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Porque ainda exaustos não nos calamos

Exausto é um adjetivo a acrescentar aos mais de 65.000 enfermeiros que servem este país. Não merece senhor Ministro Paulo Macedo os enfermeiros que tem.

Exausto é um adjetivo a acrescentar aos mais de 65.000 enfermeiros que servem este país. Mais um onde se incluem a coragem inesgotável, a capacidade de trabalho acima de quaisquer outros, a persistência em cuidar melhor a cada dia, a energia perpétua de quem se esquece de si em prol das necessidades daqueles que lhe confiam a sua vida.

Mas, mais uma vez, com a sensibilidade de um elefante invisual numa loja de porcelanas, revestido de um discurso de crueldade bárbara e de inteligência que aspira apenas ao período paleolítico, decide presentear-nos com um discurso ofensivo, renovando uma raiva inexplicável, tantas vezes já demonstrada, quando em tantas ocasiões recusou sequer o cumprimento de um enfermeiro nas paradas patéticas que encena nas visitas a unidades de saúde.

O argumento não é novo, aliás a acumulação de funções foi já ensaiado no caso da Saúde24, na altura defendendo o direito do seu amigo pessoal e administrador da dita empresa, a escravizar os enfermeiros, negando-lhes qualquer direito laboral. Os mesmos enfermeiros que recusou receber meses a fio, preferindo a defesa do negócio obscuro e lesivo para o Estado, aquele que é de todos nós e lhe enche os bolsos, à custa dos nossos salários.

Explico-lhe então, senhor Ministro em que consiste a acumulação de funções: consiste em realizar tarefas destinadas não a 1 mas a mais. Antes de ser empacotado e exportado como mercadoria barata, deixo-lhe um pequeno exemplo pessoal. Em determinado local, em vez dos 5 doentes recomendados pelas instituições do mundo civilizado, tinha a meu cuidado 20. Acumulo aqui a função de 4 enfermeiros. Enquanto me desdobrava na desesperada tentativa de chegar a todos, abdicando de mim próprio, das refeições a que tenho direito ou da necessidade que compreenderá de satisfazer necessidades fisiológicas, não era apenas enfermeiro. Era auxiliar, porque a escassez e o maltrato a que submete também esta classe profissional é atroz; era assistente social porque o único profissional presente não chega para atender os milhares de situações diárias de uma população envelhecida, adoecida e abandonado; era psicólogo, médico, auxiliar de alimentação, administrativo, informático, apoio de famílias, bem no fundo só não era ministro, até porque esse cargo está vedado a quem realmente entende de saúde, a quem entende o que é cuidar em Portugal, a quem defende com unhas e dentes um Sistema Nacional de Saúde público, digno e gratuito.

Somado, consigo trabalhar por 4 enfermeiros mais e mais uma recheada dúzia de outras profissões. Premiado claro com um vencimento que ao longo dos últimos 9 anos da minha carreira foi reduzido em mais de 1 terço.

Falamos de um dia comum, passado numa das maiores e mais movimentados urgências de Portugal, o Hospital Fernando da Fonseca, onde com frequência nos pedem que abdiquemos de ser enfermeiros, para cuidarmos não de pessoas mas de números. Recusamo-nos, pagando esta acumulação com o desgaste diário, correndo a cada instante para prestar aos mais de 100 doentes internados diariamente e aos milhares que lá acorrem diariamente, o melhor cuidado possível. Incrível o que uma dúzia de enfermeiros conseguem.

Infelizmente a acumulação é um hábito terrível a que se acomodou o nosso sistema de saúde. Nos cuidados domiciliários os enfermeiros são motoristas, são família, são a única corda de salvação e esperança de vidas abandonadas por um sistema que depende de milagres diários. Nos internamentos menos enfermeiros cuidam de cada vez mais utentes, nos cuidados intensivos cuidamos com rácios terceiro mundistas, nos centros de saúde luta-se a cada instante por trazer qualidade na saúde e na doença a comunidades que ali encontram o seu refugio.

Em cada canto, senhor ministro, os cuidados de saúde são uma surpresa, escapando ao desastre, resgatados pela persistência dos profissionais que suportam este sistema.

Entende, no entanto, atacar a acumulação de funções. Que é cansativo sabemos, mas surpreende-me que lhe restem dúvida que é a necessidade que nos move. Nos pomposos jantares de gala que frequenta ou quiçá no seu clube de golfe costuma cruzar-se com muitos enfermeiros? E por mera curiosidade, costuma questionar a maioria dos deputados na Assembleia da Repúblico que se multiplicam em acumulação de funções em assessorias empresariais ou em almoçaradas em renomados escritórios de advocacia, quiçá fazendo uma perninha numa qualquer engenharia ou concelho de administração? Não é o senhor Ministro que há anos parasita o sistema público saltitando entre finanças e saúde, ao sabor do que ditam os ventos governamentais?

Acumular funções para um enfermeiro não é prejudicar o cuidado que presta. Acumular funções, cidadão Paulo Macedo, é abdicar de ver os filhos, é passar os Natais e festas afins a cuidar daqueles que são o produto de um sistema social que produz pobres e doentes, é abdicar do descanso pessoal, é esquecer o esforço sobre-humano de trabalhar horas a fio com o mesmo, é esquecer os passeios com os amigos, é, no fundo, abdicar de nós próprios.

Acumular funções não é nem nunca será à custa daquilo que amamos: cuidar. Somos nós que pagamos o preço, e não a enfermagem. Aliás à enfermagem imputamos apenas o preço de ser uma classe submissa perante as atrocidades que comete o senhor Ministro e tantos outros da mesma colheita. À enfermagem imputamos o custo de esperar por Sindicatos ineficientes que já se colocaram do seu lado, o custo de nos demitirmos tantas vezes de nos fazer ouvir, quer no Ministério, quer nas instituições que nos representam.

Cuidamos porque amamos o que fazemos, trabalhemos nós 1h ou 1000h. Mas cansa, deixa-nos exaustos. Não percebem os utentes porque não nos escusamos a esforço algum por eles, porque acumulamos além do trabalho, a aprendizagem e o enriquecimento académico, não desistindo de cuidar cada vez melhor.

Pouco eco lhe farão as minhas palavras; como milhares de outros enfermeiros, sou o mais novel produto de exportação nacional, oferecido ao desbarato, para que outros de nós beneficiam. Se lhe chegarem algumas palavras, que seja um basta; basta de injustiça, de cegueira para com aqueles que movem um sistema mais doente que os doentes que diariamente produz com a aniquilação dos cuidados de saúde primários, com a destruição das capacidades dos hospitais e com as taxas criminosas.

Não merece senhor Ministro os enfermeiros que tem, sorte a sua que muitos são os que ainda não desistiram.

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Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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