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A guerra é a guerra
Há duas características marcantes do atual modo ocidental de fazer a guerra. A primeira é a força social dada a narrativas de legitimação que acomodam a realização da guerra nas opiniões públicas: a guerra será rápida, será cirúrgica, não haverá baixas e logo logo regressaremos à normalidade tranquila. A segunda característica é a interdição do uso do nome "guerra" para designar aquilo que se faz. São "operações militares", é "intervenção humanitária", é "proteção de civis". Agora, na Síria, será "uma séria advertência ao regime de Damasco". Mas essa variação semântica disfarça mal o que realmente conta: é sempre e só de guerra que se trata.
Na Síria eterniza-se uma guerra sem quartel entre uma ditadura sanguinária e uma miríade de grupos rebeldes, que guerreiam o regime e se guerreiam entre si. Tal como na Líbia e no Afeganistão, não houve na Síria nenhuma marcha triunfal dos contestatários do regime nem a liberdade e a democracia dominam a sua agenda, longe disso. A limpeza étnica perpetrada pelos rebeldes contra os curdos residentes na Síria - que obrigou à fuga de mais de 40 mil para o Curdistão iraquiano - e a perspetiva de criação de uma "zona libertada" islamista no Norte da Síria num cenário de queda da dinastia alauita são dois sinais importantes do ascendente que os paramilitares jihadistas e as forças do fundamentalismo mais fanático vêm tendo no campo anti-Assad. Tal como na Líbia e no Afeganistão, o envolvimento ocidental na guerra civil na Síria não tem outro propósito senão o de alterar o equilíbrio de forças no terreno e dar aos rebeldes a força que eles, por si sós, não são capazes de conquistar. No enfrentamento com o Irão e na defesa de ditaduras não menos ferozes que as da Síria (a Arábia Saudita ou o Qatar, por exemplo), pouco importa ao Ocidente que os seus títeres locais não sejam recomendáveis, contanto que sejam títeres.
É de substituição de títeres que se trata, portanto. Como Somoza para Roosevelt, os rebeldes de Damasco são para Obama, Cameron, Hollande e seus amigos "sons of a bitch, but our sons of a bitch". O resto é apenas tática. A retórica do escândalo moral pelo uso de armas químicas e a encenação do repúdio por uma guerra de alta intensidade em favor de uma "ação punitiva pontual" são apenas rábulas estafadas para legitimar o que não tem legitimação. Rábulas, sim: Assad e as forças rebeldes já mataram muito mais gente com armas convencionais do que com este alegado uso de sarin e não me consta que tenha havido uma indignação mínima na Casa Branca, em Downing Street ou no Eliseu; e quanto ao emprego de força meramente pontual, é claro que uma ação limitada agora só criará pressão para muito mais ações e muito menos limitadas depois - ou não aprendemos nada com o Afeganistão, com o Kosovo, com a Líbia? O que é verdadeiramente escandaloso é que, tal como em Bagdad há dez anos, os fautores da guerra se escusem de provar quem foram os autores do gaseamento químico contra civis indefesos em Damasco. Alguém - por exemplo, os pressurosos deputados do PS que exigiram um imediato alinhamento português nesta guerra, mesmo sem a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas - pode garantir que serão os culpados do crime, e não os seus inimigos, que verão as suas posições bombardeadas pelos mísseis carregados de intenções humanitárias?
Tivesse a realização da conferência de paz para a Síria proposta por Estados Unidos e Moscovo em maio obtido um décimo do fervor e do empenhamento que agora animam os arautos da solução guerreira e ter-se-iam poupado milhares de vidas. Algo que uma guerra - por mais curta no tempo e mais contida no espaço que consiga ser - jamais poupará.
Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias”, em 30 de agosto de 2013
Comments
Caro José Manuel, Obrigada
Caro José Manuel,
Obrigada pelo seu elucidativo e claro escrito.
Deixo-lhe abaixo, a declaração de Médicos Sem Fronteiras relativa à utilização política da denuncia realizada por esta organização.
Obrigada
ana
Syria: MSF statements should not be used to justify military actions
Response to the US administration and other governments referring to MSF Statement of August 24
28 August 2013
28 August 2013 - Over the last two days, the US Administration and other governmental authorities have referred to reports from several agencies, including Médecins Sans Frontières (MSF), while stating that the use of chemical weapons in Syria was “undeniable” and to designate the perpetrators. MSF today warned that its medical information could not be used as evidence to certify the precise origin of the exposure to a neurotoxic agent nor to attribute responsibility.
Last Saturday, MSF said that three hospitals it supports in Syria’s Damascus governorate had reportedly received 3,600 patients displaying neurotoxic symptoms, of which 355 died. Although our information indicates mass exposure to a neurotoxic agent, MSF clearly stated that scientific confirmation of the toxic agent was required and therefore an independent investigation was needed to shed light on what would constitute, if confirmed, a massive and unacceptable violation of international humanitarian law. MSF also stated that in its role as a medical humanitarian organisation, it was not in a position to determine responsibility for the event.
Now that an investigation is underway by UN inspectors, MSF rejects that our statement be used as a substitute for the investigation or as a justification for military action. As an independent medical humanitarian organisation, MSF's sole purpose is to save lives, alleviate the suffering of populations torn by Syrian conflict, and bear witness when confronted with a critical event, in strict compliance with the principles of neutrality and impartiality.
The latest massive influx of patients displaying neurotoxic symptoms in Damascus governorate comes on top of an already catastrophic humanitarian situation facing the Syrian people, one characterised by extreme violence, displacement, the destruction of medical facilities, and severely limited or blocked humanitarian action.
http://www.msf.org/article/syria-msf-statements-should-not-be-used-justi...
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