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Os Transparentes de Ondjaki

O livro do escritor angolano Ondjaki, Os Transparentes, já ia na segunda edição quando recebeu o Prémio Saramago. O livro, ensaiando um estilo de linguagem aguerrido e inovador, descreve a vida quotidiana num prédio de Luanda e os modos de vida dos habitantes, dos musseques às grandes famílias, uns submetidos à penúria, outros aos esquemas, às ameaças, à prepotência, bem como à corrupção, ao autoritarismo e às redes de negócios que dominam o seu país. É um livro sobre a gente que se desenrasca e sobre os medos do dia seguinte. Assim, é um retrato da grandeza e das misérias de um país em transformação, escarnecendo da ideologia auto-justificativa e do discurso do poder.
O prédio de sete andares, sem elevador, tem tudo, “respirava como uma entidade viva”. São os transparentes que lá habitam. Um jornalista, um vendedor de conchas, um coronel, um mudo, um assessor, uma secretária, um camarada ministro, um carteiro que escreve cartas e que lê as cartas dos outros mas esquece logo, professores, mulheres, fiscais, uma multidão vive na cidade, e na cidade acontece tudo. Abre-se um cinema “desoficial, porque não precisa de papéis”, no terraço que está disponível. Criam-se igrejas. Preparam-se atentados mortais. Chegam prostitutas suecas.
Nesta Luanda há sempre um poder superior, que nem pode ser percebido:
“- mas quem manda em tudo isto?
- gente muito superior.
- superior.. como deus?
- não. superior mesmo! aqui em Angola há pessoas que estão a mandar mais que deus.”
Por isso, a burocracia e o poder são imperscrutáveis, manda mais do que deus. Tem projetos megalómanos, inventa novas riquezas: o governo cria a CIPEL, a comissão instaladora do petróleo encontrável em Luanda, que “instala, só que você não vê a instalação. É uma comissão para alguém se instalar mesmo” e a vida prossegue, com escavações “in shore” ou “under city”. Tudo “com a colaboração de países como os Estados Unidos, a Rússia, a França, a Índia e o Brasil. – então e os tugas não mamam desta vez? Riu alguém”.
Só que “mexem na raiz da árvore e pensam que a sombra fica no seu lugar”. A cidade, cheia de novas canalizações nas suas entranhas, agita-se e perturba-se. Para entreter a população, esses transparentes, o governo anuncia um espetáculo inesquecível, um eclipse deslumbrante. Importam-se óculos de ver o eclipse, chegam excursões de cientistas, as arcas frigoríficas enchem-se de cerveja para a festa, preparam-se os balões, discute-se o aumento do número de feriados para comemorar devidamente os grandes acontecimentos. Luanda estremece. Até que um dia é anunciada uma comunicação solene do presidente:
“‘passamos de imediato a transmitir, para o território nacional da RepúblicaDeAngola, uma mensagem, em direto, de sua excelência, o engenheiro, Presidente da RepúblicaDeAngola.’ (...)
caros cidadãos da RepúblicaDeAngola, demais representações de outras nações acreditadas no nosso país, entidades religiosas e cívicas: em nome do governo nacional de Angola e segundo um encontro extraordinário do birô político do Partido, cumpro o dever de informar uma decisão que terá implicações na vida social, política e cultural de cada um de nós. analisados os mais recentes acontecimentos nacionais, tendo em conta a relevância da sua estatura moral e dos seu papel político desde os dias da nossa independência, tendo também em conta o estado de profunda consternação de toda a população da RepúblicaDeAngola, muito se ponderou sobre os acontecimentos e fenómenos que aconteceriam em solo nacional, perpetrando nas nossas vidas alguns eventos de magnitude incomensurável. ainda assim, o Partido no poder entende que, em Angola, não se vive o momento apropriado para as fulminantes celebrações que se avizinham – o Presidente tossiu levemente – assim sendo, e dado o recente passamento da camarada Ideologia, um dos pilares cívicos e morais da nossa nação, o Partido no poder decidiu cancelar quaisquer celebrações coletivas, propondo um período de três dias de luto nacional. nesse quadro, e imbuído dos poderes que me assistem, venho por este comunicado afirmar que Angola anuncia ao país e ao mundo o cancelamento, repito, o cancelamento total do eclipse anunciado para os próximos dias.”
Tudo continua igual, mas a festa perdeu-se. O negócio sobrevive:
“- vocês conseguem por esse dinheiro lá fora?
- aonde? – perguntou o fiscal DaOutra
- pode ser em Portugal
- podemos, dependendo da quantia
- então tá fechado o negócio, vão manter o nome do empreendimento?
- sim, é um bom nome, tem resultado bem, as pessoas já se habituaram à IgrejaDaOvelhinhaSagrada”
O povo entretém-se e bebe e os balões voam. O apocalipse, afinal, é a vida de todos os dias, mesmo quando Luanda arde, as canalizações explodem e tudo é invadido por um fogo “vermelho devagarinho”. Para conhecer este vermelho devagarinho de alguma da melhor literatura angolana, leia Os Transparentes.
Comments
Bora lá Francisco Louçã. Você
Bora lá Francisco Louçã. Você consegue mesmo acender a chama que existe dentro de cada um de nós. Um prestimoso Obrigado. Cuidado com esses isqueiros.
Ondjaki fala por entre 1
Ondjaki fala por entre 1 coração que bate. A escrita são essas contrações. Da valia de uma encadernação a 17,90€ lisboetas e ainda o engate momentâneo mas bem configurado da empregada, logo nas primeiras páginas se deduzirá com o máximo do prazer todo o enunciado
recomenda-se a leitura
" - ainda me diz qual é a cor desse fogo [Cego]
embora difícil e talvez impossível
o miúdo puxou de dentro de si umas lágrimas quentes que o levassem até à infância porque era aí, nesse reino desprevenido de pensamentos que uma resposta florida poderia nascer, viva e fiel ao que via
- não me deixe morrer sem saber a cor dessa luz quente"
dessa luz quente
não (me) deixe morrer (sem saber) (d)essa luz quente
o jorro é contínuo, deixa-se que o relato apenas o presuma infletido pelas agras avenidas de uma negra Luanda
"suspirou fundo
moléculas de oxigénio inundaram o seu coração, depois as veias e a cabeça, energias renovadas viajaram até às extremidades do seu corpo mas o fenómeno já se havia desencadeado"
mas o fenómenos já se havia desencadeado
"- já se respira melhor aí Francisco Louçã? Obrigado na mesma".
o oculto é como um poema -
o oculto é como um poema - chega a qualquer momento
Ondjaki ficará certamente na
Ondjaki ficará certamente na história da literatura universal, cada virar de página é o encontro do próximo ponto ;
quando a história se confunde com a vida cada fase é um termo
"foi num semáforo vermelho que o VendedorDeConchas conheceu o Cego, fez deslizar o saco das costas para o chão e o Cego gostou do barulho das conchas
- você ouve bem?
- não percebo
- você ouve mesmo bem?
- escuto só normalmente. está a falar do barulho do saco? são conchas
- sei que são conchas. sou Cego mas conheço o barulho das coisas. não é isso...
- então é o quê?
- é que eu posso ouvir o barulho do sal dentro das conchas
o VendedordeConchas não soube o que dizer, o Cego não disse nada
o sinal ficou verde mas nenhum deles se moveu."
Isto não faz lembrar nada?
É que se não faz esta gente anda muito desatenta à política nacional.
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