You are here

Brasil: o preço da gota d'água

Vinte centavos de aumento fizeram transbordar “um pote até aqui de mágoa”, como diz a canção.

Pergunta a circular no Brasil: qual o preço da gota d'água? Resposta: 20 centavos. A gota d'água é aquela que faz transbordar o copo, como na canção de Chico Buarque. Os 20 centavos são o aumento das passagens dos transportes de S. Paulo que despoletaram as maiores manifestações de rua no país desde que, em 1992, um grande movimento liderado pela juventude provocou a queda do presidente Fernando Collor.

Quem, como os portugueses, está longe do país irmão e inveja o pleno emprego que existe atualmente no Brasil, o crescimento do seu PIB e do mercado interno, quem vê Portugal invadido por turistas brasileiros de classe média com enorme poder de compra e a achar que aqui é tudo barato, não percebe nada. Mas então o Brasil não está melhor que nunca? A presidente Dilma não tem o maior apoio de sempre? O Brasil não é agora um país rico? De que se queixam, então? De 20 centavos?

Não, não é de 20 centavos (apenas), tal como os turcos não se queixam (só) da destruição do Parque Gezi de Istambul.

Os manifestantes queixam-se, em primeiro lugar, do preço exorbitante dos transportes públicos, num país onde praticamente não há passes sociais e muitos milhares de trabalhadores andam horas a pé diariamente para poupar o preço da passagem ou dormem na rua, durante a semana, porque não têm dinheiro para ir dormir a casa. E, já agora, sofrem com a péssima qualidade de um serviço que é quase totalmente prestado por concessionários privados que tiram dele enormes lucros.

Mas as queixas não vão apenas para os transportes.

O país que vai sediar o Mundial de futebol e as Olimpíadas e está a gastar rios de dinheiro com estádios é o mesmo que está em 88º lugar no ranking mundial da educação, entre 126 países, ficando atrás de Honduras, Equador e Bolívia. O mesmo país em que o salário dos professores é uma vergonha, e quando estes se mobilizam são tratados com repressão. O mesmo país em que o serviço público de saúde é só para os mais pobres dos pobres, e toda a classe média, mesmo a baixa, tem um plano de saúde privado, se quer sobreviver.

Por isso a palavra de ordem "da Copa eu abro mão, quero dinheiro para saúde e educação!", tão gritada nas manifestações do “país do futebol” é realmente popular e sentida.

E finalmente, queixam-se da falência do sistema político. Sempre que há eleições no Brasil parece que a grande disputa é entre a direita (PSDB) e a esquerda (PT e aliados). Deixando de lado o facto de que entre os aliados do PT estão partidos que fariam corar de vergonha o CDS português, de tão conservadores que são, o sistema político realmente existente surge quando eventos como o dos protestos de S. Paulo ocorrem. O governador de S. Paulo é do PSDB; o prefeito (presidente da câmara) da capital é do PT. Mas ambos defenderam o aumento dos preços dos transportes, ambos defenderam a repressão, ambos acusaram os manifestantes de baderneiros (desordeiros) e vândalos, ambos disseram que não negociavam com violência. Só que a violência era a da polícia, não dos manifestantes.

Também se queixam do tratamento dado pelos média aos movimentos sociais, como o que organiza os protestos contra o aumento dos preços dos transportes. A Folha de S. Paulo, o principal jornal do estado, só parou de insultar os manifestantes e de responsabilizá-los de toda a violência quando no dia 13 de junho teve quase uma dezena de repórteres feridos pelas cargas policiais. A história é antiga e repete-se ciclicamente. Quando, em 1984, a ditadura caiu pela força das mobilizações das “Diretas Já”, a rede Globo, no início, ignorava concentrações de centenas de milhares de pessoas. Era como se não existissem. Daí nasceu o slogan “O povo não é bobo, fora a rede Globo!”, que mais uma vez foi gritado em S. Paulo esta segunda-feira, quando a equipa da reportagem da Globo foi expulsa da manifestação.

Tudo isto foi enchendo o copo. Transbordou com uma gota d'água de 20 centavos.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista do Esquerda.net
Comentários (13)