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Piropos

Sou, naturalmente, contra qualquer iniciativa que pretenda legislar sobre esta matéria, dada a ambiguidade, desde logo semântica, que lhe está subjacente. Mas sei que o Socialismo funciona precisamente como espaço arriscado de intervenção, de contraditório...

O Bloco de Esquerda alimenta muitos ódios na burguesia portuguesa e em alguma “esquerda” sempre ansiosa por se demarcar e explorar o filão de uma suposta tendência para o puritanismo, o politicamente correto ou o radicalismo espúrio.

O Bloco tornou-se, aliás, o alvo a abater, bem mais do que o PCP. A maior parte dos arautos do anti-comunismo atira-se-lhe agora de unhas crescidas e sujas e dentes afiados e podres, sob qualquer motivo que suscite burburinho e possa escapar ao exame atento, algo que o ciberespaço propicia. O pretexto momentâneo de alguns dos ataques mais hediondos de que tenho memória, escritos com tanto rancor quanto a falta de rigor de que carecem (o Daniel Oliveira denunciou isto mesmo num artigo que me merece elogio, no Expresso), assentam no facto de uma militante ter apresentado uma comunicação ao Socialismo 2013, espaço privilegiado de trocas de ideias, onde aborda a hipótese do piropo poder funcionar como início ou momento de um processo de agressão e dominação masculina. Impossibilitado de estar no evento, não pude debater com esta camarada e não conheço os contornos exatos em que colocou a questão. Sou, naturalmente, contra qualquer iniciativa que pretenda legislar sobre esta matéria, dada a ambiguidade, desde logo semântica, que lhe está subjacente.

Mas sei que o Socialismo funciona precisamente como espaço arriscado de intervenção, de contraditório, tantas vezes vivo e inconclusivo, como aliás se pretende no avançar do pensamento. Nem sempre é preciso ter grandes teses ou formidáveis certezas. Por vezes é mesmo necessário partilhar a opinião que representa um percurso, uma biografia, um conjunto de leituras, experiências, hesitações, dúvidas. Sem aparecerem em público, sem o crivo do controle cruzado de argumentos, resta às ideias o recanto assombrado da solidão e do medo, onde definharão. A crítica exerce-se, precisamente, nestas ocasiões de dizer e contra-dizer. Mas aquilo a que assistimos na imprensa e nas redes sociais foi um destilar irracional de ódio em doses bestiais e deve ser interpretado politicamente.

Duas lições, creio, a ter em conta: a censura não pode existir no Bloco de Esquerda sob nenhuma forma, nomeadamente através da auto censura que nos impede de experimentarmos, partilharmos e melhorarmos ideias. A existir, seria o fim do Bloco na sua especificidade distintiva. Segunda ideia, em tenso e contraditório paralelo com a primeira: nenhuma ingenuidade nos é permitida. Eles estão à espreita para nos tentar destruir.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, professor universitário. Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
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