiamentos à parte, as virtudes da benfazeja obra exigem: "o projeto retém 20% do 1º vencimento". Isto de ser Fada Madrinha tem de ter "sustentabilidade" (sic). Há bondades que não têm preço. Estas têm. Na última página. No último item. Um requinte de subtileza.

À RTP a responsável pelo programa em Portugal terá dito que "acredita que a associação pode fazer a diferença na vida destas pessoas e a provar isso está o facto de aproximadamente 21% das mulheres que entraram na `Dress` conseguiram entrar no mercado de trabalho". Em termos estatísticos parece-me fraquito, não sei se é de ser muito exigente, não sei se este é um bom momento para questionar estatísticas, não sei. Sobre as vontades e as realizações dos benfazejos, sobre estes financiamentos pelo Estado que sabemos nós?

Se és mulher, pobre, desempregada, talvez imigrante, a próxima vez que saíres à rua, cautela: poderás ter algum Sucesso (mal-)Fadado a querer velar por ti.

Entre esta vida de sonho e um pesadelo de vida, estar bem acordada continua a parecer boa opção.

Só para que perceba que não inventei nem alucinei, queira conferir: Apresentação Fadas Madrinhas by Dress for Success Lisbon.

Artigo publicado no blogue Inflexão

Sobre o/a autor(a)

Investigadora em sociologia da cultura
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