You are here
A falsa higienização e a visão retrógrada da noite de Lisboa
No passado dia 13 de Janeiro a Assembleia Municipal de Lisboa (AML) discutiu e votou um conjunto de recomendações defendidas por uma petição de 624 moradores de bairros históricos e de diversão noturna da cidade de Lisboa, em particular do Bairro Alto e do Cais do Sodré. O problema da petição não é novo. Trata-se do excesso de ruído para os moradores destas zonas, que decorre essencialmente do facto de elas serem zonas privilegiadas de diversão noturna para os cidadãos e as cidadãs lisboetas.
Não sendo novo, o problema é bastante moderno. Depois de anos a fio em que o Estado Novo colocava sérios impedimentos à utilização do espaço público, aos ajuntamentos de pessoas e ao uso da noite para diversão e convívio, só o 25 de Abril abriu portas ao direito à cidade, ao uso livre e coletivo do espaço público pelos cidadãos e pelas cidadãs e a uma visão moderna e democrática da vivência da cidade. Contudo, perante as queixas dos moradores relativamente ao ruído, os agentes da cidade e o poder político tinham obrigação de responder com seriedade à seguinte questão: será possível compatibilizar os diferentes usos que as pessoas atribuem ao Cais do Sodré, ao Bairro Alto e à Bica sem cair em tentações proibicionistas, autoritárias e conservadoras de restrição dos direitos e das liberdades individuais?
Eu acho que sim. Mas para o fazer exigem-se pelo menos três coisas que estão muito longe de existir em Lisboa: a recusa das lógicas corporativas entre os atores envolvidos; a capacidade de entender que a cidade é um espaço público que não é só para alguns; e a inteligência política para saber encontrar soluções coletivas.
As lógicas corporativas são bem conhecidas. Os bares do Cais do Sodré foram obrigados a fechar uma hora mais cedo e o seu porta-voz veio de imediato à televisão dizer que o problema não estava no horário dos bares mas na venda e no consumo de álcool no exterior, que no seu entender devem ser proibidos. Já o secretário-geral da Associação Nacional de Empresas de Bebidas Espirituosas (ANEBE) defendeu que deve ser proibido o consumo de bebidas alcoólicas engarrafadas na rua e a utilização de copos de plástico. Ambos procuram a mesma estratégia: defender o seu negócio, responsabilizando os cidadãos e as cidadãs que, no seu legítimo direito, ficam na rua a conviver e a consumir a sua bebida.
O segundo problema que impede a concretização de soluções é o da incapacidade de se entender que a cidade é um tipo de espaço público onde estão condenados a conviver agentes com interesses divergentes. Quem decide morar nestes bairros sabe bem que irá morar numa zona de diversão noturna. Quem decide abrir bares nestes locais sabe que irá desenvolver comércio numa zona com moradores e com gente que convive na rua. E quem decide ir conviver à noite para estas zonas sabe que irá estar perto de zonas residenciais. O problema é este: se os consumidores, os bares e os moradores quiserem continuar a pensar que o problema só se resolve com a defesa do que consideram os seus próprios direitos, então o problema continuará por muitos mais anos.
O terceiro problema é o da falta de inteligência do poder político. Perante a petição que se colocou na Assembleia Municipal de Lisboa, todos os grupos parlamentares, com exceção do do Bloco de Esquerda e de três deputados municipais independentes, aprovaram uma recomendação para que a Câmara Municipal de Lisboa utilizasse o “exercício do magistério de influência para que seja produzida legislação no sentido de condicionar o consumo de álcool no espaço público.”
Isto é, a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou uma recomendação para que em breve se possa colocar na agenda a proibição do consumo de álcool no espaço público destes locais. Isto levanta quatro problemas absolutamente intoleráveis a quem tem da cidade uma visão moderna e democrática.
O primeiro problema é o de que esta media é uma cedência acrítica e cega às lógicas corporativas. Estimulando a proibição do consumo em espaço público, a AML apenas está a dizer que os cidadãos e cidadãs são obrigados a recorrer a uma discoteca para se poderem divertir. Isto é um mero favor aos comerciantes das discotecas, que passam a deter o monopólio da diversão noturna.
O segundo é o de que esta recomendação revela uma visão retrógrada da cidade e do espaço público. Ao invés de procurar soluções coletivas e responsáveis entre todos os agentes da cidade, a AML prefere estimular a lógica da falsa higienização do espaço público, afastando os cidadãos e as cidadãs da rua, restringindo os direitos de uso do espaço público, condicionando as liberdades fundamentais do exercício de sociabilidades públicas e promovendo uma visão conservadora da cidade e da vida noturna.
O terceiro problema é o de que desistindo de uma solução moderna, a AML apenas tem a propor uma política proibicionista sobre os usos do espaço público, transformando o Estado num mecanismo disciplinador e normativo das sociabilidades dos cidadãos e das cidadãs.
E o quarto problema é o de que estimula uma política claramente classista. As discotecas e bares do Cais do Sodré cobram elevados preços de entrada e as bebidas no seu interior são muito mais caras. Os jovens que não têm dinheiro para entrar numa discoteca ou simplesmente não querem ir a esses espaços, passam a ter um Estado que lhes diz que as suas práticas de sociabilidade e diversão noturna são menos legítimas do que as de quem gosta e tem recursos para entrar numa discoteca.
A proibição do consumo de bebidas no espaço público apenas reflete a cedência mais básica e irresponsável à mercantilização do espaço público e apenas alimenta uma visão absolutamente retrógrada, provinciana e ultrapassada do direito a uma cidade moderna e democrática. Exigir-se-ia maior responsabilidade ao poder político. Infelizmente, mais uma vez, ele decidiu continuar a fazer parte do problema.
Comments
A "movida nocturna" de Lisboa
A "movida nocturna" de Lisboa é deprimente. Os cidadãos não têm o mínimo de consciência crítica pelos actos que praticam durante este fenómeno (extensível a outras áreas da sociedade).
Fica a faltar a proibição de fumar tabaco em espaços fechados. É uma medida urgente que peca por um atraso injustificado na sua aplicação de mais de uma década.
Churrilho de asneiras...cada
Churrilho de asneiras...cada vez que me tento aproximar do BE dou de caras com coisas destas...por amor da santa
Estou de acordo consigo e
Estou de acordo consigo e faço minhas as suas palavras. Muita coisa me atrai no BE, mas muita coisa me arrepia, como esta apologia dos meninos malcriados que reclamam a "sua" liberdade para fazerem tudo o que lhes passa pela cabeça, ignorantes da delicadeza e da cortesia: se quem está amorar num lugar onde abriu um bar que o não deixa dormir, que se mude! É assim que estas criançolas julgam que se ganha autoridade moral para emitir opiniões?
A mim, que nunca me senti
A mim, que nunca me senti atraída pelo Bloco, o que me arrepia é a pulsão totalitária de higienização da cidade, excluindo quem não pode pagar ou não se enquadra no "dress code" do dono do bar...
Discordo completamente. O
Discordo completamente. O direito dos moradores ao sossego e ao descanso sobrepõe-se claramente ao "direito" de utilizar o espaço público para beber (deixando também um monte de lixo na rua) e fazer barulho pela noite dentro. Existem vários locais em Lisboa (Docas, Parque das Nações, junto a S. Apolónia, por exemplo) em que é possível utilizar o espaço público para este efeito, durante toda a noite toda, sem incomodar residentes. Esta visão falsamente moderna e supostamente "de esquerda", de que o espaço público se destina a ser abusado em vez de usado é que deve ser urgentemente ultrapassada.
Discordo da sua discordância.
Discordo da sua discordância. Há zonas da cidade - as que o texto trata - em que o "direito ao descanso" sempre conviveu com a vida noturna. E o problema real do lixo nas ruas resolve-se melhor pondo mais (ou nalgumas ruas pelo menos um) contentores de lixo do que varrendo as pessoas para fora dali.
Que triste imagem esta duma
Que triste imagem esta duma 'esquerda' que continua sem perceber que os direitos só existem se houver responsabilidade de quem usufrui deles e respeito pela liberdade dos outros, além de confundir mercadorização e higienização com civismo. O uso do espaço público é obviamente um direito inalienável mas existem regras de convivência para o seu usufruto por todos. E quanto ao descontrolo total do consumo de álcool (uma droga legal) pelos jovens, nem uma palavra...
Que triste imagem esta dum
Que triste imagem esta dum 'Fonseca' que ainda na semana passada era Charlie e agora já quer regular os direitos e liberdades das pessoas de acordo com a sua noção de "civismo"... E quanto ao descontrolo total dos preços do álcool vendido nos bares, nem uma palavra...
Boa Noite,
Boa Noite,
Pessoa que escreve estas palavras só demonstra que a ignorância de um zé-ninguem.
Caro jovem, os ditos "moradores" já cá moravam no Bairro, e deixe-me dizer ainda me lembro das noites de 80's inicio dos 90's, as pessoas que frequentavam o bairro respeitavam o local bem como os moradores.
A nova geraçao incluinda a sua, transformou a noite do bairro numa completa lixeira e ruidosa.
As proprias pessoas que exploram os espaços de bebidas não moram no bairro, quando fecham o negócio
ás 2h00/3h00 é contar o dinheiro e ir para sua casa dormir sossegado, deixando para trás todo lixo causado proveniente do seu espaço. Não moram aqui no bairro, que fique sujo que de manha a CML lava as ruas com as taxas de saneamento pagas obrigatoriamente pelo habitantes do bairro.
Pois este jovem não tem os pais/avôs a morar no bairro caso contrario não escreveria tanta burrice.
è o que temos hoje. os turistas adoram a nossa noite! podem fazer tudo aquilo nem qualquer problema
que nunca puderam nos seus paises de origem, ruas seguras limpas sem a degradação que vemos aqui em Lisboa.
não admira que os paises nordicos/escandinavos sejam a sociedade mais avançada/bem sucedida do mundo e este País
com jovens desta mentalidade que ainda nos tornam proximo do 3.º mundo.
O que interessa é beber e deixar as ruas dos moradores do bairro sujas, se tão mal que se mudem.
Eu próprio que já cá morava antes mesmo dos seus pais terem nascido.
Faça um favor, EMIGRE daqui.
Caro João Martins,
Caro João Martins,
Percebeu mal o texto. Nunca defendi que quem está a morar junto a um bar que não o deixa dormir se deve mudar. Defendo o oposto, o bar deve respeitar o descanso e o morador deve respeitar a existência de vida noturna. Se ambos souberem que têm direito ao espaço, é possível encontrarem soluções coletivas. A minha “autoridade moral”, como diz, para emitir opiniões é exactamente a mesma que a sua. Afinal, ainda vivemos num país com liberdade de expressão.
Caro Paulo,
O que estou a discutir não é se o direito ao uso do espaço público se deve sobrepor ao direito ao descanso e ao sossego. O que estou a discutir é se é o proibicionismo é uma boa política para resolver o problema. Eu acho que não é e explico porquê. Como digo, eu acho que o direito ao descanso tem que ser compatibilizado com o direito ao espaço público. Acho que é possível se houver vontade de todos os envolvidos.
Caro Pedro,
Concordo consigo. O direito inalienável a uma cidade limpa faz-se colocando mais caixotes (bem insuficientes no bairro alto e no Cais do Sodré) e com a responsabilidade da autarquia em ter um serviço de limpeza mais intenso, como tem aliás noutras zonas da cidade que são parte do postal turístico.
Caro Afonseca,
Concordo inteiramente consigo: “uso do espaço público é obviamente um direito inalienável mas existem regras de convivência para o seu usufruto por todos”. É esse o meu ponto. Sobre o consumo de álcool pelos jovens, nem uma palavra, claro. Há regras de consumo de álcool que devem ser respeitadas. O resto é do foro da liberdade individual e da responsabilidade coletiva da sociedade em perceber como tornar os consumos mais responsáveis, quando não o são.
Caro Manuel José,
Eu concordo consigo. Há vários problemas que têm que ser resolvidos. E nunca me leu a defender, como refere, que “ o que interessa é beber e deixar as ruas dos moradores do bairro sujas, se tão mal que se mudem”. O meu argumento é outro: proibir o consumo de bebidas na rua é uma má política para resolver o problema. Se os moradores querem o problema resolvido, têm de entender que é preciso uma solução que conjugue o seu direito ao descanso e o direito das pessoas em conviverem nestes espaços. O que defendo não é que o direito ao ruido e à lixeira é mais importante que o direito ao descanso dos moradores. Defendo que é possível estes espaços serem espaços de convívio noturno sem as ruas serem uma lixeira e serem também espaços de residência. E não, caro Manuel. Não acho que por ter esta opinião e expressa-la, lhe dê o direito de me mandar emigrar.
Um abraço,
João Mineiro
Caro João,
Caro João,
Frequento a noite de Lisboa desde os anos 80 e devo dizer-lhe que nunca vi tanto lixo e falta de civismo. Os habitantes do Bairro Alto e do Cais do Sodré têm direito ao sossego e à liberdade tal como todas as outras pessoas. Urina e fezes nas escadas dos prédios, carros dos moradores vandalizados, barulho até altas horas da madrugada e prédios pintados com "desenhos" de mau gosto deviam merecer-lhe um outro tipo de comentário/crónica. Deixo-lhe aqui uma proposta. Por que não transformar a zona ribeirinha de Lisboa num espaço de diversão moderno e amplo? Com a construção de um novo porto de contentores (segundo as notícias no Barreiro), Lisboa tem a grande oportunidade de se transformar numa cidade cosmopolita, civilizada e onde os valores da liberdade e do respeito falam mais alto.
Não me é difícil concordar
Não me é difícil concordar com quase metade da arguta argumentação do presumível jovem signatário, excepto na implícita defesa do ruído, aparentemente tão liberal, mas apenas no pior sentido da palavra, n'é?, naquele em se desrespeita os vizinhos, oh, os demasiado próximos; quando lhe for possível, presumível jovem, tente crescer um pouco; caso não possa, vá para o .... bom, para uma qualquer parte bem feia, p.ex., tente morar, dormir uns dias entre Santos e o Cais do Sodré; vai, "decerto, acordar inteiramente desperto, tão activo", para o seu dia-a-dia profissional ou algo assim... você trabalha logo pela manhã, ou nem por isso?)
Add new comment