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A sensatez é revolucionária
Na sua coluna de opinião no Expresso, Daniel Oliveira adere à tese que alguma imprensa internacional vulgarizou nos últimos dias: a esquerda radical grega está em vias de moderação. Para Oliveira, o Syriza “adapta o seu discurso aos temores mais que razoáveis dos gregos” e regista uma “crescente moderação programática”. A emergência de partidos como o Syriza e o Podemos faz parte de uma “recomposição da esquerda” que “poderá ser interna ou externa aos partidos social-democratas. Ou as duas coisas em simultâneo. Ou primeiro uma e depois outra”. Assim, “o papel da esquerda não será o de propor uma sociedade nova. Será o de defender muitos dos adquiridos civilizacionais da sociedade antiga”.
Do texto de Daniel Oliveira resultam pelo menos três perguntas. Aqui vão, comentadas.
1. O programa do Syriza é mesmo “moderado”?
No fim de semana passado, o Syriza realizou uma conferência programática. Tal como em 2012, o centro da sua proposta é a supressão da maior parte da dívida grega. A partir da margem de manobra assim conquistada, o Syriza desenvolve um programa de reposição de rendimentos e direitos do trabalho e de resposta à crise humanitária, com a garantia de acesso gratuito a bens essenciais. É verdade que esse programa é marcado pela sensatez: na Grécia, a miséria e a fome explodiram em poucos anos. Mas não é um programa moderado. Em vez de falar de uma “agenda para a década” que mantém as rendas financeiras, o Syriza responde à urgência - “a supressão da maior parte do valor nominal da dívida” - e assume que haverá fortes perdas para os credores. Esses credores foram, um dia, grandes bancos privados europeus. Hoje, são sobretudo as instituições da troika (que ficaram com a dívida e puseram aqueles bancos a salvo). O FMI nunca aceitou que um devedor impusesse uma renegociação. O Syriza quer fazer o que nunca foi feito. É sensato e é radical.
2. Que recomposição da esquerda pode vencer a austeridade?
Um dos traços comuns entre o Syriza e o Podemos é que se afirmaram contra os partidos socialistas grego e espanhol. Nenhum deles algum dia pretendeu “condicionar” a casta do PSOE ou um “programa mínimo de compromisso” para governar com o PASOK. Tsipras e Iglesias sabem bem que, quando afirmarem a escolha dos seus povos contra a austeridade, encontrarão sempre os partidos socialistas do lado dos chantagistas. Em Espanha e na Grécia, o movimento social e o tempo político abriram espaço à esquerda. E a esquerda escolheu queimar as pontes com o centrão austeritário. Esta parte complica as contas de Daniel Oliveira, que tem proposto uma aproximação ao PS para governar com António Costa. O comentador torna-se obscuro: a recomposição da esquerda “poderá ser interna ou externa aos partidos social-democratas. Ou as duas coisas em simultâneo. Ou primeiro uma e depois outra”.
Vaticínios à parte, a proposta de Daniel Oliveira para Portugal 2015 é um partido, o Livre, “que crie pressão no flanco esquerdo do PS”. Para ter “voz no Conselho de Ministros”, como diz Rui Tavares, porque “não é possível uma solução sem contar com o PS” (DN, 3.2.2014). Esse caminho não é a sensatez do Syriza, é o encolhimento das alternativas sob os abraços de António Costa, como Luís Leiria já bem exemplificou. Na Grécia, esta política tem um partido, chama-se Esquerda Democrática (Dimar) e saiu do Syriza em 2011 para ir governar. Aplicou o extremismo do memorando “no flanco esquerdo” do PASOK e da Nova Democracia e está hoje reduzido à insignificância. A única recomposição que conta fez-se contra os partidos socialistas, conquistando parte do seu apoio popular. Todas as estratégias de aproximação reforçaram os partidos socialistas e atrasaram qualquer recomposição.
3. A esquerda é “uma mudança com a garantia de mínimos de segurança” para “defender adquiridos civilizacionais da sociedade antiga”?
A emergência da esquerda anti-austeridade faz soar as sirenes europeias em 2015. As ameaças e chantagens contra a Grécia e, mais cedo do que tarde, também contra os povos de Espanha, vão mostrar que esta União é uma prisão. No tempo da deflação e do tratado orçamental, nenhuma agenda de progresso virá de Berlim ou Paris para responder à pressão do referendo inglês ou ao crescimento de Le Pen. Foi o establishment e o centro político quem trouxe a Europa à tempestade.
Para lhes responder, a esquerda precisa de objetivos sensatos e revolucionários: recuperar o salário, reconstruir os serviços públicos, retomar a soberania sobre o que a todos deve pertencer.
Claro que a parada é muito alta e os riscos de desilusão são sempre reais para quem ainda respira. É por isso que um governo do Syriza depende da força social na Grécia e da solidariedade internacional. Como disse Pablo Iglesias, “Alexis sabe, tal como nós, que ganhar as eleições não é tomar o poder”.
A esquerda pode perder - na capitulação ou na luta - e o castigo virá de quem tem vencido sempre. Mas podemos vencer e isso será conflito, não será “segurança”. Não será regresso, será invenção. Não da Comissão Europeia, nem do Ecofin, mas dos povos, que são quem pode conquistar “adquiridos civilizacionais” e até concretizar “novas sociedades”.
Definitivamente, ao pedir ao Syriza para “oferecer uma mudança com a garantia de mínimos de segurança”, Daniel Oliveira está a pedir demais.
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O drama do Bloco de Esquerda
O drama do Bloco de Esquerda é não ter estado entre aqueles que aplicaram o extremismo do memorando e ainda assim caminhar a passos largos para a insignificância do Dilmar.
O drama de quem vive do
O drama de quem vive do rendimento do seu trabalho é ter consciência de que a sua grande maioria prefere acomodar-se do que lutar pela mudança. Esta luta tem custos que muitas vezes se refletem dentro da própria classe. O desgaste provocado pelos bem falantes que populam os órgãos de comunicação social do país não precisam de eco nestas paragens. Adjetivando o memorando de extremismo, dá a entender que pode fazer muito mais pelos prejudicados com a sua implementação do que o seu comentário deixa entender.
E o drama de quem vive do
E o drama de quem vive do rendimento do seu trabalho, senhor HC, é saber que uma grande percentagem da nossa sociedade prefere o comodismo à luta. Esta luta tem custos, ela é repetidamente maldita pelos órgãos de informação do Status Quo e os seus protagonistas tratados como extraterrestres. Ao apelidar de extremismo o memorando, dá a entender que pode fazer muito mais pela causa do que comentário que aqui deixou.
Para além do caso do DIMAR,
Para além do caso do DIMAR, referido no texto, outros exemplos eloquentes mostram, de forma eloquente, que a esquerda, sempre que participou em governos com os partidos "socialistas", não só não impediu que estes aplicassem medidas de cariz neoliberal mas também pagou caro por isso. Assim, em Itália, a Refundação Comunista nunca mais se recompôs da sua participação no governo de Prodi; em França, os Verdes sofreram com a participação no governo de Hollande, o mesmo sucedendo na Bélgica, após integrarem um governo com "socialistas" e liberais. Recordo também que, na Alemanha, foi o governo de Schroder, com o SPD e os Verdes, que cortou com grande parte dos direitos laborais. E, voltando cá à "paróquia", o que aconteceu ao "Zé" (Sá Fernandes) e ao movimento da Helena Roseta? Foram "metidos no bolso" pelo António Costa, sem qualquer influência visível na governação municipal de Lisboa. Em todos esses casos, a esquerda que aceita esse tipo de compromissos acaba por fazer o papel de "flor de lapela" dos "socialistas", dando uma caução de esquerda a políticas neoliberais. Logo, aos contrário do que é "papagueado" pela comunicação social dominante, aceitar ir para um governo do PS nessas circunstâncias não seria fazer parte da solução, mas apenas juntarmo-nos ao problema. O que não invalida que o BE esteja (como sempre esteve) disposto a apoiar medidas de esquerda tomadas por um governo do PS. Agora, não nos peçam que demos um voto de confiança a um governo que mantenha cortes em salários e pensões, que mantenha as carreiras congeladas, que diminua direitos laborais e sindicais, que apoie privatizações de setores estratégicos da nossa economia, que imponha pesados impostos sobre o trabalho e quase não taxe o setor financeiro, etc...
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