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Ucrânia: À medida que o debate sobe de tom, ambos os lados se enganam

É possível condenar a invasão de Vladimir Putin e acreditar que não há lugar para os fascistas no novo governo de Kiev. Artigo de Jonathan Freedland no jornal Guardian.
Foto Robin Koskas/Flickr

Nos debates sobre assuntos longínquos, "ambos" parece ser a palavra mais difícil. O da Ucrânia tem sido exemplar, com a discussão reduzida ao esgrimir de argumentos a preto e branco, com cada lado a lançar falsas dicotomias ao outro - sublinhando que todos os aspetos do desenrolar desta crise podem ser reduzidos a uma escolha entre isto ou aquilo, quando a verdade se encontra muitas vezes em ambos. 

Então, um lado condena com veemência a Rússia pela sua incursão armada na Crimeia, assim violando a soberania ucraniana. Que hipocrisia, gritam os seus adversários. Como se atreve o ocidente a criticar a Rússia quando os EUA, Grã-Bretanha e seus aliados invadiram o Iraque há onze anos. Aqui está a escolha. Ou a Rússia está do lado errado ou o ocidente está errado. Não pode ser das duas maneiras.

Mas pode. É perfeitamente possível a um ocidental opor-se tanto à ação da Rússia na Crimeia como à invasão do Iraque – e até opor-se a ambas pela mesma razão: por serem indignas violações de soberania. É bem notório que isto podia ser complicado para John Kerry, tendo em conta o seu voto no Senado em 2002 autorizando George W. Bush a usar a força militar contra Saddam Hussein - um registo que devia fazê-lo parar para pensar antes de denunciar Vladimir Putin por agir "como no século XIX ao invadir outro país com um pretexto completamente forjado".

Mas é idiota atirar o precedente do Iraque a Barack Obama. Ele é presidente dos Estados Unidos, em parte, porque se opôs à invasão de 2003. Foi a sua tomada de posição do Iraque que o ajudou a derrotar Hillary Clinton para a nomeação do Partido Democrata. Podem condenar Obama por exemplo sobre a Líbia ou a guerra em curso através dos drones, mas o exemplo específico do Iraque não torna hipócrita a sua posição sobre a Crimeia. Torna-a consistente. Ignorar este facto, responsabilizar a atual administração pelos pecados da sua antecessora – como se Obama e Bush sejam simplesmente as duas faces do poder permanente dos EUA – é ignorar o princípio fundamental de que os governos mudam em sociedades democráticas. Talvez não na Rússia, onde Putin conserva o poder desde o tempo em que Bill Clinton estava na Casa Branca – mas no mundo democrático é assim que funciona.

Isso pouco tem a ver com a única e vazia escolha que nos propõe o debate sobre a Ucrânia. Um dos campos desfaz a crueza das mentiras e enganos de Putin – a sua conferência de imprensa desta semana que o converteu numa versão do Kremlin do "Comical Ali", desafiando absurdamente os factos ao insistir que as tropas russas que toda a gente via na Crimeia eram na verdade civis ucranianos que resolveram comprar uniformes militares russos em lojas de disfarces. E o seu argumento encantador, a fazer lembrar o passado, dizendo que as forças russas tinham sido convidadas para a Ucrânia pelo presidente deposto – tal como as tropas soviéticas foram convidadas para a Hungria em 1956 e convidadas de novo para a Checoslováquia em 1968 - pôs um comentador a sugerir que Putin tinha perdido a cabeça.

Do outro lado ergue-se o campo oposto, apelando-nos a olhar para as novas forças que governam a Ucrânia. Este campo assinala a influência dos grupos de extrema-direita Svoboda (originalmente conhecida pelo nome sonante de Partido Nacional-Socialista da Ucrânia) e o Sector Direito, agora recompensado com alguns lugares no Governo, bem como os paramilitares fascizantes que patrulham as ruas de Kiev usando braçadeiras com a suástica e repetindo slogans contra os judeus. Eles alertam-nos para a concentração à luz das tochas dos ultranacionalistas em memória de Stepan Bandera, saudado como um herói da independência da Ucrânia apesar da sua colaboração com os nazis em tempo de guerra.

Mesmo assim, devia ser possível reconhecer a verdade de ambas as situações, condenarmos a ditadura de facto de Putin em Moscovo e chocarmo-nos com a presença de fascistas num governo europeu do século XXI em Kiev. Mas os dois campos em guerra fecham os olhos com frequência a um dos lados mesmo quando denunciam o outro. Isto não vale apenas para os comentadores e analistas, que se vão defrontando online e ao vivo. John Kerry e os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia deviam perceber que a sua posição contra a interferência russa não seria enfraquecida caso condenassem os bandidos racistas que assumiram um papel no levantamento Maidan e ganharam uma fatia de poder. É possível defender as duas posições ao mesmo tempo.

De facto, fazer o contrário é negar que a realidade é sempre teimosa e irritantemente complexa. Olhemos para a questão do antissemitismo, que se tornou um campo de batalha na guerra de palavras sobre a Ucrânia – com Putin a considerar-se o defensor dos judeus assediados naquele país. É bem verdade que os líderes do Svoboda tinham dito em tempos que a Ucrânia era governada pela "mafia judaico-moscovita" – o que é assinalável, tendo em conta que os judeus compõem uns estimados 0,15% da população do país – ou que tinham apodado de "porca judia" a atriz nascida na Ucrânia Mila Kunis. Também é verdade que as sinagogas têm sido alvo de cocktails Molotov e que um dos líderes da comunidade ficou amedrontado ao ponto de aconselhar os judeus a saírem da Ucrânia para sua própria segurança.

Mas também é verdade que os jovens judeus estiveram ativos nos protestos da Maidan, tendo até formado o seu próprio grupo de combate contra o agora deposto governo. Ou que quando os líderes judaicos pediram proteção às novas autoridades de Kiev para os edifícios da comunidade, receberam-na instantaneamente. Nem ninguém poderá ignorar os líderes judaicos que acreditam que alguns ataques antissemitas foram levados a cabo por provocadores pró-russos, apostados em desacreditar os novos donos de Kiev, ou a carta enviada na quinta-feira a Putin pela lidrança judaica ucraniana, dizendo ao presidente russo para recuar e acusando-o de explorar o tema do antisemitismo e ao mesmo tempo ser hipócrita, considerando o registo do seu país quanto ao tema.

Por outras palavras, nada é tão claro como gostariam os antagonistas e as suas claques no estrangeiro. É verdade que a Crimeia foi parte da Rússia até 1954 e que só por capricho da História se tornou parte da Ucrânia – mas não deixa de ser verdade que invadi-la ainda viola a lei internacional. Tal como é verdade que os russos não dispararam um único tiro, enquanto a invasão do Iraque deixou centenas de milhares de mortos – mas isso não torna aceitável a ação de Putin.

Costumava dizer-se de Tony Blair que ele acabou por preferir os Negócios Estrangeiros aos assuntos nacionais porque aqueles proporcionavam uma certeza moral ausente nestes últimos. Já escrevi sobre a forma como algumas pessoas seguem de fora o conflito israelo-palestiniano como se fosse um embate entre duas equipas rivais de futebol, a minha sempre certa e a tua sempre errada.

Mas o mundo não é assim. Raramente é a preto e branco. Normalmente obriga a nossa cabeça a manter dois pensamentos aparentemente contraditórios ao mesmo tempo. A vida não é uma coisa ou outra. É ambas.


Jonathan Freedland é colunista do Guardian e apresentador do programa sobre temas da história contemporânea "The Long View" na BBC4. Tradução de Luís Branco. 

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