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Leilão da DECO não evitou aumentos e tarifas altas de eletricidade

A promessa era de que haveria estabilidade da conta de luz durante 12 meses; mas os consumidores que participaram do leilão da DECO em maio de 2013 e se tornaram clientes da Endesa tiveram um aumento já este mês e constatam que lhes são cobradas tarifas das mais altas do mercado. Por Luis Leiria e Rita Gorgulho.
A DECO dizia que os clientes da Endesa teriam estabilidade de preços de 12 meses; depois mudou a versão. Fotografia de Sam Wolff

Os cerca de 40 mil clientes da Endesa que assinaram com a empresa de eletricidade um contrato em junho-julho do ano passado, na sequência de um leilão organizado pela DECO, estão a ter uma má surpresa ao receber a primeira conta de luz do ano: um aumento de cerca de 5%.

“Há sempre aumentos no início do ano, mas pelo menos em relação à conta de luz estava descansado, porque a DECO disse claramente que haveria uma estabilidade do preço por um período de 12 meses”, disse ao Esquerda.net Paulo Sousa, um dos consumidores que trocou a EDP pela empresa elétrica espanhola, atraído pelas vantagens anunciadas pela Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor. Escandalizado, o funcionário público, casado e pai de dois filhos, foi comparar e verificou que a tarifa de eletricidade que está neste momento a pagar é das mais altas que são cobradas aos clientes domésticos pelas principais empresas concorrentes no chamado “mercado liberalizado”: EDP, Galp Energia e Iberdrola. E isto apenas oito meses depois de realizado o leilão – apresentado então como pioneiro e definido pela DECO como “uma verdadeira campanha de informação e mobilização dos consumidores e das famílias”. Mais incrível ainda, quem queira agora tornar-se cliente da Endesa e invocar o protocolo da DECO (que ainda está em vigor para novos clientes), terá a oferta de tarifas mais baixas do que os clientes que participaram no leilão e assinaram contrato no ano passado.

Leilão “pioneiro”

O leilão, realizado pela DECO em 2 de maio do ano passado, foi apresentado como uma iniciativa inovadora para “mexer o mercado” de eletricidade, juntando o maior número possível de consumidores domésticos para estimular a concorrência entre os fornecedores. A ideia era de que quanto mais consumidores participassem, maior seria a sua força e melhores seriam as condições obtidas. O vencedor teria de aceitar as condições contratuais apresentadas pela DECO, que asseguravam um preço válido por um ano e um contrato que permitisse ao cliente sair antecipadamente sem penalização, isto é, sem fidelização. Atraídos por estas condições, quase 600 mil consumidores inscreveram-se para participar no leilão.

No dia marcado, porém, quando se anunciou a “vitória” da Endesa, também se ficou a saber que a elétrica espanhola (cujo maior acionista atual é italiano) acabara por ser a única a apresentar uma proposta – todas as restantes empresas haviam desistido. Isto é: a “concorrência” não tinha funcionado como se esperaria.

A DECO, mesmo assim, comemorou: agradeceu aos consumidores “a confiança nela depositada, que se traduziu na adesão de mais de meio milhão de subscritores ao leilão online”, ao mesmo tempo que se congratulava “pela forma aberta e equilibrada como este projeto pioneiro foi abordado pelos meios de comunicação nacionais, transformando-o numa verdadeira campanha de informação e mobilização dos consumidores e das famílias”.

No mesmo comunicado, a associação reafirmava que os consumidores participantes no leilão que contratassem a Endesa teriam a “estabilidade do preço por um período de 12 meses”.

Dias depois, a 7 de maio, a DECO voltava a insistir na estabilidade do preço: “Além da poupança monetária, o tarifário vencedor garante a estabilidade do preço por um período de 12 meses, por estar isento das revisões trimestrais praticadas pela ERSE e não incluir custos com serviços associados à tarifa de eletricidade”. (o sublinhado é nosso).

Todos ganharam?

Parecia uma história de final feliz para todos – Endesa, DECO e consumidores. A Endesa porque aumentou a quota de mercado. Em maio, a empresa era a que mais tinha perdido espaço no mercado liberalizado; em junho a sua parcela do mercado era de 7,8% dos clientes do mercado livre doméstico e no mês seguinte subira já para 8,6%, ainda assim longe dos 16,4% em junho de 2012.

A DECO recebeu da Endesa uma comissão de 5 euros por cada contrato efetuado, isto é, cerca de 200 mil euros, que a associação anunciou pretender investir no gabinete de apoio ao sobreendividamento.

Os consumidores ganharam um desconto de 5% na tarifa e a garantia de que não haveria aumento durante 12 meses. Só que... apenas seis meses depois da assinatura do contrato, a conta da luz aumentou.

A estabilidade que não era

Afinal, que aconteceu? Havia ou não a tão falada estabilidade dos preços por 12 meses? Contactada pelo Esquerda.net, a DECO dá-nos agora outra versão:

“No contrato associado ao tarifário vencedor do leilão está claramente definido a não repercussão das variações trimestrais e a repercussão da variação das tarifas de acesso em 2014. A DECO esclareceu oportunamente esta questão a todos os participantes do leilão. Foi, assim, essa variação que foi repercutida no tarifário vencedor do leilão, bem como em todos os tarifários do mercado dado que as tarifas de acesso são uma componente regulada, definida anualmente a pagar por todos os consumidores”, disse por mail Teresa Figueiredo, da assessoria de imprensa da DECO.

Variações trimestrais? Tarifas de acesso? O que é isso? O leitor não sabe? Pois seja bem vindo à incrível teia de termos técnicos, na sua maioria incompreensíveis para o comum dos mortais, e que tornam tão difícil ao cidadão fazer valer os seus direitos e escolher a melhor opção para os seus interesses.

Vamos então tentar perceber. Variação trimestral das tarifas transitórias: enquanto está em vigor a transição para a liberalização total do mercado, a ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) decide quais são as tarifas a serem aplicadas aos clientes finais que ainda não tenham aderido ao mercado liberalizado (contratos antigos da EDP). Estas tarifas são suscetíveis de sofrer aumentos trimestrais (o que não quer dizer que realmente ocorram). Estas tarifas vão deixar de ser reguladas no final de 2014 (para quem tenha contratos superiores a 10,35 kva) ou no final de 2015 (para quem tenha contratos inferiores a 10,35 kva).

Tarifas de Acesso às Redes são pagas por todos os consumidores pelo uso das redes (transporte e distribuição) e pelo uso global do sistema (gestão técnica do sistema, regulação e custos de política energética, ambiental e de interesse económico geral). Estas tarifas são fixadas pela ERSE todos os anos, no início do ano.

O que a DECO afirma hoje é que ficou claro para todos os consumidores que assinaram o contrato da Endesa-DECO que não haveria as variações transitórias, mas teria de haver aumentos no início de 2014 por conta do aumento das tarifas de acesso.

Mas, nos comunicados que saíram então, não se lê qualquer referência a que haverá aumentos em janeiro de 2014, por força das tais tarifas de acesso.

Os famosos contratos de letra miudinha

A DECO afirma que no contrato assinado este aumento estava claro. Na verdade, o que encontramos é uma formulação pouco clara, suscetível de muitas interpretações. Vejamos o que diz:

“Qualquer alteração dos montantes das tarifas de acesso às redes ou de qualquer das componentes reguladas do preço da eletricidade, com exceção da revisão trimestral das tarifas transitórias, será automaticamente repercutida nos preços estabelecidos no presente Anexo, sem que tal possa ser considerado uma alteração às condições contratuais acordadas pelas partes.”

“Os preços poderão ser atualizados a partir de 01/01/2015. A primeira atualização poderá ser exigida nessa data e as seguintes, sucessivamente, um ano após a atualização anterior. A atualização será feita de acordo com o último Índice de Preços no Consumidor geral nacional relativo aos últimos 12 meses publicado oficialmente na data da atualização.”

No primeiro parágrafo, diz-se, de facto, que poderá haver aumentos. Mas não se diz que seria logo em janeiro de 2014, sendo que a DECO conhecia muito bem a data do aumento das tarifas de acesso. No segundo parágrafo, porém, confunde-se ainda mais, com a referência a janeiro de 2015.

A interpretação de Paulo Sousa, como é normal, foi a da estabilidade de preços: “Eu li esta cláusula e fiquei descansado. A DECO falava em estabilidade de preços por 12 meses; a Endesa dizia que só haveria aumentos a partir de 2015”, explica, sublinhando que se havia cláusulas contratuais menos claras, a DECO tinha obrigação de as esclarecer tintim por tintim. “Não é para isso também que serve a defesa do consumidor? Para chamar a atenção e esclarecer as famosas cláusulas em letras miudinhas que sempre aparecem nos contratos?”, questiona.

Ana Entrudo, também funcionária pública e igualmente participante do leilão e cliente da Endesa devido à campanha da DECO, partilha os mesmos sentimentos. “Nunca me passou pela cabeça que fosse haver aumentos logo em janeiro de 2014”, assegura ao Esquerda.net. “O que esperava era que não houvesse aumentos por pelo menos um ano e que pagasse as tarifas mais baixas do mercado. Por que falaram em estabilidade de preços se sabiam que ia haver aumento em janeiro de 2014?”

O aumento da Endesa foi superior ao que a ERSE determinou

Mas será que o aumento dos clientes da Endesa-Deco refletiu apenas as variações das tarifas de acesso? Façamos as contas.

A conta de luz do consumidor doméstico divide-se em dois componentes principais: o “termo de potência”, um valor que varia de acordo com a potência contratada pelo cliente para a sua casa, e o “termo de energia” o custo de consumos, que resulta do preço do kilowatt-hora (kWh).

Na conta de Paulo Sousa, a tarifa do termo da potência até diminui – tendo 14 dias (de dezembro) calculados a 0,351 euros e outros 15 dias a 0,265 euros – essa redução ocorreu para acompanhar a redução das tarifas reguladas pela ERSE; mas o da energia aumentou e muito: são 14 dias a 0,1405 euros e 15 dias a 0,1601 euros – um aumento de quase 2 cêntimos no preço do kWh.

Consultada telefonicamente para explicar o valor deste aumento, a DECO reafirmou que este corresponde ao aumento das tarifas de acesso. Ao telefone com o Esquerda.net, o Dr. Vitor Machado, representante da DECO no Conselho Tarifário da ERSE, insistiu que o novo tarifário de quem aderiu à Endesa depois do leilão da DECO apenas refletiu o aumento da tarifa de acesso.

Não foi isso que as contas do Esquerda.net mostraram. Se a teia de termos técnicos já é complicada, os cálculos das tarifas podem ser enlouquecedores. Pedimos, pois, um pouco de paciência aos leitores.

A tarifa de acesso não representa, evidentemente, o valor total da fatura, mas tem um componente importante. Segundo a tabela divulgada pela ERSE para 2014, são estes os valores das tarifas de acesso para um contrato de potência contratada de 6,9 Kva e tarifa simples:





 

2013

2014

variação

Termo de potência

0,3396 euros/dia

0,2536 euros/dia

- 0,086

Termo de energia

0,0654 euros por kWh

0,0832 euros por kWh

+ 0,0178

 

Ora o que mostra a fatura de Paulo Sousa é que o aumento foi superior. Se o aumento refletisse exclusivamente o aumento das tarifas de acesso, a variação do valor das tarifas totais (que inclui as tarifas de acesso e o valor da energia que o cliente recebe do fornecedor final) teria de ser a mesma. Mas não é isso que ocorre.

 





 

2013

2014

variação

Termo de potência

0,351 euros/dia

0,265 euros/dia

- 0,086

Termo de energia

0,1405 euros por kWh

0,1601 euros por kWh

+ 0,0196

 

 

 

Como facilmente se verifica, enquanto a variação do termo de potência (que diminuiu) corresponde exatamente à redução da componente tarifa de acesso, a variação do termo de energia (que aumentou) foi superior ao aumento da componente tarifa de acesso (compare a variação do termo de energia das duas tabelas).

Quem participou do leilão e fez o contrato na altura ficou a perder

O dr. Machado também negou rotundamente que os novos clientes da Endesa, que queiram se beneficiar das condições da DECO – podem ainda fazê-lo – obtenham condições mais vantajosas do que quem assinou o contrato com a Endesa após o leilão. Mas, mais uma vez, o que o Esquerda.net confirmou é que é exatamente isso que acontece. Enquanto um cliente da Endesa que tenha participado do leilão e feito o contrato em julho do ano passado paga agora 0,1521 euros por kilowatt/hora (para uma potência contratada de 6,9 kva) – o que corresponde aos 0,1601 euros que vimos menos os 5% de desconto), um novo cliente, para a mesma potência e invocando a campanha da DECO pagará 0,1451 euros, que corresponde a um desconto de 5% sobre a tarifa regulada de 0,1528 euros.

De facto, os 40 mil que confiaram na DECO e assinaram o contrato logo a seguir ao leilão, além de não terem tido a propalada estabilidade de preços por 12 meses, também pagam hoje tarifas desvantajosas em relação a quase todas as outras empresas; tarifas que são mesmo desvantajosas, como dissemos, em relação aos novos clientes da Endesa que optem pelo protocolo da DECO. O Esquerda.net confirmou que quem ligar para a Endesa recebe imediatamente essa proposta, que está em destaque no site da empresa. A Endesa, aliás, continua a pagar 5 euros à DECO de comissão por cada novo contrato assinado nestas condições.

As melhores opções hoje

O Esquerda.net fez as contas para os custos de uma família que tenha a potência contratada de 6,9 kva e gaste 250 kilowatts por mês e chegou ao seguinte quadro:

O resultado, feitas as contas, é que o tarifário pago pelos clientes da Endesa que participaram do leilão da DECO só é melhor que a EDP Universal (tarifa regulada), e que o da Iberdrola. A oferta Endesa-DECO só é ainda atraente para os novos clientes. Note-se que a tabela do Esquerda.net mostra todos os valores usados nos cálculos.

O mesmo não se pode dizer do simulador da DECO, que afirma que a sua proposta é a melhor, mas sem nunca dizer que valores usou nos seus cálculos. Isto é, trata-se de uma “caixa-preta” para induzir o consumidor a clicar no botão “mudar”, que o conduz ao formulário de adesão à Endesa.

A propaganda agressiva (e nem sempre muito ética) é também motivo de queixa das pessoas que por algum motivo foram parar à lista de mails da associação e de vez em quando recebem comunicações com o assunto “Fulano, foi selecionado para receber uma Câmara de Vídeo Digital”, oriundos da DECO. O mail abre com um código de barras e a inscrição “E-mail premiado”.

“Uma associação de defesa dos direitos do consumidor nunca deveria fazer propaganda deste tipo”, acusa Ana Entrudo, para quem a última coisa que se poderia esperar da DECO era que copiasse os piores métodos da publicidade intrusiva e agressiva. “O que eu esperava era que eles não só não praticassem essa publicidade, como também criticassem e ajudassem os consumidores a defender-se de quem a pratica”.


Presidente da Endesa foi secretário de Estado em dois governos do PSD

A Endesa, a vencedora do leilão, é uma empresa espanhola fundada em 1944 com o nome Empresa Nacional de Electricidad, S.A. que opera na geração e distribuição de energia elétrica e na distribuição de gás natural. Em fevereiro de 2009 passou a ser controlada pela estatal italiana Enel.

A empresa tem sucursais em Portugal e presença em Marrocos, na Central térmica de Tahaddart. Na América do Sul, produz e distribui eletricidade no Brasil, no Chile, na Argentina, na Colômbia e no Peru, sendo nestes quatro últimos países a principal empresa do ramo.

A sucursal portuguesa é presidida por Nuno Ribeiro da Silva, que foi secretário de Estado da Energia do governo do PSD entre 1986 e 1991, e secretário de Estado da Juventude entre 1991 e 1993. No final do ano passado, a Endesa perdeu o 2º lugar do mercado de eletricidade liberalizado para a Iberdrola, que arrebanhou 21,3% no volume de eletricidade, contra 20% da Endesa.

No mercado de eletricidade doméstico, a Endesa, que já teve altas quotas em número de clientes e depois do leilão de maio do ano passado chegou a ter 8,6%, chegou a dezembro com 7,2%.

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