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Self Made Man sem memória!

A empresa “Acredita Portugal”, que utiliza as bases de dados do IEFP, ignora os 598 mil desempregados do país (dados oficiais) e faz do empreendedor o herói, aquele que arrisca para ser patrão, dono, chefe. Artigo de Maria de Baledón
Acredita Portugal mais não é do que um desses casos gritantes de promoção do voluntarismo e insuflação barata dos egos.

Nunca como agora se falou tanto de ser capaz, de conseguir, de alcançar, de almejar um sonho, um projeto, um prémio, uma benesse.

Nunca como agora se colocou tanto o enfoque na vontade, na capacidade de querer. E de crer. Em algo exterior, superior, externo, mas também no próprio, no eu, no individual, no gajo sozinho, no fura-vidas, no bate punhos, no empreendedor, no que porfia e consegue, no que luta e conquista, no que trabalha e merece, no que tem boa vontade e recebe retorno.

Tudo parece tão fácil!

Ele é os livros de auto-ajuda a merecerem lugar de destaque nas fnacs. Ele é o facebook com os quero, posso e mando. Ele é as publicidades com o sonha e terás.

Tudo parece tão fácil! E tão simples!

Afinal, basta querer! E crer! Acreditar. Acreditar muito e com muita força que tudo mudará. O teu bairro fica na mesma, a tua rua também, a tua cidade não se altera em nada, o teu País afunda-se e, na Europa, a Grécia é chantageada. No entanto, basta acreditar que no teu horizonte de medida tudo se transforma. Continuaremos desempregados e precários e pobres e, no entanto, brada-se aos céus: "Acredita Portugal!".

A lógica que faz depender tudo do homem isolado e a ideia de que a realidade é suscetível de ser alterada com base no pragmatismo, na fé e em passos de mágica, são assustadoras.

São, porém, ideias muito bem enraizadas no senso comum, no nosso dia-a-dia, nas conversas de café, em artigos de jornais moralistas, em concursos imbecis e também em campanhas a nível nacional de instituições de renome.

Acredita Portugal mais não é do que um desses casos gritantes de promoção do voluntarismo e insuflação barata dos egos. Esta empresa, que utiliza as bases de dados do IEFP, enviou-me, no passado dia 19 de Dezembro, um email ao qual deveria responder no prazo de 2 dias. Tratava-se, nada mais, nada menos do que um convite para aderir a um concurso de empreendedorismo, sendo que a empresa disponibilizava 500 mil euros em prémios que permitiriam transformar a minha eventual ideia num plano de negócios.

Consultando o manual percebemos que a empresa é assente em premissas, no mínimo, curiosas. “O nível de empreendedorismo em Portugal é muito limitado pela cultura nacional, na medida em que a população portuguesa é bastante relutante ao risco. Prevalece o medo social da falência e a recusa no desenvolvimento de carreiras pessoais independentes. Os portugueses continuam a eleger a estabilidade de trabalharem por conta de outrem em vez de optarem por um negócio por conta própria. O medo de falhar fala mais alto, uma vez que a cultura portuguesa ainda penaliza bastante o insucesso. Neste contexto nasceu a Associação Acredita Portugal, uma organização sem fins lucrativos, políticos ou religiosos que tem como missão 'Fomentar uma cultura da possibilidade para libertar o potencial empreendedor dos portugueses'. Centramos a nossa atividade em dois eixos de atuação: a promoção de uma atitude positiva e disponibilização de ferramentas de capacitação”, afirmam à laia de apresentação.

Gosto especialmente da parte esotérica da "libertação" do potencial empreendedor. Também é interessante e muito científica "a promoção da atitude positiva" ou a ideia de que a cultura nacional se resume a medos, insucessos e pré-conceitos vagos como estabilidade.

Esta associação, Acreditar Portugal, ignora o contexto: os 598 mil desempregados do país (dados oficiais) e faz do empreendedor o herói, aquele que arrisca para ser patrão, dono, chefe.

Também aqui parece que basta querer, basta colocar a questão de forma pragmática. O eu no centro de tudo, quais doses de coaching que ignoram os restantes e a memória e vivem apenas o momento e o agora.

A curiosidade reside em que os idiotas, ou seja, aqueles que tiverem ideias de negócio, se submetem a um concurso para ganhar dinheiro que lhes é emprestado ficando, assim, endividados para o resto das vidas. Ganha-se um empréstimo do parceiro do Novo Banco.

Como se fosse fácil a um desempregado montar um negócio a juros altíssimos. Como se fosse este o cerne da questão, a receita para acabar com o desemprego à custa do endividamento.

Nunca como agora a vida esteve tão difícil para tantos portugueses e nunca a vida se nos foi e é apresentada como sendo tão fácil. Um paradoxo que dá que pensar.

Artigo de Maria de Baledón

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