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Carlos Mendes: “Não terei qualquer problema em ir cantar para a rua se for necessário”

Em entrevista ao Esquerda.net, Carlos Mendes, cantor e compositor, afirma que Portugal precisa de se libertar do medo para se mobilizar novamente contra a degradação social imposta pelas políticas do atual governo. Por Pedro Ferreira.
Em entrevista ao Esquerda.net, Carlos Mendes afirma que Portugal precisa de se libertar do medo para se mobilizar novamente contra a degradação social imposta pelas políticas do atual governo - Fotos de José Gema

A comemorar 50 anos de carreira, o cantor que deu voz a poetas como António Botto, Ary dos Santos ou Joaquim Pessoa, afirma que “foi atirado para um gueto porque nunca escondeu as suas convicções políticas nem se pôs de joelhos perante o poder.”

A música tem um papel decisivo na consciencialização das pessoas e por isso se for medíocre ou inócua é apenas barulho para distrair as pessoas daquilo que é essencial.

O poder da palavra dita ou cantada é imenso e é por isso que assistimos hoje ao silenciamento daqueles que como eu vêm na música um elemento fundamental de transformação social.” afirma.

Recentemente estiveste envolvido na contestação às políticas do governo PSD/CDS, através do movimento Que se lixe a Troika. Foste também um dos impulsionadores das chamadas “grandoladas” e estiveste entre aqueles que foram até à Assembleia da República para a cantar. Para ti, não teria sido mais prudente teres optado pelo silêncio?

À partida, o facto de se ficar à margem de determinadas situações é seguramente mais cómodo. No entanto, não o poderia fazer uma vez que tal atitude violentaria a minha consciência. Sou um homem de esquerda e tenho a consciência que o país precisa de mudar de governo e de políticas. Por isso antes do 25 de Abril lutei pela democracia e agora sinto de novo esse imperativo. Não tenho medo e por isso quero dar o meu contributo para mudar o país… um país que em muitos aspetos se começa a parecer de novo com aquele em que vivíamos antes do 25 de Abril. Nesse dia quando descia a escadaria da Assembleia da República pensei por momentos que iria ser preso. E a minha mulher disse-me: se te prenderem eu vou contigo. Não aconteceu mas se tivesse sido detido não teria ficado surpreendido.

Achas que a democracia está em causa?

A democracia é incompatível com o medo e há medo na sociedade portuguesa. Medo de não ter trabalho ou de perder o emprego, de ser apontado por tomar determinadas posições que vão contra a corrente dos poderes

Depende do entendimento que temos da democracia. Esta é incompatível com o medo e há medo na sociedade portuguesa. Medo de não ter trabalho ou de perder o emprego, de ser apontado por tomar determinadas posições que vão contra a corrente dos poderes que à volta do poder (os lóbis) têm influência para te excluir pondo assim em causa a tua sobrevivência.

Se tivermos uma visão da democracia mais ampla é evidente que esta está ferida e em risco. Num país com um milhão de desempregados, com desigualdades gritantes e com níveis de pobreza assustadores, eu pergunto-me se não estamos a caminhar para algo parecido com uma pseudodemocracia onde as pessoas são chamadas a votar e depois aconselhadas a regressar a casa para ficarem em silêncio até ao próximo ato eleitoral. Não há hoje vida democrática em Portugal e eu não aceito isso.

O que entendes por vida democrática?

Não se pode governar com base na mentira e num labirinto de interesses que colide com os direitos da maioria do povo

As pessoas não podem estar à margem das decisões do poder e serem vítimas das falsidades de quem elegem. Não se pode governar com base na mentira e num labirinto de interesses que colide com os direitos da maioria do povo. Este tem de reagir exigindo a responsabilização de quem defraudou todas as suas expectativas. É por isso que eu também afirmo, sem margem para dúvidas, que o atual governo é ilegítimo e só se mantém no poder pela inação do Presidente da República que não está a cumprir as funções para as quais foi eleito.

O Presidente da República devia dissolver a Assembleia da República?

Sem margem para dúvidas porque o povo é soberano e já demonstrou muitas vezes que não se revê neste governo.

Mas as pessoas parecem ter desistido da política. Criticam mas não se mobilizam. Estão descrentes?

Entre as manifestações de 15 de Setembro de 2012 e do 2 de Março de 2013, houve uma enorme participação de pessoas de várias gerações em múltiplas iniciativas de cariz político e social. Fiquei com a ideia que a política, ou melhor, a intervenção cívica estava novamente a ganhar terreno à apatia que há muito se tinha instalado na sociedade portuguesa. Assim não aconteceu mas algo ficou que pode regressar de novo se as pessoas sentirem que é pela sua capacidade de mobilização que a situação pode mudar. E não há mudanças estruturadas sem uma ampla participação popular.

O que falhou no período que referiste e que impediu a continuidade de uma ampla contestação às políticas governativas?

Sinceramente não sei. Houve um adormecimento e cabe-nos despertar de novos as pessoas. E não será difícil porque infelizmente a situação do país continua a degradar-se e haverá um momento em que as pessoas exigirão sem reticências uma mudança. E nesse dia estarão de novo nas ruas. Para ficar e enfrentar democraticamente o poder.

A cultura pode ter um papel importante nesse segundo momento que referes?

Eu tenho 67 anos e ainda apanhei alguns ecos do fim da Segunda Guerra Mundial. Seguiu-se o fascismo, o 25 de Abril e agora este processo que pretende ajustar contas com a Revolução sendo por isso, na minha opinião, uma contrarrevolução. Em todos os momentos a cultura teve um papel importante, diria até decisivo, nas mudanças históricas que foram acontecendo. Aliás, devo dizer que não é por acaso que em todos os regimes não democráticos a censura exerce uma marcação muito forte sobre a cultura porque sabe o papel que esta pode ter na libertação dos povos

A criação cultural ou é revolucionária ou situacionista. Não há meio termo. Para entender isto basta atentar na importância que a cultura teve antes e após o 25 de Abril. Os livros que lemos, as músicas que ouvimos e os filmes que conseguimos ver tiveram um impacto muito importante na nossa formação política, porque abriu os nossos horizontes e fez-nos lutar contra a opressão em que o país vivia. Eu estive nesses momentos e quero também estar presente na nova realidade que, estou certo, o país voltará a viver.

Mas disseste que estavam a remeter-te para o esquecimento. Ainda tens espaço na música portuguesa?

Sei que tenho valor e a consciência que ainda poderei dar muito à música portuguesa. Digo sem qualquer espécie de pudor que bato a todas as portas para arranjar trabalho e não terei qualquer problema em ir cantar para a rua se for necessário

Eu, tal como muitos músicos da minha geração fomos atirados para o esquecimento. Uns aceitaram e desistiram, mas outros como eu rejeitam este silenciamento. Por isso luto contra aquilo que me estão a fazer. Preciso e quero continuar a trabalhar na música que foi o caminho que escolhi. Sei que tenho valor e a consciência que ainda poderei dar muito à música portuguesa. Digo sem qualquer espécie de pudor que bato a todas as portas para arranjar trabalho e não terei qualquer problema em ir cantar para a rua se for necessário. Talvez seja esse o preço a pagar por nunca ter sido um “ bem comportado” do panorama musical.

Tens sido mal comportado?

Pelos exemplos que recebi tenho sido felizmente muito mal comportado acima de tudo porque o meu percurso tem sido marcado pela coerência. O meu pai que era médico teve sérios problemas com o fascismo porque era da oposição. Foi através dele e também dos meus irmãos que eu fui absorvendo os valores que são caros à esquerda como a justiça e a dignidade das pessoas. Nunca me acobardei perante o poder e por isso estou hoje fora do circuito musical. Mas como disse não abdico da minha carreira mesmo que isso implique sacrifícios e até algumas dificuldades. Nos meus espetáculos ganho à bilheteira, as televisões não me convidam. Mas ainda tenho o palco, o meu público e a minha música. E enquanto cidadão não abdico dos meus direitos cívicos. Tenho opinião e quero continuar a expressá-la.

Não abdico da minha carreira mesmo que isso implique sacrifícios e até algumas dificuldades. Nos meus espetáculos ganho à bilheteira, as televisões não me convidam. Mas ainda tenho o palco, o meu público e a minha música. E enquanto cidadão não abdico dos meus direitos cívicos. Tenho opinião e quero continuar a expressá-la

Consegues viver só da música?

Tenho uma pequena reforma resultante do trabalho que ainda desenvolvi como arquiteto e dou aulas de técnica de canto em casa. A minha formação musical corresponde ao 6º ano de piano e há cerca de 15 anos iniciei os meus estudos de canto lírico com vários mestres como Cristina Castro, Lilianne Bizinech e atualmente com Fernando Balboa. Tenho ainda a sorte de ter uma família fantástica que me tem apoiado incondicionalmente. Por vezes não é fácil mas não desisto. Acho que ninguém deve desistir. Devemos ficar cá e continuar a lutar. O 25 de Abril não se fez em vão.

E achas que ainda consegues chegar a um público mais jovem?

Neste país “matam-se” as pessoas a partir dos 40 anos, um mau hábito que tem de ser combatido. Ainda há dias estiveram aí os Rolling Stones que são ouvidos por pessoas de todas as idades. No meu caso, vi-me confrontado com atos de descriminação logo no início dos anos 80, o período da chamada “normalização democrática”, quando quem era de esquerda começou a ser ostracizado. Nessa altura estive onze anos sem gravar o que foi muito penalizador pois, ao contrário do que se passa hoje, naquela altura a gravação de um disco era muito importante para a carreira de um músico.

Mas falaste numa uma banda mítica, os Stones, que não tem paralelo na história da música em termos de longevidade.

É apenas um exemplo de que me sirvo para responder à pergunta. Sei que ainda chego a um público mais jovem, sobretudo àquele que não se deixa contaminar pela “música de plástico” que lhes é servida em doses industriais com o fito de lhes condicionar o gosto. Nos meus espetáculos vejo jovens que conhecem as minhas músicas, que gostam daquilo que faço. Apesar de haver hoje uma vasta oferta de concertos e festivais, as pessoas mesmo as mais jovens ainda marcam presença em concertos que não se inscrevem nessa massificação que muitas vezes é apenas fruto de gigantescas operações de marketing.

Referes-te aos festivais de Verão?

Sim, embora não tenha nada contra eles. Na minha opinião são sobretudo espaços de convívio, onde muitas vezes a música é apenas o pretexto para passar uma horas com os amigos. Independentemente da qualidade inegável de alguns músicos são eventos com um cunho essencialmente comercial. Salvo algumas exceções não há da parte de quem lá vai um interesse particular em apreciar a estética musical.

O marketing de que falaste pode construir um músico sem qualidade e elevá-lo à categoria de ídolo?

Sem dúvida que sim. A cultura está cheia de ídolos fabricados que duram alguns anos e são idolatrados por milhões de pessoas. Depois a indústria tem de os liquidar para dar lugar a outros. É uma máquina gigantesca e terrível porque aposta na superficialidade, cria expectativas a muita gente e depois tritura-as. A receita é simples mas as consequências são muitas vezes terríveis. E funciona assim: arranjas um rapaz ou uma rapariga com uma cara bonita e umas roupas mais ou menos ousadas e aí está o sucesso. Depois são abandonados à sua sorte, ou seja, projetados no vazio. E nunca mais ouves falar deles.

A cultura está cheia de ídolos fabricados que duram alguns anos e são idolatrados por milhões de pessoas. Depois a indústria tem de os liquidar para dar lugar a outros. É uma máquina gigantesca e terrível porque aposta na superficialidade, cria expectativas a muita gente e depois tritura-as

Há políticos fabricados pelo marketing?

Não vou citar nomes, mas todos sabemos que sim. Há muitos políticos que são um puro produto de marketing. São trabalhados para agir desta ou daquela maneira, para vestir de acordo com um determinado padrão e para exprimirem uma determinada ideia num momento preciso. Neste campo, estamos perante uma fraude porque quem pretende exercer um cargo político tem necessariamente que agir com autenticidade sob pena de estar a enganar os seus potenciais eleitores. Um dos maiores problemas que temos hoje na política é a falta de ética. Somos assim forçados a concluir que para alguns todos os meios são legítimos para alcançar o poder o que representa o grau zero da política e leva muitas pessoas a afastarem-se das suas responsabilidades de cidadania deixando, por exemplo, de votar. A política-espetáculo, construída entre frases feitas e um confrangedor vazio de ideias, pode ter consequências devastadoras sobretudo em momentos tão difíceis como aquele que vivemos.

Como é que analisas os resultados das recentes eleições europeias?

A aposta nas políticas de empobrecimento e o consequente crescimento das desigualdades alarga o espaço de crescimento da extrema direita que sabe muito bem explorar o desespero das populações

São muito preocupantes porque mostram que as que as pessoas estão assustadas, indignadas e sem confiança nas instituições que as representam.

Estes resultados são quanto a mim uma enorme derrota para as políticas de austeridade seguidas pelos governos europeus e paradoxalmente um perigo para a democracia uma vez que a subida da extrema direita racista e xenófoba pode não ser circunstancial.

Se não houver uma rápida inversão do caminho que a União Europeia está a seguir poderemos num futuro próximo ser confrontados com a vitória de um partido desses numa eleição nacional que não hesitará em lançar a Europa numa situação caótica.

A aposta nas políticas de empobrecimento e o consequente crescimento das desigualdades alarga o espaço de crescimento da extrema direita que sabe muito bem explorar o desespero das populações. Foi assim no passado recente e quem o negar demonstra que não aprendeu nada com a História.

Entrevista feita por Pedro Ferreira para esquerda.net

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