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Crimeia: nem "nossa" nem "vossa"

Hoje mais do que nunca é necessário chamar as coisas pelo seu nome: o que se está a passar na Crimeia, nestes dias, é um ato clássico de intervenção imperialista por parte do Estado russo. É uma intervenção estúpida, cobarde e inconsequente – que é também como podemos descrever o próprio regime de Vladimir Putin. Declaração dos editores do site russo "Esquerda Aberta".
Ativistas pró-russos guardam parlamento da Crimeia em Simferopol. Foto Maxim Shipenkov/EPA

A península ucraniana teve a má sorte de se encontrar no cruzamento das ambições imperialistas da Rússia e das políticas nacionalistas brutas da "nova" Ucrânia. A Esquerda Aberta declara: o movimento de autodeterminação da Crimeia precede tanto os jogos imperialistas quanto o frenesim nacionalista.

Hoje mais do que nunca é necessário chamar as coisas pelo seu nome: o que se está a passar na Crimeia, nestes dias, é um ato clássico de intervenção imperialista por parte do Estado russo. É uma intervenção estúpida, cobarde e inconsequente – que é também como podemos descrever o próprio regime de Vladimir Putin. O plano para pressionar a Ucrânia está a ser navegado à vista: há duas semanas, o Kremlin, sem pensar nas consequências, pressionava Ianukovich para dispersar os manifestantes de Maidan usando a força mais brutal; há uma semana, apoiava o fracassado parlamento "separatista" de desorientados políticos de Kharkiv; e agora joga a "carta da Crimeia", aparentemente há muito esquecida na última década.

Os dois primeiros planos falharam: o primeiro de forma rápida e sangrenta, o segundo quase imediata e vergonhosamente. É difícil dizer como irá fracassar o plano relativo à Crimeia, mas não há dúvida que é o que vai suceder. O Estado russo já demonstrou muitas vezes a rapidez com que pode abandonar os seus aliados. E desde o início dos dramáticos acontecimentos na Crimeia, o Kremlin também tem enviado sinais evidentes de uma potencial retirada. Apesar de as tropas russas se terem apoderado de uma série de instalações estratégicas e virtualmente controlarem o espaço aéreo da península, a posição oficial continua a ser de que o que se está a passar não é mais do que um simples "conflito interno" e a realização de manobras militares há muito previstas. Victor Ianukovich não pode contar com o apoio sólido da Rússia. Com a sua dupla condição, ao mesmo tempo, de presidente legítimo e criminoso internacional, Ianukovich deu uma conferência de imprensa em Rostov aparentemente num terceiro papel, intermédio. Os novos dirigentes da Crimeia, eleitos com o envolvimento direto de Moscovo, também continuam reféns desta situação.

A pergunta levada a referendo em 25 de maio abre uma grande variedade de possibilidades para futuras negociações na sombra – tanto com os principais agentes imperialistas, os EUA e a UE, quanto com o novo governo da Ucrânia, controlado pelos antigos sócios oligárquicos do Kremlin do círculo de Yulia Timoshenko. Responder "sim" a esta pergunta (que é o que a esmagadora maioria da população de fala russa da Crimeia está obviamente disposta a fazer) pode, na sua versão mais radical, levar à reinstalação do estatuto de autonomia da Crimeia que existia em 1992, o que nas circunstâncias atuais vai converter a região numa fonte permanente de tensões internas na Ucrânia e garantirá a impossibilidade da adesão à NATO num futuro previsível. Esta Crimeia autónoma encontrar-se-á numa dependência económica e política constante da Rússia, ao mesmo tempo que os seus habitantes ver-se-ão privados até dos direitos formais de que gozam os cidadãos russos. No caso de, ao usar a "carta da Crimeia" para chantagear os sócios ocidentais, Moscovo consiga impor as suas condições na redistribuição do poder da nova ordem política ucraniana, nada mudará na Crimeia (com a exceção, talvez, de Serguei Aksyonov e os seus colegas da “Unidade Russa” terem possivelmente de se mudar para Rostov ou Barviha). 

Em qualquer caso, o resultado do referendo, bem como, em geral, o destino da população da Crimeia (não só russa como também tártara e ucraniana), será decidido a portas fechadas. O direito da população à autodeterminação será espezinhado enquanto a Crimeia, e a Ucrânia no seu conjunto, continuarem a ser uma zona de conflito entre forças externas do Ocidente e do Oriente. 

A política de "federalizar" o país, com a qual os políticos do Partido das Regiões estão acostumados a especular de maneira irresponsável, seria em circunstâncias normais a solução mais justa para a Ucrânia, com uma população que é heterogénea em termos culturais, nacionais e linguísticos. O princípio da federação num estado multinacional tem sido um meio democrático de reduzir conflitos quando a cada um dos seus componentes é garantida a igualdade de direitos e a liberdade de adotar medidas no plano local. Contudo, a história moderna da Ucrânia testemunha o facto de que, num Estado fraco, esta medida significa nada mais que a delimitação de esferas de influência entre os seus vizinhos mais poderosos, cada um dos quais está interessado na contínua escalada dos conflitos e na diferenciação, e não na sua neutralização. Para poder desenvolver-se um federalismo democrático real é preciso o desenvolvimento da revolução ucraniana no caminho de um poder popular genuíno, e não a atual usurpação do poder pelas elites renovadas ou nacionalistas. 

O problema da Crimeia não foi inventado pelas autoridades russas há uma semana. As dezenas de milhares de pessoas que saíram às ruas de Sebastopol perceberam claramente um sinal hostil por parte de Kiev, onde a maioria dos vencedores votou no Parlamento (Rada) a favor de mudar a lei sobre as línguas regionais. Apesar dos argumentos pouco convincentes a respeito das suas imperfeições legais, esta resolução tinha apenas um significado simbólico. Num país à beira do colapso económico, as novas autoridades decidiram ocultar a próxima onda de “reformas impopulares” com uma porção completa de especulação nacionalista. Para os ultradireitistas do Partido Svoboda que apresentaram a resolução, a questão da língua é parte de um programa reacionário em grande escala para um Estado étnico, que tem o potencial de enterrar a Ucrânia na sua forma atual. Esta resolução, apresentada para combater a ascensão do "Setor da Direita" (cujo principal parceiro nos média continua a ser a televisão russa), tornou-se num fator importante para piorar a situação. 

Este “cenário da Crimeia" não vai durar muito tempo. As elites do Kremlin vão rapidamente manipulá-lo nos seus próprio interesses. Os hinos patrióticos, que as equipas de propagandistas fizeram soar às suas ordens, cedo se calarão. Os "falcões de escritório" que apelaram freneticamente nas suas páginas dos média à recuperação da "nossa Crimeia", vão calar-se e recorrer a outros temas, mais novos e mais interessantes (como ocorreu durante a guerra da Geórgia em 2008). Só os residentes da península da Crimeia – os russos, os tártaros e os ucranianos – ficarão sozinhos com os seus problemas. Os habitantes desta região deprimida, independentemente dos fluxos de turistas e da presença de bases militares, continuarão espremidos entre os políticos de direita de Kiev, os "defensores dos russos" apoiados pelos oligarcas locais, e as manobras cínicas do Estado russo, que cospe nos direitos e nas liberdades dos seus próprios 143 milhões de cidadãos. 

Hoje é muito difícil avaliar e prever as consequências reais da Maidan de Kiev. Deu lugar tanto ao reaparecimento dos clãs oligárquicos marginalizados por Ianukovich, quanto à vitória de movimentos populares de base que eram impensáveis no espaço pós-soviético. Maidan abriu as comportas à atividade dos bandidos de extrema direita – e ao mesmo tempo estimulou a vida política das grandes massas do povo, que talvez pela primeira vez percebe que ele mesmo é capaz de determinar o seu destino. Este leque de possibilidades tem o potencial de evoluir tanto para mudanças sociais progressistas quanto para a vitória da reação extrema. Mas a decisão final deve, sem dúvida, ficar nas mãos do povo da Ucrânia: seja em Kiev ou Lvov, na Crimea ou em Donetsk. 

2 de março de 2014


Traduzido do original russo para o inglês por Kristina Mayman e David Brophy. Traduzido para o português por Luis Leiria e Luís Branco, para o Esquerda.net

Publicado em LeftEast

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