You are here
Não me demito! (Crónica de um enfermeiro despedido da Saúde 24)
Cerca de 5 anos na Saúde 24 representam horas intermináveis de palavras; palavras que tranquilizam, que orientam, que ensinam, que discordam, que simpatizam, que empatizam. Palavras na tentativa de não deixar sozinho quem busca a melhor solução para o sobressalto no seu caminho, para quem perdeu o norte, para quem num primeiro vislumbre não viu ninguém em seu redor.
À distância de uma voz habituamo-nos a fazer a diferença, a ser o farol que ilumina respostas, tantas vezes encontradas nos próprios, ou iluminando o caminho para onde estão as desejadas soluções.
Solta largas gargalhadas a ironia: o tesouro que é a voz dos enfermeiros da Saúde 24 tornou-se o seu purgatório. Confrontados com uma redução salarial insultuosa, confrontados com a ferocidade de quem vê a saúde alheia como negócio selvagem, expurgado da dignidade e respeito que exige, confrontados com a ingratidão pelo empenho ilimitado, ousaram os enfermeiros erguer a sua voz de indignação.
Os enfermeiros procuram agora a solução para o seu caminho tumultuoso. O seu ruído foi, no entanto, engolido pelo silêncio dos cúmplices e pela voz de timbre salazarista do seu tenebroso e ingrato empregador.
Perante a voz alertando para os contratos ilegais, para a remuneração pouco digna de quem sacrifica a sua vida familiar e social e o seu descanso noturno e aos fins-de-semana, para a estratégia empresarial criminosa desmembrando o serviço público de qualidade, remeteram-se ao silêncio os responsáveis.
Arquitetando argumentos de veracidade duvidosa, Ministro da Saúde, Direção Geral de Saúde e Autoridade das Condições de Trabalho, todos forjaram uma porta de escape, numa problemática que é uma sala fechada sem saída alguma.
Com um silêncio pouco eficaz, recorreu-se ao barulho ensurdecer; o barulho do medo, da coação e da represália. As vozes salvadoras foram para sempre silenciadas, ignorando serem essenciais, e sobre os enfermeiros contestatários abateu-se o despedimento. Rejubilaram os saudosos da ditadura e da opressão dos direitos, entristecem-se todos os que acreditam no Portugal de Abril, bem como todos aqueles que um dia confiaram a sua vida a estas vozes, hoje selvaticamente silenciadas.
Os decibéis ensurdecedores da estratégia de repressão debitam mentiras e calúnias, entoando conceitos que nas suas bocas se tornam sarcasmos. As vozes essas são de peões habituais no jogo do lucro, habituais à delapidação de direitos em sectores distintos, assim surja a oportunidade de negócio. Engenheiros, doutores, professores, tudo menos conhecedores do que gerem, espalhados como um cancro galopante por múltiplas empresas onde se dá a ablação diária de direitos, aí haja quem ouse manter a sua dignidade.
O barulho não apaga, no entanto, o timbre das vozes dos resistentes, das vozes dos que um dia foram salvos por aqueles que hoje são despedidos. E mesmo em surdina é esta a melodia que sobressai, afinal a mentira tem uma voz que só entra em ouvidos dispostos a ouvi-la.
Fui demitido, despedido sem apelo nem agravo, sem um telefonema ou um agradecimento pelos milhares de chamadas atendidas. Fui demitido mas não me demito; não me demito da minha dignidade, ocupação a tempo inteiro, remunerada com consciência tranquila e orgulho ao caminhar.
Não me demito de acreditar na razão e na justiça. Não me demito de acreditar nos valores de Abril. Não me demito de lutar a cada dia pela dignidade da minha profissão.
Não me demito de ter convicções, nem de as debater se algum dia esbarrarem na liberdade de outrem ou se esvaziarem de razão evidente ou sentido. Não me demito de ter um coração maior que a carteira e não me permito que o respeito pelos colegas de profissão e pelos utentes que servimos diariamente seja somente um papel amarfanhado no fundo da carteira.
Não me demito da crença de que um dia todos os que abdicam dos seus valores, que se deixam manietar a troco de migalhas, um dia se arrependerão e serão também eles da estirpe dos demitidos que não se demitem. Os vendedores de classes entenderão um dia que abdicaram do pão para todos a troco da sua bolorenta migalha.
Não me demito de acreditar no sonho infantil de trabalho justo e gratificante, na remuneração digna e negociada, na valorização do bom desempenho.
Não me demito de mim mesmo, demito-me sim da ideia de ser o carro que conduzo, a roupa que visto ou a casa onde moro. Não me demito da minha dignidade e ouso diariamente acreditar que, sejam quais forem as dificuldades, estará nas minhas mãos e no meu esforço a oportunidade de fazer a diferença.
Cala-se a voz demitida, não se cala a voz que nunca se demite. A voz que não se demite do orgulho em ser enfermeiro.
Nota de autor: num caminho difícil, um eterno agradecimento a Sara Simões, João Camargo e Tiago Gillot, entre tantos outros que são a razão da inesgotável força para esta luta.
Comments
Caro Colega, Também eu sou
Caro Colega,
Também eu sou enfermeira da Linha de Saúde 24, uma das quais tem dado a cara por esta luta, que acredito, e pela nossa dignidade enquanto enfermeiros.
Gostaria de lhe pedir autorização para colocar este texto na nossa página. Penso que descreve muito bem o sentimento de todos os enfermeiros da linha de Saúde 24.
Muito obrigado.
Parabéns, colega. Se todos os
Parabéns, colega.
Se todos os Enfermeiros, apesar de demitidos, de despedidos, de desrespeitados,de..., não se demitissem a Enfermagem não estava como está.
Não se demita nunca que eu também não, apesar do preço que tenho pago.
Nada mais importante do que estarmos em paz com a nossa consciencia, com os nossos principios, com a nossa ética, com...
Muita força
Antes de mais devo referir
Antes de mais devo referir que sou um dos enfermeiros fundadores da Linha Saúde 24, um dos (muito) poucos que ainda se mantém em funções. Um dos tais que se mantiveram na linha apesar de todas as dificuldades e bloqueios que insistentemente têm sido impostos aos enfermeiros.
Tem-se depauperando a qualidade do trabalho de enfermagem em prol dos números, estes últimos com a tradução directa em euros nos cofres de administradores e afins. A Linha Saúde 24 que pretensamente era um pilar do SNS, com a responsabilidade de melhorar a qualidade dos serviços de saúde, agora é somente mais um instrumento de rentabilização financeira para o grupo que a gere. Provas deste facto são as inúmeras piruetas que se fazem para se contabilizem (quase todas) as chamada enquanto as triagens, a constante pressão para o atendimento ultra-rápido e o massivo agendamento de chamadas Carateriza os picos de contactos. Tudo isto para que seja cobrado o máximo de chamadas ao estado, sem se atentar à qualidade. Aliás, nas avaliações, às quais os enfermeiros se submetem, o enfoque é, demasiadas vezes, dado a questões sem interesse clínico, e que em muito casos não mais serve para além de provocar ruído na comunicação e frustração no interlocutor.
A linha tem funcionado até ao momento com altos índices de qualidade graças ao empenhamento, qualidade e esforço de todos aqueles que, embora pressionados em sentido contrário, não se esquecem de ser enfermeiros. Aliás, a classe de enfermagem, que é peça essencial na engrenagem do SNS, na Linha Saúde 24 faz parte da quase totalidade das peças da engrenagem (que realmente trabalha). Não é difícil de entender o quão difícil é o nosso trabalho, atendendo ininterruptamente chamadas de utentes que muitas vezes a somar aos problemas de saúde apresentam limitações e defeitos na comunicação, tudo isto com sistemas informáticos que por vezes falham e com algoritmos que falham quase sempre. – Não fossem os conhecimentos, competências e bom senso dos enfermeiros e muitos e graves problemas ocorreriam.
O alto grau de exigência, penosidade e risco inerentes à atividade dos “operadores” sempre foi razão da alta percentagem de desistências que ocorrem na linha. Ninguém julgue que os enfermeiros desistem de trabalhar na linha por “dá cá aquela palha”. Para além das razões supracitadas, cada vez mais existe um deficiente recrutamento e integração dos novos trabalhadores na linha em que os novos são sempre mais “carne para canhão”. Para confirmar esta minha afirmação era importante fazer-se algumas cálculos matemáticos simples, por exemplo, quantos enfermeiros desistem aquando da formação e integração ou qual a percentagem de enfermeiros que permanecem na linha após os primeiros 12 meses de actividade. Tenho a certeza de que existem poucos serviços na área da saúde neste mundo com tamanha rotatividade de trabalhadores…Ups! Desculpem! Queria dizer prestadores de serviços.
A equipa de operadores da Linha Saúde 24, apesar da qualidade que ninguém poderá por em causa, foi sempre vista como um elementos menor. Nas semanas de baixo fluxo de chamadas era licito retirar turnos, geralmente em 2 alturas da semana, e em alturas de grande afluência era igualmente lícito pressionar os operadores para “aceitarem” novos (mais turnos que os previstos, certo?) turnos, isto porque não somos apenas prestadores de serviços - no meu caso particular desde o início da linha. Em alturas atípicas, como no caso do surto de gripe A, era ainda possível fazer-se turnos de 12 horas ou ter-se mais que 1 turno por dia. Apesar das dificuldades e da prescindibilidade dos enfermeiros, muitos deles durante tal época e demonstrando “amor à camisola” e por pedido expresso aos serviços por parte da DGS deslocaram-se dos serviços de origem para trabalhar a full time na Linha Saúde 24. Devo referir que conheço quem após tal destacamento sob o aval da DGS, e ao contrário do previamente acordado, não voltou ao serviço de origem. A estes a LSC nunca demonstrou qualquer atitude de solidariedade…
Na verdade a LSC nunca foi muito boa a pagar o esforço dos enfermeiros na melhoria da qualidade do serviço. Existem vários casos, mais ou menos bem documentados, em que estes esforços embateram directamente nos órgãos gestores. Estas propostas de mudança para além das irregularidades laborais sempre foram o motivo para “cilindrar-se os enfermeiros”. Escuso-me a referir as situações mais ou menos humilhantes, mais ou menos violentas pelas quais alguns dos meus companheiros passaram nestes anos. – Para referir teria de escrever uma quantidade de prosa similar ao da Guerra e Paz.
Desde o passado Dezembro de 2013 mais uma agressão a juntar a muitas outras. Sob pretexto do Ministério da Saúde estar a diminuir o “bolo financeiro” a linha teve a brilhante ideia de diminuir o tamanho das fatias de quem (realmente) trabalha. Assim, e pelas fatias, que mais são migalhas, a administração da linha apresentou a seguinte proposta –“ Ou aceitas ou vais embora!” Deve-se referir que em todos os casos fez-se tabula rasa do trajecto profissional dos enfermeiros da linha. Traduzindo, os patrões da linha não têm pudor, e como maus gestores que são não aproveitam os que levou anos a conseguir, uma equipa estável e coesa contendo os profissionais mais capazes no país na triagem à distância. Mais um desbaratar de recursos, mais um estímulo à emigração… O êxodo de enfermeiros é assim alimentado!
Os exploradores da linha cometeram um erro de cálculo ao pensar que a mol de enfermagem amedrontada pelas chefias e amaciada pela crise iria em uníssono aceitar a adenda ao contrato. Porém as voltas saíram trocadas, e para além do desacordo ao remendo contratual, destaparam-se um rol de muitas amoralidades e algumas ilegalidades, algumas delas ainda não devidamente expostas. Ressalvando-se ainda o facto de tais situações serem cometidas pelos sempre presentes elementos de confiança dos vários governos que vão desfilando, os omnipresentes jobs for the boys, que vão administrando o que desconhecem e afundando as boas ideias que vão surgindo.
A ganância reduziu os enfermeiros a meios para atingir os objectivos económicos e a arrogância não os deixou ver que os enfermeiros também sabem dar luta. De forma justa e sem recurso a cotoveladas ou joelhadas nas partes baixas. Muito diferente dos jogadores do outro lado do campo que não conseguem jogar sem violência ou sem manipular o jogo e comprar o árbitro. Agora ao perceberem (tardiamente) que não têm a opinião pública do seu lado, justificam chamadas perdidas com contactos fraudulentas, com situações de excesso de zelo, com sms, com falta de deontologia profissional, etc,etc,etc.. Há muito tempo, desde os meus tempos de escola secundária, que não ouvia uma lista de justificações tão mal elaborada.
A luta dos enfermeiros comunicadores iniciou-se já há alguns anos, embora agora ressurgindo de uma forma mais organizada e com uma maior número de combatentes. Não se enganem os mentores das alterações aos contratos, não se iludam com a ideia que a luta acaba quando todos os enfermeiros despedidos não tiverem os nomes nas listas de turnos. Mesmo cá fora iremos continuar a lutar, e (alguns) que ficam lutarão também, assim como vários outros, enfermeiros ou não, que acreditam que existe futuro para a Linha Saúde 24 dentro do SNS.
Aos que permanecem, porque ainda não conseguiram organizar as contas, “olho vivo” porque a linha tentará através dos vossos esforços recuperar a diminição do preço das chamadas com maior colume de chamadas. Ou seja o tempo de chamadas diminuirá em detrimento da qualidade. Recusem o embuste da majoração salarial à custa de uma tabela de dupla entrada que nunca conseguimos antingir- espero que o SEP saiba que o upgrade salarial há custa do binómio qualidade/tempo já foi utilizado compéssimos resultados.
Eu também não me arrependo de nada, sobre tudo não me arrependo de lutar pelo que acredito, lutar contra quem sofregamente fica com os dividendos de quem trabalha, lutar pelo futuro da linha do SNS e pelo País.
Ontem pelo que sei, e por não ter mais turnos atribuídos, fiz o meu último turno na Linha 24…com pena vejo o barco ir ao fundo! A LUTA CONTINUARÁ!!!
Add new comment