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O poder da compreensão em Hannah Arendt

Às salas de cinema portuguesas chegou finalmente o filme Hannah Arendt (2012) da realizadora alemã Margarethe von Trotta. Aqui fica um argumento para ir ver este filme: permite-nos pensar, influenciados pela genialidade e coragem de uma pensadora raramente igualável na história do pensamento político. Por Sofia Roque
Aqui fica um argumento para ir ver este filme: permite-nos pensar, influenciados pela genialidade e coragem de uma pensadora raramente igualável na história do pensamento político, Hannah Arendt

Às salas de cinema portuguesas chegou finalmente o filme Hannah Arendt (2012) da realizadora alemã Margarethe von Trotta. Com este «finalmente» pretendo sublinhar o direito de acesso a este filme de modo generalizado, no sentido em que as obras de arte e o poder de reflexão que podem conter deve ser acessível a todos e não permanecer obscuro e encerrado num público de elite que segue festivais ou domina línguas estrangeiras. Infelizmente, este acesso não será assim tão amplo, sendo hoje o cinema mais uma mercadoria cara num mercado cultural fechado a quem não tem recursos ou informação. De qualquer modo, aqui fica um argumento para ir ver este filme: permite-nos pensar, influenciados pela genialidade e coragem de uma pensadora raramente igualável na história do pensamento político, Hannah Arendt.

O filme conta a história de um episódio marcante da vida pública no pós-Segunda Guerra Mundial sob a perspetiva do relato escrito pela filósofa judia e alemã, exilada nos EUA, para a revista The New Yorker e também a da sua conturbada receção: o julgamento do nazi Adolf Eichmann, em Jerusalém, 1961. O cuidadoso guião deste filme é também uma incursão biográfica num dos momentos atribulados da vida de Hannah Arendt que, dez anos antes, tinha publicado As Origens do Totalitarismo, um livro fundamental para compreender a ascensão e a estrutura dos sistemas totalitários que assolaram a primeira metade do século XX e fundaram a contemporaneidade num impasse político, moral e também filosófico.

A propósito do seu relato sobre o julgamento de Eichmann, Hannah Arendt publicou em 1963 o livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Nestes textos, Arendt desenvolveu o seu conceito de banalidade do mal, termo utilizado para caracterizar não o próprio mal, mas sim os seus protagonistas que afinal, tal como Eichmann se revelou, não são monstros diabólicos mas sim homenzinhos banais, cidadãos obedientes e acríticos. Na sua análise, Arendt colocou a questão sobre a radicalidade do mal associada a uma função de irreflexão, ou melhor, ausência de reflexão, isto é, essa tendência que leva pessoas comuns a obedecer a ordens e a conformar-se com a opinião massificada, sem uma avaliação crítica das consequências da sua ação ou inação. No seu relato, Arendt criticou também o modo como o julgamento de Eichmann foi conduzido em Israel e não deixou de referir o facto de alguns líderes judeus, como M. C. Rumkowski, terem participado ativamente no Holocausto. Como podemos ouvi-la argumentar num dos episódios finais do filme de Margarethe von Trotta, Arendt afirma que “a resistência era impossível”, contudo, entre a resistência e a cooperação “algo poderia ter sido feito de modo diferente”. As suas críticas geraram uma grande controvérsia na comunidade judaica internacional e uma forte animosidade generalizada contra si. Muitos amigos viraram-lhe as costas e muitos críticos não se pouparam até a ofensas de carácter, julgando-a pela sua suposta frieza e traição à memória das vítimas da Shoah. As críticas multiplicaram-se mas poucos foram os que, de facto, a leram. Porém, se há algo que Arendt não pretendeu defender com o termo “banalidade do mal” foi que o mal se tivesse tornado comum ou relativo ou que Eichmann e os seus consortes nazis cometeram crimes ordinários ou banais. De facto, Arendt considerou esses crimes excecionais, ou mesmo sem precedentes, crimes cuja natureza extraordinária reclama uma nova abordagem para o seu julgamento legal. Além disso, Arendt não discordou da sentença de morte aplicada a Eichmann pelo Tribunal de Israel.

 

Para um melhor entendimento da polémica deste filme e do pensamento de Hannah Arendt sobre estas questões, aqui ficam três pontos de luz, assumindo que nenhuma nota poderá substituir a leitura do seu relato. Fica aqui também o convite à leitura das suas obras.

 

I. Um crime contra a humanidade

Falemos sobre o problema da intenção legal. Os tribunais tiveram que provar que Eichmann teve a intenção de cometer um genocídio, a fim de ser condenado por esse crime? O argumento arendtiano é o de que Eichmann pode muito bem não ter tido essa intenção presente, na medida em que ele não pensou sobre o crime que estava a cometer. Arendt não diz que este agiu sem consciência, antes insiste que o termo “pensar” tem de ser reservado para um modo mais reflexivo da racionalidade.

Arendt procurou saber se um novo tipo de sujeito histórico se tornou possível com o regime totalitário de Hitler, um sistema onde os humanos implementaram políticas, mas deixaram de ter intenções em qualquer sentido usual. Ter a intenção de, no seu entender, significa pensar reflexivamente sobre a sua própria ação enquanto um ser político, cuja vida e pensamento estão ligados à vida e pensamento de outros. Assim, primeiramente, Arendt assumiu a conclusão terrífica de que o que se tornou "banal" foi exatamente o não pensar. E este facto em si mesmo não era de todo banal, mas sim sem precedentes, chocante e errado.

Ao escrever sobre Eichmann, Arendt procurou compreender o que foi inédito no genocídio protagonizado pelos nazis - não no sentido de estabelecer a excecionalidade do caso de Israel, mas para compreender esse crime contra a humanidade que implicava a aniquilação total dos judeus, dos ciganos, dos homossexuais, dos comunistas, dos deficientes e dos doentes. Assim como o não pensar implica falhar o acesso à necessidade e ao valor tornados possíveis pelo próprio pensar, assim a aniquilação e o deslocamento de populações inteiras consistiu num ataque não só contra esses grupos específicos, mas também contra a própria humanidade. Neste sentido, Arendt objetou contra o facto de um estado-nação específico conduzir o julgamento de Eichmann exclusivamente em nome do seu povo.

Naquele momento histórico, para Arendt, tornou-se necessário conceptualizar os crimes contra a humanidade e prepararmo-nos, algo que implicava a obrigação de elaborar novas estruturas de direito internacional. Porque se um crime contra a humanidade se tornou, em certo sentido, “banal", tal deveu-se precisamente ao facto de ter sido cometido de forma quotidiana, sistemática, sem estar devidamente nomeado e sem oposição. Em certo sentido, ao chamar “banal” a um crime contra a humanidade, Hannah Arendt pretendeu denunciar em forma de grito e de modo estridente que esse crime foi aceite pelos criminosos de modo rotineiro e implementado sem repulsa moral, sem indignação política ou resistência.

 

II. Eichmann: um cidadão obediente à lei

Como refere Judith Butler, o livro sobre Eichmann é bastante “conflituoso”. Contudo, Hannah Arendt não se debruçou apenas sobre os juízes de Israel e o modo como conduziram o julgamento e chegaram àquele veredicto. Arendt é também muito crítica, dos pontos de vista ético e filosófico, do comportamento de Eichmann que formulou e obedeceu a leis hediondas.

Um momento-chave do seu relato é quando nos conta como Eichmann se justificou kantianamente como um cidadão obediente à lei (“a Law-Abiding Citizen”). Podemos imaginar o quão escandalosa tal asserção soou para Arendt. Ter formulado e executado as ordens que concretizaram a “solução final” já foi bastante horrível, mas afirmar que sempre viveu segundo os preceitos morais kantianos, também assim justificando a sua obediência à autoridade nazi, foi demais.”Demais” no sentido de uma aparentemente ilimitada perversão racional do mal. Eichmann invocou o sentido do “dever” num esforço confuso para explicar a sua própria versão da filosofia moral kantiana. Sobre isto, Arendt escreveu: “Isto é ultrajante e também incompreensível, uma vez que a filosofia moral de Kant está tão intimamente ligada à faculdade humana do juízo que exclui a obediência cega"1.

Eichmann contradiz-se quando explica os seus supostos compromissos kantianos. Por um lado, ele esclarece: "Eu quis dizer, com o meu comentário sobre Kant, que o princípio da minha vontade deve ser sempre de tal modo que possa tornar-se o princípio de leis gerais". E, no entanto, ele também reconhece que uma vez encarregue da tarefa de levar a cabo a solução final, ele deixou de viver segundo os princípios kantianos. Arendt re-transcreve a sua auto-descrição: "Já não era ‘dono dos seus próprios atos’, era incapaz de ‘mudar alguma coisa’"2.

Após relatar o momento em que, no meio da sua explicação confusa, Eichmann reformula o imperativo categórico que passa então a indicar que se deve agir de tal forma que o Führer aprove, ou ele mesmo assim aja, Arendt faz um comentário como se estivesse a responder-lhe diretamente: "Kant, com certeza, nunca teve a intenção de dizer algo desse tipo; pelo contrário, para ele cada ser humano é um legislador no momento em que começa a agir; usando a sua ‘razão prática’, o ser humano encontra os princípios que poderão e devem ser os princípios da lei"3. Neste sentido, surge a maior e mais assustadora constatação de Arendt - Eichmann recusou-se a pensar. Por isso o termo “thoughtlessness” (irreflexão ou, literalmente, sem pensamento) não significa que Eichmann era desprovido de pensamento, muito menos de responsabilidade, nem mesmo que era incapaz de pensar (Mary MacCarthy chegou a sugerir o termo “inability to think”). Arendt não argumentou que Eichmann não podia pensar, mas sim que não pensou. O que estava em jogo para Arendt era o pensar, cuja ausência se tornou a condição de possibilidade de um mal tão radical. Esta foi a conclusão a que chegou, tão espantosa quanto assustadora. De certo modo, podemos interpretar muitas das suas obras posteriores, como um debate alargado com Eichmann sobre a leitura correta dos textos kantianos - um esforço ávido para recuperar Kant da sua interpretação nazi e para mobilizar a sua filosofia justamente contra as conceções de obediência que acriticamente apoiaram ou poderão apoiar um código legal paradoxalmente criminoso e um regime fascista, numa batalha contra a burocracia cuja expressão máxima degenera num estado totalitário.

 

III. O poder da compreensão

Neste último ponto, pretendo enunciar um aspeto que considero fundamental para interpretar o gesto de Arendt na escrita do seu relato e das suas obras, na experiência da sua vida. Na célebre entrevista que concedeu a Günter Gaus (1964), Hannah Arendt afirmou que o mais importante para si era compreender, referindo-se mesmo a uma “necessidade” de compreensão. Arendt definiu esse tipo de compreensão especial que o pensamento político exige, e que reclamou de si mesma, afirmando que só a imaginação torna possível ver as coisas segundo uma perspetiva própria, sem distorções ou preconceitos. Assim,  a compreensão é interminável e, por isso, não pode chegar a resultados finais; constitui “o modo distintivamente humano de viver”, porque cada pessoa singular necessita de se reconciliar com um mundo no qual nasceu estrangeira. A compreensão, como define Arendt, “é criadora de sentido, de um sentido que produzimos no próprio processo de viver”4. Ora, a necessidade de compreender o mundo no presente, procurando uma reconciliação com o passado e projetando a promessa do futuro, coloca a faculdade de julgar no centro do inquérito sobre as condições de possibilidade da ação. Este é o horizonte ético-político das modalidades da compreensão e do juízo que se traduzem numa experiência muito particular da vida activa, a experiência da política. No pensamento arendtiano, compreensão e juízo integram o relato da vivência da pluralidade. A compreensão está também intimamente ligada ao senso comum, que é o sentido político por excelência e pressupõe a existência de um mundo partilhado onde, de facto, estão outros.

Hannah Arendt propõe-nos pensar a política enquanto o desejo da revelação involuntária, a vontade das alegrias inerentes à ação, como as de aparecer no discurso e no agir em conjunto. Se a compreensão, esse modo particular de refletir a partir do qual reconhecemos a realidade, é o que nos permite ser contemporâneos do mundo que habitamos, é pela exposição pública que nos tornamos atores nesse mesmo mundo. Agir é, portanto, correr o “risco da vida pública”5 e é o poder da promessa que nos torna capazes do comprometimento. A coragem é, por conseguinte, a primeira virtude política, tanto num sentido aristotélico como homérico. Distinguindo-se da informação adequada e do conhecimento científico, e também do perdão, que é “uma ação singular que termina num ato singular”, a ação de compreender é definida por Arendt como sendo, na verdade, um processo complexo, uma atividade incessante que nunca chegará a resultados unívocos, embora constitua uma fonte de sentido e unidade no tempo essenciais para o reconhecimento da realidade e a reconciliação com o mundo.

Foi isto que Hannah Arendt tentou fazer: compreender. E ao fazê-lo, decidiu correr o risco da vida pública. Vivemos o tempo perigoso de uma burocracia financeira que torna os direitos fundamentais supérfluos em prol de uma austeridade abstrata e inumana, dando espaço à emergência de discursos e práticas racistas e fascistas, mais ou menos institucionais. Precisamos, portanto, de compreender o que se está a passar, pois esse risco é a única condição para evitar os erros do passado. Ou isso, ou também desistimos de ser humanos.
 


1Hannah ARENDT, Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, Penguin Books, New York, 2006, p. 136.

2Idem. Ibidem.

3Idem, ibidem.

4Idem, «Understanding and Politics», Essays in Understanding: 1930–1954 [EU], Edição e introdução de Jerome Kohn, Schocken Books, New York, 2005, pp. 308-309.

5Idem, «What remains? The language remains», EU, p. 22.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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