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O eterno retorno do nacionalismo

Na Bélgica, agora também são expulsas pessoas que trabalham, mas que tiveram a infelicidade de ficarem desempregadas e obterem durante um período de tempo um subsídio.

 

Aqui dizem-me que tenho de ser silenciosa, os fajardos estão a destruir a nossa vida e eu queria apenas estar sob o esteio de mar. O meu desabafo representa aquilo que eu sinto por vezes, neste sentido que não é sentido, mas simplesmente um olhar revolto, as penas que já não fingem ser suplício mas são flagelo que aterroriza os mais incautos.

Esta cáfila impune, que apregoa as maiores barbaridades, que mata com despudor, faz também parte de uma geração construída sob o vazio e insipiência, à qual lhes foi retirada o espanto e a esperança. Respondem por isso como autómatos sem pensarem nesta inevitável e eterna banalização do mal, são máquinas que servem apenas um regime. Parte da nova geração tornou-se sordidamente parecida àquela dos meninos da mocidade ou camisas negras de uma Itália fascista. A isto junta-se o picaresco de uma cultura imbecil, a falta de rigor e sentido crítico dos nossos média e a mistura fica exageradamente explosiva.

Lembro-me, então, das palavras de Arendt, quando escreve sobre os perniciosos sinais do tempo, que fazem parte das derivas totalitárias. Esse totalitarismo que nada tem de humano. E é por essa mesma razão que as pessoas cometem atos cruéis, porque há muito que deixaram de ter esse vínculo que os une à humanidade. Ensinemos, por isso e sem presunção, as nossas gentes a pensarem, a olhar o estado das coisas com uma total transparência. E o tempo deixará um traço no nosso corpo terriço, lembraremos a história no estertor dos dias.

 

Há algumas semanas, na carruagem onde eu estava, um rapaz hostilizou os passageiros e ao microfone gritou palavras de ordem, gesticulou "quenelles" e vociferou "morte aos judeus". Enfim, valha-nos o humor e a filosofia iluminista francesa para esquecer a decadência que por aqui prima.

Isto a dias de uma idosa de 96 anos, de origem italiana, ter recebido uma ordem de expulsão, depois de ter trabalhado e descontado parte de uma vida. Morrer, vá morrer no seu país porque aqui não passa de um custo social, viva os alvitres e as brechas que a lei deixa transparecer, que transformou a Mme Magie DeBlock na titular da política mais dura relativamente à imigração e ao acolhimento de refugiados. Os franceses então que se salvem, que já são "personae non gratae " na Suíça, são-no também na Bélgica, à exceção dos visas dourados aplicados às fortunas vestidas de barrete frígio. Agora também são expulsas pessoas que trabalham, mas que tiveram a infelicidade de ficarem desempregadas e obterem durante um período de tempo um subsídio. O caso de um professor universitário expulso porque há quatro anos se encontrava em situação de desemprego, o caso de uma cidadã que é criadora de som, independente, e que paga os famigerados impostos por ser independente, ambos franceses, e o de uma italiana que trabalha, mas recebe um complemento de salário adaptado pelo organismo de emprego e ao abrigo do mesmo. Estes são os exemplos entre os muitos que se sucedem. Para não falar dos refugiados afegãos que vivem em condições extremas numa igreja perto de mim. Crianças, mulheres e homens, e a história de Aref a marcar um epitáfio. Aref residiu e trabalhou na Bélgica. Aref foi expulso com veemência e meses mais tarde viria a morrer nas mãos dos taliban, morte argumentada em forma reverencial pela Secretária de Estado: "eu só cumpri a lei". Senhora da ala liberal que serve para depositar votos e agradar às hostes que primam mais à direita da Flandres, o caso do N-VA e de Vlaams Belang, mas também em toda a Bélgica, e que está a atrair uma franja considerável da população em tom crescendo, rendida aos impulsos mais populistas, e decidida a fazer ressurgir os velhos fantasmas do passado. Consequência, nestes últimos meses, dois cidadãos em “situação irregular” cometeram suicídio após um brutal controlo policial.

Ouvem-se as maiores barbaridades, que põem a nu uma certa mentalidade grotesca que nunca se submeteu ao processo de rememoração. Não interessa porque os vistos são agora dourados, apenas para ricos, para o grande capital, porque o capital nunca foi humano nem nunca o será. E quando chegamos ao norte, onde o protestantismo teve rasgos de verdadeira dessacralização do sentido humano, a iniquidade e o grotesco são laudatoriamente defendidos. À maneira do circunscrito burocrata, onde o legal serve uma impostura, alimentando editoriais que vendem de vento em popa, porque depositaram os dividendos nas mãos do populismo, ao ponto do jornal La Libre Belgique ter considerado a secretária de estado Mme Maggie DeBlock a mulher do ano. O efeito perverso de um referendo no caso de uma Suíça, a inevitável atração pelos reflexos xenófobos propalados pelos jornais que pensam sobretudo em vender, nem que seja à custa de vidas humanas. Os mesmo jornais que afirmam deliberadamente o humanismo da política seguida pela Bélgica. Temo muito, muito pelo futuro dos nossos imigrantes que não passam de convidados temporários para assistirem na economia alemã e de custos sociais para os cofres de estado na Bélgica. O que se passará se um português perder o seu trabalho?! Simplesmente será expulso, porque é um custo. O que se passará com um idoso, idem, porque o direito à reforma é um custo e não um direito! Os descontos para um cidadão nacional são faturas a pagar por um estrangeiro, que permanecerá para sempre estrangeiro, afinal preso a uma terra de ninguém que foi sempre o seu sonho.

E este extremar de palavras é o resultado de uma ausência de políticas de costas voltadas para o povo, são políticas informes sem nenhum sentido ou se não me engano apenas um, a finança. Nunca a finança foi tão livre e isenta de culpas. Agora é ela que comanda a vida e não o sonho. O sonho é um artifício em prol dos dividendos, das agendas económicas, é uma ilusão sustentada pelos órgãos de informação, coniventes porque estão inevitavelmente vinculados pela mesma finança. É o Financial Times que define o juro que cada país irá pagar, a inópia a que estamos votados num discurso de abandono em que a pessoa não conta sequer, só para cálculo, ou para o respetivo fundo e tesouro. E é nesta espiral, em que a democracia é só uma mera quimera, que o termo financeiro cerceia, neste campo dominado pelos Psi’s 20 e pelos estados dominantes, que estriam a bolsa e até as fronteiras de cada país. Os únicos culpados continuam a conduzir o olhar necrófago, alimentando-se dos mortos. Os grupos e opúsculos morais estão aí num espectro que é escuro como breu. Apontam-se dedos aos mais fracos, aos pobres, ao indigente que dorme numa mala ou num cartão e por último ao estrangeiro (ou em primeiro) que sempre foi irreconhecível ao olhar do outro. Esse vazio social dá azo ao nascimento das maiores atrocidades, ao renascimento de átimos fascistas, xenófobos, a políticas nacionalistas. E é assim que o nosso olhar se estreita perante a miséria, porque ao espírito é-lhe alheio a verdade do estado das coisas e não interessa se esse estado é demasiado estéril, mas é assim porque assim é. Apodíticos nas suas verdades conduzem milhares de pessoas à mentira e à insanidade coletiva.

Eu espero porém que um dia as pessoas olhem o outro, não só como depositários de uma identidade, de um corpo, de uma língua que pode não ser a nossa, mas igual, de carne e osso, que vive, respira e sonha como nós. Eu espero que um dia as pessoas descubram que as mentiras só servem uma minoria, uma minoria que deseja que deixemos de respirar e apenas pagar o mal "dizem eles dos nossos pecados".

Sobre o/a autor(a)

Jornalista e escritora a residir em Bruxelas. Candidata independente do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu
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