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A Síria e a obscenidade moral

As potências ocidentais apostaram até agora numa guerra de desgaste na Síria. Em alguns círculos diplomáticos considera-se que se algum dos lados ganhar, os Estados Unidos perdem. Há 2 anos que existe intervenção na Síria por parte de atores regionais e internacionais. Por Olga Rodríguez.
Que potências que legitimam sequestros, torturas, assassinatos extrajudiciais e cárceres como Guantánamo tratem de erigir-se uma vez mais como campeões dos direitos humanos e das liberdades é um pouco delirante. E que um Prémio Nobel da Paz vá apostar uma vez mais na via militar demonstra o marco orwelliano em que nos encontramos.

Fala-se de uma iminente intervenção militar na Síria. Há quem lamente que não tenha acontecido antes, que os Estados Unidos e os seus aliados não tenham “reagido” até agora. Não tem sido desinteresse, mas sim uma aposta estratégica calculada.

Desde há mais de dois anos que Rússia e Irão apoiam militarmente o regime sírio. Por sua vez, diversas potências ocidentais, assim como os seus aliados no Médio Oriente, intervêm na Síria de forma mais ou menos subterrânea, proporcionando armas e informação de segurança aos rebeldes. França e Estados Unidos, entre outros, têm fornecido ajuda militar aos grupos armados da oposição. A CIA e os serviços secretos britânicos trabalham no terreno apoiando os rebeldes sírios e aconselhando os países do Golfo sobre os grupos que devem armar.

O material bélico facilitado aos rebeldes que lutam contra Assad tem chegado principalmente através dos países do Golfo e da Turquia, e tem sido medido com precisão desde 2011, para que estes não disponham de armamento pesado. Deste modo os “rebeldes” têm podido ferir mas não derrubar o governo de Assad; têm contado com capacidade suficiente para resistir mas não para vencer. E assim, o conflito tem-se mantido num nível que permite a ambos os lados sobreviver, desgastando-se. É o ponto morto, a situação indefinida que até agora tem sido conveniente a alguns atores internacionais envolvidos de um modo ou de outro no conflito.

Não é algo novo. Nos anos oitenta, quando estoirou a guerra entre Irão e Iraque, Washington proporcionou apoio, armas e informação militar a Bagdade, e de facto Saddam Hussein empregou gás sarin norte-americano contra população iraniana e curda. Mas numa estratégia de jogo duplo os EUA também facilitaram secretamente armamento ao Irão entre 1985 e 1987 através de uma rede de tráfico de armas norte-americanas e israelitas organizada pela CIA.

Com os lucros desse negócio, Washington apoiou os Contra nicaraguenses e a guerrilha afegã que lutava contra as tropas soviéticas no Afeganistão. A operação ficou conhecida com o nome de “Irangate”. Deste modo os Estados Unidos contribuíram para o prolongamento da guerra entre Bagdade e Teerão, com o propósito de desgastar os dois países estratégicos e com petróleo e de deixá-los fora de jogo. Se ambos perdessem, Washington ganhava.

A busca de uma partida de xadrez às tabelas

No caso sírio considera-se que se algum dos lados ganhar, os Estados Unidos perdem (e com eles, Israel). É a premissa aceite em alguns círculos políticos e diplomáticos ocidentais. Por isso apostaram na guerra de desgaste, pelo ponto morto, por uma situação indefinida. Agora que Assad tinha tomado vantagem em relação aos seus inimigos, a comunidade ocidental anuncia um novo nível de intervenção na Síria.

Assim o expressava esta semana, sem qualquer pudor, Edward Luttwak, do Center for Strategic and International Studies, num artigo publicado em The New York Times:

Um resultado decisivo para qualquer um dos lados seria inaceitável para os Estados Unidos. Uma restauração do regime de Assad apoiado pelo Irão aumentaria o poder e o status do Irão em todo o Médio Oriente, enquanto uma vitória dos rebeldes, dominados pelas fações extremistas, inauguraria outra onda de terrorismo da Al Qaeda.

Só há um resultado que pode favorecer positivamente os Estados Unidos: o cenário indefinido. Mantendo o Exército de Assad e os seus aliados, Irão e Hezboláh, numa guerra contra lutadores extremistas alinhados à Al Qaeda, quatro inimigos de Washington estarão envolvidos numa guerra entre si mesmos...”.

A espuma das intenções reais

Se vivêssemos num mundo idílico poderíamos acreditar na bondade da política internacional. As guerras seriam essas missões de paz de que tanto falam os dirigentes ocidentais, e os governos mover-se-iam impulsionados apenas pela defesa dos interesses dos cidadãos. Mas o nosso mundo está muito longe de ser idílico.

A História, essa grande ferramenta para analisar também o nosso presente, demonstra-nos que às vezes as versões oficiais de um governo são só a espuma das suas posições reais. Que por trás das posturas públicas aparentemente altruístas se escondem políticas ilegais e criminosas. Que por baixo dos discursos oficiais em nome da defesa dos direitos humanos se movem interesses económicos e geopolíticos.

Não é preciso muito para encontrar exemplos:

O apoio dos Estados Unidos aos golpes de Estado e às ditaduras na América Latina nos anos setenta; as mentiras para invadir e destroçar o Iraque, as desculpas para invadir e ocupar o Afeganistão, a negação sistemática de crimes de guerra, de assassinatos de civis, a criação de centros de tortura disseminados por todo mundo, a aceitação por parte da Europa dos voos da CIA, o uso de aviões não tripulados – drones - para cometer assassinatos extrajudiciais, o emprego de urânio empobrecido, a venda de armas a governos evidentemente ditatoriais e repressores e assim um longo etcétera.

Casualmente nesta mesma semana a CIA reconhecia algo já sabido: O seu papel por detrás do golpe de Estado que em 1953 derrubou o primeiro-ministro iraniano Mohamed Mossadeq, eleito democraticamente e que tinha nacionalizado o petróleo iraniano, até então explorado pelo Reino Unido principalmente.

Recentemente também se conheceu publicamente um contrato pelo qual os Estados Unidos forneceram bombas de fragmentação à monarquia absolutista da Arábia Saudita, que fornece armamento aos rebeldes sírios.

Os únicos árbitros

As potências ocidentais pretendem erigir-se de novo como árbitro desinteressado a quem se deve chamar quando as coisas ficam feias. Apresentam-se a si mesmas como aqueles que “solucionam” conflitos através do uso de bombas e do impulso de operações militares aparentemente “limpas, justas e breves” (isso disseram do Iraque, como não se esquece).

Os EUA e os seus aliados não parecem dispostos a esperar pelos relatórios dos inspetores das Nações Unidas antes de atacar a Síria, o que constitui um perigoso precedente.

O regime de Assad é responsável de repressão, de milhares de mortos, mas neste caso não se provou ainda que seja o autor do ataque com armas químicas. Poderá sê-lo, de facto é um dos seis países que não assinaram a Convenção de controle de armas químicas (o seu vizinho, Israel, não a ratificou).

Mas o que era sério - e legal - seria esperar pelas conclusões da ONU sobre o ataque e, depois disso, procurar outras opções alternativas à linguagem das bombas. Caso contrário estar-se-á a apostar por uma guerra novamente ilegal, que não contará com a aprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Se hoje Washington e os seus aliados atuam como "árbitros" para decidir se há que atacar ou não um país, amanhã outra nação pode reivindicar o mesmo "direito".

As outras "obscenidades morais"

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, disse que o ataque com armas químicas na Síria é algo “absolutamente abominável e inadmissível”, o presidente francês François Hollande tem anunciado que a “França castigará os que gasearam inocentes” e o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, afirmou que o uso de armas químicas é uma obscenidade moral.

Cabe perguntar se o emprego de fósforo branco em Falluja (Iraque) pelos EUA não é uma obscenidade moral nem um ato "abominável, inadmissível". É legítimo questionar se não seria apropriado, portanto, castigar, tal e como a França tem defendido, os que gasearam inocentes, como Israel em Gaza ou os Estados Unidos em Falluja.

Que fale de obscenidades morais um Estado que só na última década assassinou, feriu, torturou, sequestrou ou encerrou centenas de milhares de pessoas é tudo menos apelativo. Que potências que legitimam sequestros, torturas, assassinatos extrajudiciais e cárceres como Guantánamo tratem de erigir-se uma vez mais como campeões dos direitos humanos e das liberdades é um pouco delirante. E que um Prémio Nobel da Paz vá apostar uma vez mais na via militar demonstra o marco orwelliano em que nos encontramos.

No meio do labirinto de interesses internos, regionais e internacionais encontra-se a população civil síria, castigada pela violência, dentro de um conflito de que também são responsáveis os atores regionais e internacionais implicados desde o início.

Nestes dois últimos anos, a guerra na Síria provocou 100.000 mortos e dois milhões de refugiados, dos quais mais de um milhão são crianças. Mas parece que estas mortes e estes deslocados não eram até agora uma obscenidade moral.

Há muitas perguntas a que não se está a responder:

De que forma as bombas ocidentais ajudarão a população síria?

Como vão evitar vítimas civis (tendo em conta além disso os trágicos precedentes)?

Valorizou-se que uma participação aberta de vários países no conflito poderia elevar o nível de confrontação na região?

Como evitarão o emprego de mais armas químicas no futuro?

E após esses dois dias de ataques, que acontece? De novo a guerra de desgaste, o cenário indefinido, a intervenção subterrânea?

Ou pelo contrário, mais bombardeamentos, mais ataques, mais guerra apresentada, em pleno século XXI, como via para a paz, enquanto se vira as costas a outros caminhos, a outras políticas?

Artigo de Olga Rodríguez, publicado a 28 de agosto de 2013 em eldiario.es.Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

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