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Pepito, o “nosso homem” do PAIGC

Neto de judeus polacos sobreviventes no gueto de Varsóvia e filho do advogado cabo-verdiano Artur Augusto da Silva, preso pela PIDE por defender nacionalistas africanos, Carlos Schwarz da Silva nasceu em Bissau em 1949 e morreu a 18 de Fevereiro passado, em Lisboa.
Carlos Schwarz da Silva (1948-2014)

A notícia colheu-me de chofre, ao ler o artigo sobre a vida deste resistente ao fascismo e cabouqueiro de uma jovem nação.

Encontrámo-nos no movimento associativo em 1972: eu na Direção do Técnico, ele Presidente da AE do Instituto Superior de Agronomia, ambos ligados à corrente “por um ensino popular” e à UEC (m-l), organização estudantil do Comité Marxista-Leninista Português.

As prisões e a clandestinidade separaram-nos fisicamente. Após o 25 de Abril as notícias foram escasseando até que, numa digressão poética à Guiné, o Zé Fanha encontrou o Schwarz a chefiar o DEPA – Departamento de Experimentação e Pesquisa Agrícola – olhado com alguma desconfiança pelos quadros formados na escola soviética.

Como relata o próprio no documentário na RTP, o seu “primeiro amor profissional” consumou-se na cultura do arroz na época seca, com rega a partir do rio Geba: uma utopia que arrancou com 12 famílias, chegando a englobar 12 mil. Em vez de escrever uma lista de dificuldades, Pepito (nome pelo qual é conhecido em toda a Guiné) escolheu mobilizar as pessoas para ação, partindo do que é possível fazer localmente.

Reencontrámo-nos em Lisboa após o golpe militar de Ansumane Mané que depôs Nino Vieira, “uma espécie de 25 de Abril”, com o Mário Tomé, também aluno do Liceu de Bissau e colega de um irmão mais velho do Pepito. Desfiámos memórias e preenchemos vazio de mais de 20 anos.

À minha curiosidade sobre se o PAIGC tinha uma política de infiltração concertada nos partidos de esquerda portugueses repondeu com toda a simplicidade: “Respeitávamos as simpatias de cada um(a) em Portugal: o PC, os m-l, o MRPP, os católicos, os trotskistas – estes, sobretudo entre o pessoal de Cabo Verde. E claro, dávamos prioridade à luta contra a guerra colonial. Mas nem era preciso, a nossa malta às vezes era mais independentista que os próprios africanos…”

O espírito crítico e a coragem cívica do Pepito não pouparam os homens no poder. Luís Cabral, primeiro presidente da RGB, “tinha tal pavor de atentados que a escolta presidencial atropelava pessoas e animais ao atravessar Bissau, a caminho do aeroporto; aconselhei-o a viajar menos”.

Após o golpe de Estado a que recusou qualquer apoio, escreveu a Nino Vieira denunciando a onda xenófoba contra os cabo-verdianos, irmãos na luta pela independência. Não ousaram assassiná-lo, era um quadro fundamental para a agricultura guineense. Mas as provocações e tiros para o ar sucederam-se junto à casa de Pepito no bairro do Quelele, em Bissau, pilhada e destruída em 1998, nos combates entre as forças de Ansumane Mané e de Nino Vieira.

Em 1991 fundou a AD (Ação para o Desenvolvimento) e a primeira rádio comunitária, a Rádio Voz Quelele, com um papel fulcral no combate à epidemia de cólera de 1994. Hoje há também uma televisão comunitária, uma escola de artes e ofícios e um centro de animação infantil.

Pepito foi deputado à Assembleia Nacional e ministro do Equipamento Social no governo provisório de Francisco Fadul, até às presidenciais de 2000, ganhas por Kumba Yalá e que mergulharam o país em novo ciclo de tribalismo, corrupção e golpes de estado, antes e depois do regresso de Nino Vieira, transformando a Guiné-Bissau num narco-Estado.

No meio da desgraça, Pepito nunca perdeu a esperança. “Recomeçámos tudo mais uma vez, menos por convicção, mais por tradição. Desistir é perder e recomeçar é vencer”, escreveu num texto autobiográfico a que chamou “A sombra do pau torto”.

Na diversidade das 32 etnias (fulas, balantas, nalus…) não via um problema, antes uma riqueza e uma oportunidade extraordinária. “Não basta criticar, temos o dever e a capacidade de construir outra Guiné-Bissau, de respeito, de cultura, de história, e de pô-la em contraponto contra a meia dúzia de pessoas dos negócios fraudulentos, do tráfico de armas, de drogas”.

Com a AD percorreu de novo os caminhos da Guiné, de norte a sul. No Parque Nacional de Cantanhês desenvolve programas de soberania e segurança alimentar, de gestão ambiental e de ecoturismo, numa zona classificada como “o último contraforte antes do deserto”.
Neste combate, Pepito sempre mobilizou e contou com solidariedades internacionais. Mas denunciou com frontalidade “os turistas do mercado do subdesenvolvimento” que aproveitam todos os fundos e programas ditos de desenvolvimento, sem lhes interessar os resultados (ou a falta deles) junto das populações, metaforicamente designadas como “alvo”…

O “branco grande” que assumiu muito cedo a pátria guineense gostava de citar a sabedoria do rei dos nalus, seu pai adotivo: “para matar uma formiga basta um dedo, mas um dedo não chega para levantar uma formiga”. Sabendo ouvir e aprender, Pepito conquistou os corações africanos, compartilhando-os com a família portuguesa: Isabel, a sua companheira de sempre, os filhos e netas.

Segundo o cineasta Flora Gomes, seu amigo, Pepito “Morreu trabalhando. Queria fazer muitas coisas ao mesmo tempo. De tanto trabalhar não se deu conta da fragilidade do ser humano.”

Disseste um dia: “Quero viver a minha época”. Conseguiste, pá!

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda
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