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Rendimento Básico Incondicional: escolhas de um debate

Dois argumentos prejudicam o debate em torno do Rendimento Básico Incondicional (RBI), rejeitá-los é uma primeira necessidade para avançar.

O primeiro é o que nos diz que quem à esquerda rejeita a ideia de um RBI fá-lo por assumir uma conceção sacralizada do papel do trabalho como expressão única da emancipação humana. O culto do trabalho, atacado por Lafargue naquilo que dizia ser a dupla loucura dos trabalhadores, a de "matarem-se no trabalho e vegetarem na abstinência", mereceu desde há muito uma crítica contundente das correntes que à esquerda sempre associaram a necessária emancipação pelo trabalho ao objetivo adjacente da superação do próprio trabalho nas suas formas mais cruéis (assalariamento). O segundo argumento é o que, afirmando o direito a um patamar material que respeite a dignidade humana, o faz depender necessariamente da instauração de um RBI. Ora, a libertação da necessidade material e a afirmação dum princípio universal à vida associado à saciedade individual é uma consigna que nos une e que dispensa moralismos. É a via para lá chegar que está cheia de bifurcações e nos impõe escolhas.

Posto isto, três questões sobre um debate em andamento:

1. Afinal, está ou não o fim do emprego em causa?

A petição pela instauração de um RBI dirigido à Comissão Europeia era transparente no diagnóstico, "O crescente aumento da pobreza, precariedade, desemprego, insegurança da população e os enormes avanços tecnológicos que reduzem drasticamente a necessidade de mão-de-obra humana, revelam a necessidade urgente da adopção de uma estratégia diferente daquelas que têm sido aplicadas até agora." Mais recentemente, o movimento acrescentava na sua página, "Mesmo o pouco trabalho disponível é cada vez menos remunerado, esta é a tendência, o investimento em automação de substituição de mão de obra e inteligência humana é o futuro. A tecnologia não recebe ordenado, não faz descontos, não há absentismo, não reclama direitos, só tem o investimento e a manutenção, muita nem precisa de operador." A implementação de um RBI responderia, portanto, a essa crise do emprego, sendo contingente à inexorável erosão salarial.

André Barata e Roberto Merrill, dois dos principais impulsionadores do debate sobre o RBI, divergem dessa perspetiva. Merril afirma que "O ponto é que mesmo numa sociedade de pleno emprego o RBI continua a ser uma medida fundamentalmente justa, teoricamente não menos justa do que numa sociedade de desemprego de massa. Tornar a justificação do RBI dependente do contexto de emprego ou não é uma estratégia que enfraquece a justificação do RBI, e que também hostiliza desnecessariamente os defensores do pleno emprego." Ao que André Barata acrescenta "A justificação do RBI não está dependente de haver ou não trabalho para todos. É válida para pleno emprego como para um contexto de falta de emprego. O que a justificação do RBI nos apresenta é uma modificação da conceção de trabalho." A questão da relação salarial e da criação de emprego é assim encerrada e no seu lugar apresentados o tema da justiça (o RBI é um direito) e o da conceção do trabalho (o RBI é uma relação extra-salarial). Vale a pena pensar o seu desdobramento.

2.O RBI é equivalente aos serviços públicos?

André Barata, na sua resposta ao texto do Francisco Louçã, fala-nos dessa justiça, "A ideia é estender os direitos sociais dos cidadãos a um rendimento básico, da mesma forma que já cobrem, ou deveriam cobrir, de forma universal o acesso à escola pública, aos serviços de saúde, à proteção social. Por que razão há-de a escola poder ser um direito universal mas um rendimento mínimo decente já não?". Sendo este um argumento muitas vezes repetido pelos defensores do RBI, três razões o contrariam.

Em primeiro lugar, o direito universal ao SNS, por exemplo, não corresponde de forma alguma a uma utilização dos seus serviços de uma forma equivalente e identicamente distribuída pelos indivíduos (que é o princípio basilar do RBI). A universalidade do serviço assenta na solidariedade dos mais saudáveis que contribuem para o tratamento dos menos saudáveis. O mesmo acontece com a educação e segurança social. Esse equilíbrio solidário é a força do sistema.

Em segundo lugar, a pujança dos serviços públicos radica na capacidade de utilizar em larga escala aquilo que são as nossas quotizações salariais, que quando usadas de forma individual são consideravelmente mais ineficientes. Quando o António Dores afirma que a implementação de um RBI teria como vantagem "abolição do fornecimento gratuito de alimentos a crianças com famílias, nas escolas ou noutras instituições.", está a propor uma solução individualizada e mercantilizada para uma necessidade que é mais eficientemente suprida pela via coletiva, que tanto está menos exposta à lógica do mercado como é capaz de contrariar a sua lógica de acumulação.

Por fim, o RBI não se equivale a um serviço público universal porque, ao contrário dos restantes, exige uma mobilização financeira que é conflitiva com o atual salário direto de quem vive do trabalho. E aqui, entramos necessariamente na questão do financiamento. Sabendo nós, deste debate, que um RBI de 420 euros mensais exigiria uma mobilização de 53% do PIB, estaremos de acordo que falamos de uma grande transformação do modelo tributário, e não de uma pequena etapa para um sistema mais justo. Apesar dos defensores do RBI falarem numa miríade de fórmulas de financiamento, apenas três foram concretamente apresentadas e discutidas no espaço político. Vejamos.

3. O financiamento do RBI elimina a luta pelo salário direto?

Alguns promotores do RBI falam na possibilidade do financiamento ser realizado exclusivamente via IVA, levando mesmo à abolição de impostos como IRS ou IMI; esta proposta foi submetida à comissão de programa da candidatura LIVRE/Tempo de Avançar. Sendo o IVA um imposto indireto está claro de ver que o ónus desta solução recairia sobre os salários, sobretudo os mais baixos, pressionando os custos de produção e penalizando quem recebe menos. Para além do mais, os 420 euros não valeriam o mesmo, pois seriam engolidos pela pressão inflacionária do aumento do IVA.

O euro-dividendo ou a responsabilização do orçamento comunitário nesta matéria são outras das soluções, a segunda defendida pelo PAN nas ultimas eleições europeias. O efeito inflacionário dessa criação fictícia e os seus efeitos no salário, para não falar na masmorra austeritária em que se transformou a UE, já foi assinalada, não obstante, fica a questão de saber quais seriam os efeitos geo-políticos de um RBI a 420 euros em Portugal e de 1700 euros na Alemanha, uma vez que se defende a variação indexada ao salário médio de cada país.

A terceira e mais consistente solução para a instauração de um RBI passaria pela alteração radical do IRS. Nesse modelo bem contextualizado por Philippe Van Parijs, os muito pobres teriam de pagar menos e os muito ricos pagar mais, mas como estes últimos são minoritários na sociedade a solução só poderia passar, também, por um aumento do imposto sobre os menos pobres. Como o próprio explica: “Os trabalhadores que recebem salários modestos, cuja alíquota de imposto marginal precisaria ser aumentada, estão também entre os principais beneficiários da adoção de um sistema de renda básica, uma vez que a tributação maior de seus salários ficaria abaixo do nível da renda básica que eles passariam a receber.”. Retira-se, portanto, ao salário o que se quer acrescentar em alocação universal.

Esta transformação confronta-nos com escolhas decisivas à esquerda. À partida a de saber se o combate à exploração geradora da necessidade e a sustentação dos serviços públicos assentes no salário indireto passam pela diminuição ou alocação universal dos salários médios? É que a defesa de uma transformação na conceção do trabalho não apaga as duas lógicas marcantes do capitalismo no século XXI, a da expansão da relação salarial, pois nunca na história tantos dependeram exclusivamente do salário para sobreviver, e a da intensificação da taxa de exploração que limita a distribuição do trabalho por todos.

Neste mundo onde habitamos, a reprodução do capital ainda dita a apropriação do trabalho e a desorganização da produção, e nesse cenário, os salários diretos ainda são a nossa melhor defesa. Neste mês em que se completam cinco anos da aprovação do PEC I, o marco inaugural na era da austeridade, vale a pena perguntar se os salários dos professores e enfermeiros estariam mais seguros se transformados em alocação universal à disposição do Estado? O avesso é que parece ser verdadeiro.

Em suma, tanto o RBI não é equivalente a um serviço público como não responde ao combate necessário pela distribuição do trabalho. É fraco como uma justiça distributiva e curto na capacidade de revolucionar as relações de produção e propriedade. A mobilização social de que precisamos neste momento decisivo implica sermos claros no tipo de sujeito político que queremos construir, pelo que a defesa de um RBI ganharia em aprofundar as suas propostas que ultrapassam o campo do próprio rendimento, como é o caso da ocupação legitimada de casas desocupadas e a implementação de um salário de disponibilidade efetivo em profissões com características de intermitência, como é o caso dos artistas. É que este tipo de solução encontra eco em classes e grupos particulares da sociedade, acumulando um princípio de oposição tão necessário para a transformação da economia dominada por um sistema financeiro parasitário.

Da mesma maneira, a crítica do sistema condicional de apoios sociais não nos desconvoca do embate necessário contra a estigmatização e o controlo social criados nestes últimos anos. Quando o governo grego estabelece que 300 mil famílias possam não passar frio em suas próprias casas e para isso mobiliza um recurso condicional, estamos perante esse campo do possível.

Nunca na história tivemos tanta capacidade de produzir o necessário para todos, nem nunca estivemos tão atrasados nos combates que façam esse outro mundo possível.

Artigo publicado por no blogue Inflexão

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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