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Por que razão não há um Syrisa ou um Podemos em Portugal?

Vários quadrantes têm procurado encontrar razões que expliquem a natureza limitada da crise do sistema político português quando comparada com o caso grego ou espanhol. Essa crise em Portugal é uma realidade, só que ela para já exprime-se de uma outra forma.

Nos últimos tempos observadores de vários quadrantes têm procurado encontrar razões que expliquem a natureza limitada da crise do sistema político português quando comparada com o caso grego ou espanhol. O exemplo mais significativo foi o do jornal Público que, a propósito do Congresso da Cidadania recentemente promovido pela Associação 25 de Abril, dedicou algumas páginas a entrevistas com agentes políticos de várias sensibilidades e especialistas em ciência política. Em particular está em causa a inexistência de partidos com a dimensão do Syrisa ou do Podemos, que se perfilam como alternativas sérias à governação dos tradicionais partidos de esquerda, baseadas em programas de afrontamento às instituições dominantes da União Europeia, à austeridade e à corrupção.

Na Grécia o que foi determinante para fazer crescer o Syrisa foi a dimensão brutal das medidas de austeridade impostas pela Troika. O Syrisa constituiu-se numa espécie de substituto do Estado Social, muitas vezes oferecendo serviços de emergência assentes no voluntariado e na solidariedade

Independentemente das opiniões de cada um, este exercício faz todo o sentido, na medida em que se vem notando uma impaciência crescente de muitos sectores da opinião pública em relação à incapacidade dos grandes partidos tradicionais para responder aos seus anseios e às suas angústias. Mas, diferentemente do que está a acontecer na Grécia com a experiência pioneira do Syrisa à frente do governo, ou do Podemos a liderar a oposição no estado espanhol, em Portugal o empate nas sondagens entre as forças que alternadamente costumam governar (PS ou PSD/CDS) não se fez acompanhar até agora do crescimento massivo de partidos de contestação e de rutura com a atual arquitetura do poder.

Existem algumas razões de fundo para que seja assim. A primeira relaciona-se com a natureza da crise que atingiu aqueles dois países. Na Grécia o que foi determinante para fazer crescer o Syrisa foi a dimensão brutal das medidas de austeridade impostas pela Troika. Basta lembrar que o Produto Interno Bruto regrediu 25% em em poucos anos, que a taxa de desemprego subiu de forma galopante, que muitos milhares de pessoas ficaram privadas do acesso a luz e que aos desempregados foi vedada a utilização do Serviço Nacional de Saúde. O Syrisa constituiu-se numa espécie de substituto do Estado Social, muitas vezes oferecendo serviços de emergência assentes no voluntariado e na solidariedade, uma prática que habitualmente é assumida pela Igreja em países como Portugal.

No caso espanhol, foi determinante o fenómeno da corrupção e da sensação de falta de legitimidade transmitida a muitos sectores da população pelo sistema político que resultou de uma transição negociada com o regime franquista. A resistência à austeridade fez-se por intermédio da constituição de movimentos sociais autónomos e da auto-organização por fora do sistema partidário instituído, e o Podemos é a emanação política de todo esse processo

Já no caso espanhol, foi determinante o fenómeno da corrupção e da sensação de falta de legitimidade transmitida a muitos sectores da população pelo sistema político que resultou de uma transição negociada com o regime franquista. Os agentes políticos são vulgarmente vistos como uma espécie de “casta” que tem uma carreira e privilégios inacessíveis à generalidade dos cidadãos, usando-a para traficar influências e realizar negócios privados. Neste contexto, a resistência à austeridade fez-se por intermédio da constituição de movimentos sociais autónomos e da auto-organização, de mobilizações de rua e nos locais de trabalho, isto é, por fora do sistema partidário instituído, e o Podemos é a emanação política de todo esse processo.

Tanto no caso grego como espanhol o envolvimento dos partidos social-democratas (isto é, o PASOK e o PSOE) com a austeridade foi significativo, com destaque para o PASOK, um dos principais responsáveis pela onda de medidas antipopulares e depressivas que conduziram a Grécia à situação de catástrofe social que atualmente vive. A drástica queda eleitoral do PASOK é uma consequência direta desta trajetória.

As diferenças em relação ao caso português são evidentes. Em primeiro lugar, a intensidade da austeridade nunca atingiu a dimensão do caso grego e, sobretudo, apesar de o PS ter estado na origem das primeiras orientações nesse sentido e da entrada em cena da Troika e do Memorando de Entendimento, bem como na assinatura do Tratado Orçamental que lhes deu sustentação, este partido tentou sempre simular a atitude oposicionista. Quase sempre fê-lo sem convencer, outras nem o tentou, mas procurou sempre jogar a cartada da distância face à responsabilidade direta da aplicação do grosso das medidas austeritárias e isso protegeu-o da fragmentação.

O sistema político português é mais resiliente que outros, por que resultou de uma verdadeira rutura democrática com o regime da ditadura anterior ao 25 de Abril e, por isso, a legitimação e a representatividade das instituições em vigor é muito maior

Por outro lado, o sistema político português é mais resiliente que outros, por que resultou de uma verdadeira rutura democrática com o regime da ditadura anterior ao 25 de Abril e, por isso, a legitimação e a representatividade das instituições em vigor é muito maior. Um indicador muito relevante desta lealdade é a pouca popularidade das propostas de revisão constitucional que a direita foi produzindo nos últimos anos ao contrário, por exemplo, do que acontece no estado espanhol onde a crítica de esquerda à monarquia e à constituição em vigor têm grande significado.

Finalmente, é preciso destacar o papel tampão e conservador que o PCP representa em Portugal. A sua dimensão e estabilidade asseguram a inexistência da extrema-direita, em contraste com muito do que vem acontecendo no resto da Europa. De facto, o desencanto dos filiados nos partidos comunistas que se seguiu à queda do Muro de Berlim e ao desmembramento da União Soviética deu origem a transferências para uma rejeição sistémica feita por partidos radicais de extrema-direita. Mas o carácter social e politicamente muito fixo dos apoiantes do PCP, baseado numa fratura histórica em relação ao PS e numa postura sectária em relação à restante esquerda e às mobilizações de massas que não controla, asseguram a sobrevivência das suas bases, mas tornam-no incapaz de crescer e aproveitar a crise do sistema político.

Só será possível ultrapassar a fragmentação e a falta de eficácia com uma Frente Contra a Austeridade constituída a partir de uma mesa redonda que desafie todas as esquerdas e movimentos sociais que declaram querer combater a austeridade

Dito isto, a crise do sistema político português é uma realidade, só que ela para já exprime-se de uma outra forma: pela abstenção e pela criação de pequenos novos partidos que vão multiplicar as siglas e a oferta junto dos eleitores. Veremos as consequências disso, mas começam a aparecer pressões de sinal contrário, no sentido de ultrapassar a fragmentação e a falta de eficácia. E isso só será possível com uma Frente Contra a Austeridade constituída a partir de uma mesa redonda que desafie todas as esquerdas e movimentos sociais que declaram querer combater a austeridade.

Sobre o/a autor(a)

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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