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“O clitóris não se estuda em anatomia porque não intervém na reprodução”

O clitóris é um órgão muito poderoso, mas numa cultura patriarcal como a nossa é difícil que lhe seja reconhecido esse poder. O objetivo é não só invisibilizar o clitóris, senão a sexualidade das mulheres e a sua maior capacidade para sentir e viver o prazer. Olalla Rodil entrevista María Lameiras, coautora do guia O clítoris e os seus segredos.

O guia O clítoris e os seus segredoscomeça dizendo que vai narrar "a verdadeira história" deste órgão após ser silenciado por muitos séculos. Por que se ocultou o clítoris inclusive na literatura científica sobre anatomia?

O clítoris é um órgão muito poderoso no corpo das mulheres. É fisiologicamente análogo ao pénis, isto é, surgem das mesmas estruturas embrionárias e a sua fisionomia é semelhante. No entanto, ainda que são anatomicamente e fisiologicamente equivalentes têm uma diferença fundamental e é que o clítoris só tem uma única e exclusiva função que é veicular o prazer através dos muitíssimos recetores sensoriais que tem. É, neste sentido, um órgão muito poderoso, mas numa cultura patriarcal como a nossa é difícil que lhe seja reconhecido esse poder. Aliás o que se fez foi retirar-lhe visibilidade e, inclusive, afastá-los dos livros científicos no século XIX, quando se descobre que o clítoris não intervém na reprodução. Eis o momento em que eclode o seu poder. O corpo da mulher estudou-se através do modelo do corpo masculino e do seu funcionamento. Ao não existir nenhum equivalente ao clítoris no corpo do homem e ao considerá-lo especialmente poderoso [pela sua capacidade para o desfrute] ganha-se-lhe medo e há que retirar-lhe visibilidade. Mas o objetivo é não só invisibilizar o clitóris, senão a sexualidade das mulheres e a sua maior capacidade para sentir e viver o prazer, se tivermos em conta que é capaz de encadear orgasmos sem que se produza um período de descanso, algo que não acontece no caso dos homens.

Ainda hoje se continua a ocultar nas escolas?

A ciência está contaminada pela moral imperante da sociedade onde se constrói. Não é por acaso que tudo o que tem a ver com a sexualidade está deturpado pelo que a própria biologia diz. Inclusive, consultando os livros de biologia teríamos de mudar a mitologia ao redor de que a partir da costela de Adão se fez Eva [refere-se assim ao estudo do corpo das mulheres no plano cientista a partir do modelo e funcionamento do do homem]. No século XIX, quando a ciência descobre que o clítoris não intervém na reprodução este órgão fica afastado dos livros de anatomia, a começar pelo Livro de Anatomia de Grey que é o mais conhecido no âmbito da medicina. Atualmente continua fora nos livros de texto ou, se aparecer, só se faz referência à sua parte externa ocultando a parte interna que mostra a grandeza, amplitude, extensão e capacidade deste órgão. Isso é completamente desconhecido no âmbito educacional. Conhecemos o nosso intestino delgado, o grosso mas não o funcionamento dos nossos clítoris. Ainda hoje estamos a conhecer em profundidade a própria anatomia do órgão graças a uma uróloga australiana que o dissecou. Isto é uma barbaridade.

A que responde esta ocultação?

É intencionada, evidentemente. Porque reconhecer que a mulher possui um órgão exclusivo para o prazer, se partimos do princípio aristotélico de que "todo o órgão tem uma função e a função dá sentido e justifica o órgão", quer dizer que o prazer justifica um órgão exclusivo na mulher. Isso é potentíssimo. Mas estas reflexões não interessam numa cultura patriarcal onde o que se tenta é diminuir a mulher e a sua capacidade sexual, invisibilizando-a e desvalorizando-a. A teoria de Freud sobre o orgasmo clitoriano e o vaginal é uma consequência disto. Esta teoria, não científica, conclui que o orgasmo vaginal é maduro e portanto, as mulheres para se converterem em mulheres maduras têm de transferir o orgasmo desde o clítoris à vagina. Isso é uma barbaridade e fez com que as mulheres pensassem que estavam a ficar loucas. É como dizer a um homem que a partir de manhã vai sentir o prazer na orelha e se não o consegue sentir não vai converter-se num homem adulto. Não obstante cumpre recordar que o prazer se estende por todo o corpo. Os orgasmos sentem-se no cérebro.

Você coescreveu o manual Carinhos, um guia didático para educar em matéria de sexualidade no secundário. Ainda persistem tabus no sistema educativo?

Claro. Vamos lá ver, o ensino desenvolve-se de costas para a educação sexual. Não se faz educação sexual, nem se prepararam os jovens para conhecerem o seu corpo e poderem viver com responsabilidade e com capacidade para tomar decisões sobre o que querem fazer com ele. O resultado é que persistem tabus, mitos, uma grande dor e mal-estar em relação à sexualidade. Continuamos numa sociedade na qual é matéria pendente desenvolver uma boa educação sexual porque a sexualidade não é algo negativo, que tenha que permanecer no espaço da moral, cada qual tem de vivê-la consoante os princípios que considere adequados para si, mas a sexualidade é fundamentalmente algo natural, bom, um espaço de crescimento importante para a comunicação e o prazer. Mesmo para a reprodução quando se quiser.

Com a sua trajetória profissional e também vital, que opinião lhe merece a reforma da lei do aborto?

Parece-me um disparate. Creio que não está em sintonia com o que estamos a viver nos últimos tempos. É um processo regressivo em relação aos avanços conseguidos pela sociedade desde a sua pluralidade. Não havia um debate social sobre o aborto. O que existia era uma minoria que não estava de acordo com uma lei que permitia a cada pessoa decidir se queria abortar e, se assim fosse, que se desenvolvesse nas condições de maior amparo para as mulheres. As que não queiram abortar, pois que não abortem. Isso é o que dizia a lei. Esta proposta afasta-nos do plano europeu onde existem, na sua maioria, leis de prazos. É uma lei que conculca o direito fundamental das mulheres a decidir sobre o seu próprio corpo. Ninguém, nenhum Estado, pode obrigar uma mulher a ser mãe.

É melhor educar do que punir?

O melhor que pode fazer esta sociedade para que os abortos não se realizem é através de uma educação sexual que permita pôr sobre a mesa a responsabilidade, os conhecimentos necessários, para evitar as gravidezes não desejadas. O aborto não é um método anticoncetivo, é um recurso posterior à falha dos métodos anticoncetivos e quanta menos educação sexual, mais abortos.

 


* María Lameiras é doutora em Psicologia e conta com uma ampla trajetória em educação sexual. Autora do manual Carinhos, dirigido a educar em sexualidade no secundário, é coautora também do guia O clítoris e os seus segredos juntamente com María Vitória Carreira e M. Elísabeth Rodríguez, prémio de criação de materiais e recursos docentes com perspetiva de género da Universidade de Vigo.

Artigo publicado em Sermos Galiza e reproduzido no Diário Liberdade

Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net

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