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Contra a cultura da violação

As mulheres, no plural, ainda que se não nasça mas se torne, como disse Beauvoir, são as primeiras vítimas das crises, das guerras e dos pós-guerras.

As contradições sociais são várias e as violências múltiplas. No caso das mulheres, no plural, ainda que se não nasça mas se torne, como disse Beauvoir, são as primeiras vítimas das crises, das guerras e dos pós-guerras. E em todos os tempos, sofrem o castigo de Eva de ser percecionadas mais como vítimas do que como atrizes dos destinos coletivos e individuais. O silêncio da história dos homens é também ele criminoso porque nos desarma de memória frente à milenar opressão patriarcal.

Na contramão, os movimentos de mulheres visibilizam as opressões e, combatendo-as, também fazem da emancipação uma prática além de uma reivindicação. Olho para os países emergentes para falar das mulheres de todo o mundo, da Europa, daqui. No primeiro dia do ano, foi por essas razões que escrevi sobre a Filha da Índia. Hoje viajamos ao Brasil para ver lá e de lá aquilo que aqui se esconde também no silêncio.

No passado dia quatro de novembro, o 7º Relatório Brasileiro de Segurança Pública revelou um crescimento de 18 por cento entre 2011 e 2012 no número de violações registadas, com uma taxa de 26,1 casos por cada 100 mil habitantes, no ano passado. A Marcha Mundial das Mulheres (MMM) do Brasil denuncia também outros números que captam o contabilizável de um sofrimento sem medidas: no Brasil, a cada três minutos uma mulher sofre algum tipo de violência e cada duas horas, uma mulher é assassinada.

A luta contra a violência de género segue em vários campos e um progresso assinalável no Brasil, do ponto de vista legal, foi a publicação, em 2006, da Lei Maria da Penha, lei 11.340/06: “Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres, nos termos do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; (…)”.

Houve progressos assinaláveis no combate à violência contra as mulheres, no entanto, como denunciam os números, a vida concreta é mais dura. O direito não deve ser encarado com o simplismo positivista. Do ponto de vista da luta emancipatória, a lei deve ser encarada como um instrumento de luta mas não como um elemento suficiente. Em última instância o que conta é a realidade social, ainda que a lei seja justa do ponto de vista emancipatório. Neste caso, não é a letra da lei que protege os violadores e ataca as vítimas, são as delegacias que se recusam ou dissuadem as mulheres de fazer queixa, principalmente com base no critério do vestuário.

Combater a “cultura do estupro”, ou cultura da violação, é um dos eixos da luta contra este tipo de violência de género, em articulação com outras medidas como a luta por criação de delegacias de mulheres. A questão da “cultura” não pode ser negligenciada, pois as ideologias dominantes naturalizam as relações de poder atuais, dos modos de vida e de produção à ordem internacional e ao domínio sobre os corpos das mulheres.

“Depois não querem que haja violações”, disse ele como sentença de verdade, comentando sobriamente ao ver a moça passar com roupas “ousadas”. Ouvi isto várias vezes em … Portugal. A culpa é de ir àquele bairro, é de andar na rua sozinha, é do decote, é de parecer ou ser prostituta, a culpa nunca é do violador, nesta “cultura” a culpa nunca é da sociedade machista, nem quando os violadores são pais, irmãos, tios, maridos, namorados. Não precisamos de ir ao outro lado do Atlântico para conhecermos esta realidade que é também a nossa. Precisamos de combatê-la.

Sobre o/a autor(a)

Investigador. Mestre em Relações Internacionais. Doutorando em Antropologia. Ativista do coletivo feminista Por Todas Nós. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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