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As “mãos sujas” de Daniel Oliveira

Ao acusar o Bloco de alegar “superioridade moral” para se recusar a fazer compromissos com este PS, Daniel Oliveira cai na caricatura e foge à questão de fundo: é possível romper a alternância aproximando-se do partido de Seguro ou Costa?

São conhecidas as críticas de Daniel Oliveira ao Bloco de Esquerda por se recusar a fazer compromissos com o PS em nome de uma “suposta superioridade moral”. É a famosa teoria que põe em confronto os “puros”, que se recusam a “sujar as mãos” e por isso não aceitam cargos no governo nem participam da governação, e os pragmáticos, que em nome da “emergência nacional” aceitam o compromisso e a aproximação com o PS em nome de salvar o “núcleo duro” do Estado Social. Uns, os primeiros, são cegos, arrogantes ou simplesmente ingénuos; os outros, onde o Daniel, obviamente se inclui, têm a “inaudita coragem” do compromisso.

Na verdade, tudo isto não passa de uma caricatura, e Daniel Oliveira sabe-o bem. A questão não é moral, é política. Não há aqui “ingénuos” ou “perspicazes”, “puros” ou pragmáticos”. Não se trata de rejeitar qualquer compromisso, trata-se de saber o que se está realmente disposto a aceitar e o que resultará desses eventuais compromissos.

A questão não é moral, é política. Não se trata de rejeitar qualquer compromisso, mas sim de saber o que se está realmente disposto a aceitar e o que resultará desses eventuais compromissos.

Daniel Oliveira usa a caricatura porque, como bom polemista, sabe que é mais fácil desqualificar os oponentes, mostrando-os dessa forma, do que discutir a fundo o que ele próprio está disposto a aceitar como compromisso e as consequência que decorrerão da aproximação ao PS.

Partido de protesto versus partido de governo, falsa dicotomia

Criou-se em Portugal um mito que divide os partidos entre os “de protesto”, e os “de governo”. Os primeiros são o PCP e o Bloco de Esquerda. Os outros, o PS, o PSD e o CDS. Por que digo que é um mito? Obviamente, porque não corresponde à verdade. O Bloco de Esquerda nunca disse que se recusa a governar (nem, aliás, o PCP). Mais: o Bloco de Esquerda quer governar e sempre o disse. Mas não quer governar a qualquer custo. Só faz sentido ir para o governo quando for realmente para mudar a vida das pessoas, acabando com a alternância que tem existido em Portugal desde há mais de 30 anos. De outra forma, apenas defraudará as expectativas, levando a esquerda alternativa à ruína, como lembrarei mais à frente.

Mas também não é verdade que, enquanto não se criam as condições para que esse governo se forme, o Bloco se dedique “apenas” ao protesto. Mesmo na oposição, não desistiu nunca de apresentar propostas alternativas, na área económica e social, projetos de lei que mudem a vida das pessoas – e o que é facto é que algumas delas foram aprovadas e estão em vigor.

Quando é que o Bloco vai para o governo? Quando o governo de esquerda a ser formado tiver a base social necessária para a mudança. Quando é isso? Não sabemos. Do que estamos certos é que não é com o PS de António José Seguro ou de António Costa, porque nem um nem outro estão dispostos a romper com os fundamentos da política de austeridade, que são o Tratado Orçamental (mesmo com uma ou outra “revisão de metas”) e o pagamento da dívida.

Falando de ilusões

E com isso voltamos à famosa fórmula de Daniel Oliveira: “condicionar o PS”. Trata-se, esta sim, de uma ingenuidade e de uma ilusão. A fórmula é a seguinte: um novo partido, ou uma frente eleitoral entre o novo partido de Daniel Oliveira e Ana Drago e o Livre, vai a eleições com as propostas rebaixadas de um “programa mínimo de compromisso”. Depois das eleições, se o PS não tiver maioria absoluta, irá negociar com esse novo partido, que assim o “puxa para a esquerda” e impede um acordo de bloco central PS-PSD. O novo governo que sairá desta negociação não é tudo o que esperaríamos, mas é “decente”, preservando o “núcleo duro do Estado social”. E assim, graças ao realismo da nova força, a vida das pessoas melhora.

O que tem de errado este plano? O facto de ser uma total ilusão.

O novo partido já chega com um programa tão empobrecido à mesa das negociações que, “ao fim da tarde”, quando chegar a hora dos compromissos, já nem mínimo será.

Vejamos:

1 – Se o programa mínimo do novo partido é tão mínimo, para quê votar nele e não no PS?

2 – Para o novo partido ter a força suficiente para atrair o PS à mesa de negociações, é preciso que este não tenha tido maioria absoluta, e que o novo partido tenha os deputados suficientes para lhe darem essa maioria.

3 – Mesmo supondo que esta condição se dá, o novo partido já chega com um programa tão empobrecido à mesa das negociações que, “ao fim da tarde”, quando chegar a hora dos compromissos, já nem mínimo será.

4 – O papel do novo partido nesse governo será, assim, o de “um comparsa que apare os golpes do PS e lhe cubra os erros” (palavras de Daniel Oliveira).

5 – A vida das pessoas não vai mudar, porque uma austeridade de “metas revistas” continua a ser austeridade.

A questão de fundo

A questão de fundo, que Daniel Oliveira se recusa a ver, é que a social-democracia já nada tem a ver com aquela corrente de origem operária que teve o seu apogeu na prosperidade europeia do pós-guerra. A social-democracia de hoje é o desastre de Hollande, o bloco central da Alemanha, a catástrofe dos trabalhistas irlandeses, o Pasok grego. A social-democracia de hoje é neoliberal e totalmente empenhada nas políticas da União Europeia que estão a levar o Velho Continente ao desastre, e os países do Sul da Europa ao empobrecimento e ao retrocesso.

Na Grécia, também houve um partido que saiu do Syriza em nome do compromisso. Chama-se Esquerda Democrática e foi muito elogiado pelo Rui Tavares. Aliou-se ao Pasok e à Nova Democracia no governo da troika. Quando saiu, estava destroçado.

Daniel Oliveira afirma que o Bloco aposta em vir a ser o Syriza de Portugal, mas prevê que isso não vai acontecer nunca. Pode ter razão, mas o que ele não diz é que o seu plano de “condicionar o PS” foi um fracasso quando aplicado e não tem um único exemplo de sucesso. Na Grécia, também houve um partido que saiu do Syriza em nome do compromisso. Chama-se Esquerda Democrática, ou Dimar. Quando nasceu, foi muito elogiado pelo Rui Tavares. Acabou por se aliar ao Pasok e à Nova Democracia no governo da troika. Quando saiu deste governo, sem ter obtido nada que “mudasse a vida das pessoas”, estava destroçado.

O outro exemplo é o da Refundação Comunista, que a pretexto de travar Berlusconi entrou no governo de Romano Prodi. Neste, fez tudo o oposto do que dissera antes. Resultado: o governo Prodi foi um desastre, Berlusconi voltou ao governo, e a Refundação esfacelou-se de tal forma que hoje já nem um deputado tem (quem quiser recordar o debate no Bloco de Esquerda sobre o desastre italiano, incluindo um artigo de Daniel Oliveira, de 2008, pode fazê-lo aqui).

Pior ainda, Daniel Oliveira parece não ver o que está a ocorrer com a social-democracia europeia, que entrou numa espiral descendente que até agora não dá mostras de parar. É verdade que em França, o desastre do governo Hollande está a favorecer o crescimento da extrema-direita populista. Mas também é verdade que em Espanha, diante do governo PP, as pessoas procuraram alternativas novas, como o Podemos, e não se viraram para o PSOE. Também por esse motivo, a política de Daniel Oliveira está na contramão da realidade.

É por isso que digo que a decisão do Fórum Manifesto de sair do Bloco para criar “uma plataforma política disposta a participar na governação” é uma aventura. O seu potencial destrutivo em relação ao Bloco é grande – Ana Drago tem o prestígio dado por um mandato parlamentar competente (sempre, valha a verdade, com a política do Bloco) e Daniel Oliveira é uma pessoa de grande inteligência e muito peso nos media. Mas a venda de ilusões às pessoas pode até ser compensadora, no início, mas está fadada a acabar mal.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista do Esquerda.net
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