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Adeus até ao meu regresso (sobre a Guerra Colonial)

A guerra colonial, e a consequente derrota militar óbvia e iminente, esteve envolvida, durante o tempo que durou, num nevoeiro de propaganda ideológica que ainda hoje perdura passados 39 anos do seu fim. Artigo de Mário Tomé

No passado dia 9 de Maio passou, no Canal 1 da RTP, o último episódio da série «Guerra», de Joaquim Furtado. Trata-se de um trabalho de invulgar envergadura e seriedade, talvez sem rival a nível mundial. Quem o acompanhou pode gabar-se de ter ficado na posse de um conhecimento histórico muito aprofundado sobre essa guerra já fora de tempo e que levou o regime à exaustão mas exigiu o seu derrube para lhe pôr fim. Exigiu ainda que para tal fosse necessário desagregar a hierarquia das Forças Armadas, tarefa de que se encarregaram os capitães.

Como puderam constatar os que acompanharam a obra de Joaquim Furtado, ainda há gente responsável que considera que Portugal tinha condições políticas, anímicas, humanas e materiais para continuar. Tais pessoas não serão certamente dissuadidas pelo gigantesco acervo de documentos, depoimentos, testemunhos, factos irrefutáveis e irrefutados postos à nossa disposição.

A guerra colonial, e a consequente derrota militar óbvia e iminente, esteve envolvida, durante o tempo que durou, num nevoeiro de propaganda ideológica que ainda hoje perdura passados 39 anos do seu fim.

Se não podemos olhar para os treze anos que durou a guerra colonial exclusivamente na perspectiva do sofrimento, do drama e da tragédia colectivos e individuais, também não podemos olhá-los apenas com “agridoce nostalgia” como alguns pretendem se bem que, por termos nessa altura 20 anos, esse sentimento pareça quase natural a muitos dos que por lá passaram.

Não, de certo, nos familiares dos mais de oito milhares de mortos, nas muitas dezenas de milhares de deficientados física e psicologicamente e nas suas famílias.

Os que foram e regressaram sãos e salvos terão, naturalmente, diferente pano de fundo para as suas recordações. Nas centenas de almoços de confraternização que cobrem o país, juntando os ex-mobilizados, muitos deles levando as mulheres, os filhos e, até, os netos, impera um espírito de reencontro de quem passou por vicissitudes várias, muitas delas dolorosas, cultivando o companheirismo e a solidariedade que aprenderam e exercitaram no combate ou apenas na tristeza da distância dos seus e da terra. A Pátria.

Os seus 20 anos não podem ser deitados fora. É assim.

Em boa verdade, as FA’s [forças armadas] que avançam para a guerra colonial, embaladas pela mobilização indignadamente patriótica contra os massacres da UPA – que tiveram uma boa fonte de inspiração nos massacres da Baixa do Cassange em que as tropas portuguesas chacinaram centenas- há quem aponte para milhares de populares - vão feridas no seu moral e no seu prestígio: depois de Delgado, a derrota do “revolucionarismo militar” assegura a sua fidelidade, sem sobressaltos, ao regime. Na Índia, uma missão impossível humilha-as e domestica-as. Salazar e Caetano desprestigiam-nas chamando “missões de polícia” aos seus combates para mais tarde lhes atribuírem toda a responsabilidade pela degradação da situação militar nas colónias. A tudo isto a heróica hierarquia militar se submete, se verga. O acesso ao generalato passa pela prova da espinha dobrada.

Dois anos depois do “Para Angola, em força” esmorece a vocação militar na juventude portuguesa que já começara a ser afectada pelas movimentações e greves académicas de 1962.

A Academia Militar em finais dos anos cinquenta abrira as suas portas a jovens de camadas sociais mais baixas do que as do seu tradicional recrutamento enquanto Escola do Exército. Passa a esforça-se por reconhecimento académico e até constitui um grupo de jograis que arrisca representações em algumas faculdades, com poemas híbridos ou, até mesmo, de inspiração democrática, não conflitual. Ao mesmo tempo propagandeava-se entre os cadetes a ideia de que as reivindicações proclamadas nas lutas universitárias seriam obscenas e libertinas, resumindo-se - horror dos horrores - a quererem casas de banho comuns para rapazes e raparigas: era preciso travar no seio dos académicos militares qualquer simpatia pelas movimentações democráticas, através do machismo e do fascismo, na sua componente básica de pôr ordem nos sexos.

Por volta de 1964 os efectivos do QP [quadro permanente] começam a entrar em crise. O número de concorrentes à carreira das armas decresce alarmantemente. Oficiais subalternos são chamados a meio da sua primeira comissão para virem integrar os quadros de instrutores na metrópole. Passam a ter funções acima das correspondentes ao seu posto. Majores pedem passagem à reserva, aspirantes de engenharia desertam para a Suécia.

Quando a guerra começou havia no regime já quem entendesse a necessidade de responder ao apelo de Amílcar Cabral. Mas o falhanço do golpe dos generais encabeçados por Botelho Moniz a 13 de Abril de 1961, impede qualquer veleidade de sair da rota da tragédia.

O mito do império resiste sempre até à catástrofe, cego às realidades. Até resistiu ao 25 de Abril e à democracia. Ele anda por aí, como um avejão, sem ilusões mas com objectivos claros: cortar as raízes mais profundamente democráticas ao 25 de Abril, tentar reduzi-lo a um acto pragmático e tirar-lhe a carga revolucionária e o papel inspirador para o futuro.

Com o seu império colonial já nas vascas da agonia, os franceses produziram um ideólogo travestido de romancista, aliás um excelente ficcionista, capaz de sustentar, de forma habilidosa, a decadência da sociedade colonial - já retratada nos seus aspectos mais sórdidos e de forma soberba na “Viagem ao fim da noite” de Céline – e o canto do cisne da invencibilidade das tropas de elite francesas, páras e legionários, propondo elegantemente uma mitologia que vai alimentar leitores ávidos de razões para se baterem.

Revêem-se nela jovens oficiais portugueses, acabados de sair da Academia Militar já com alguma reserva quanto a um regime que – humilhação das humilhações – os mandava para a guerra chamando-lhes polícias, e desconfiados dos generais que aceitavam docilmente o desprestígio daí decorrente. As condições em que se processou a derrota na Índia, pesem os indefectíveis do regime, haviam cavado o descrédito de Salazar em muitos, senão na maioria, dos oficiais do quadro.

Jean Lartéguy, o ficcionista referido, ajuda a preencher o vazio ideológico que serviu de pano de fundo à guerra colonial. Não porque o regime não empreendesse preenchê-lo, mas porque, mesmo num país sitiado por dentro, os ventos da história faziam mexer algumas folhas. E os estudantes haviam desinquietado a paz podre, recuperada depois do vendaval de 1958.

Nos livros de Lartégui “Os centuriões”, “Os pretorianos”, os jovens oficiais encontravam aquilo de que precisavam para o combate que entusiasticamente queriam travar, nas condições em que o iam travar, conscientemente ou não: a hipocrisia e pusilanimidade dos políticos que governavam o país e o comprometimento dos generais com esses políticos só permitiam uma saída digna: o combate pelo combate, a acção pela acção, o culto pela eficácia elevado a paradigma ético, a cumplicidade moral com o inimigo - à sua altura, ao contrário dos seus próprios políticos e generais, - não naquilo que os fazia enfrentar-se, “as desprezíveis razões políticas” (e aqui eram desvalorizados também os ideais políticos da libertação e da revolução), mas o risco comum, a comum familiaridade com a morte.

Encontravam-se num patamar superior e esteticamente apaixonante, o desprendido envolvimento aristocrático na guerra, que fazia com que todo o seu desprezo fosse dirigido para os burocratas militares, o Estado Maior e os habitantes da Zona de Ar Condicionado, a ZAC.

Isto caía como sopa no mel para o plebeísmo óbvio da grande maioria deles, profunda e contraditoriamente marcados na sua própria entrada na Academia Militar: aquilo que lhes permitia alcançar o prestigiante (apesar de tudo) estatuto de oficiais das Forças Armadas era, ao mesmo tempo, o anátema da sua inferior condição social: em meados dos anos cinquenta, a entrada para a Academia (até aí Escola do Exército) deixara de acarretar quaisquer encargos e os cadetes passaram mesmo a ter direito a um vencimento.

Os Bigeard, Langlais, Trinquier, derrotados em Dien-Bien-Phu, redimiam-se na barbaridade dos combates travados contra os “fellah” argelinos, com a tortura brutal dos guerrilheiros e militantes da FNLA (o pungente caso de Djamila Boupacha, superiormente relatado por Simone Bouvoir, permanece como referência da selvajaria colonial) e o massacre das populações, em nome da eficácia, transformada em ética superadora da prosaica condição humana. Ganharam o perfil do lobo, com os seus “quicos” quase aberrantes e certamente fora de qualquer padrão militar tradicional, no contra-luz das linhas de altura da Kabilia, que delimitavam os uedes onde se abrigavam os guerrilheiros da FNLA. Esses quicos foram então adoptados pelas tropas portuguesas. O mimetismo era quase completo.

“Os meus homens morrem barbeados de fresco” dizia Bigeard, citado por Julles Roy em “A Batalha de Dien-Bien-Phu”. O espírito de corpo, a fraternidade forjada no combate, que justifica todas as audácias e sustenta todos os heroísmos, ou o heroísmo de todos, encontra a alma gémea no inimigo, numa osmose sublime, num pacto de sangue e morte, fora de todo o efémero e precariedade do social, do político e mesmo do humano.

Eles seriam os únicos com direito a reivindicar a justeza moral do combate, não em nome da Pátria que os tinha traído (atente-se!) mas do próprio combate.

Esta a mística que animou, na primeiríssima fase da guerra, a elite dos futuros derrotados do exército colonial português.

O exército colonial português partia, portanto, já vencido, mesmo que os seus quadros não o quisessem ou pudessem saber. O regime foi o responsável pela humilhação na Índia e seria o responsável pela pesadíssima humilhação em África, se não entrassem em jogo outros factores. Sociais e políticos. Foi o factor político, tão soberana e estúpida quanto cinicamente desprezado pelos militares tradicionais, que os salvou.

A elite militar arrancou cheia de ganas de combate e, claro, de prestígio, medalhas e carreira. Muito legitimamente, aliás: nada melhor para desanuviar os quadros, romper os entraves à promoção, do que uma guerra. Foi para ela que se prepararam. Ela aí estava.

Mas a guerra faz-se com o povo e não apenas com a hierarquia, com os quadros ou a com elite militar. A ordem de batalha exige, para além das tropas de linha as tropas especiais: os comandos de “mama suma” que nasceram com esta guerra e com ela morreram na prática, embora em tempo de ingerência humanitária haja quem os queira ressuscitar; os paraquedistas, a quem os saltos e a queda livre davam outra leveza de comportamento.

Ao povo, cedo lhe passa a sanha de vingança contra as atrocidades da UPA. Os mobilizados começam a chegar em caixas de pinho, prontos para cadeiras de rodas, ou feitos homens cestos; os mancebos tornam-se refractários e desertores. Bem podem chamar-lhes cobardes: já ninguém acredita nisso nem mesmo aqueles próprios que lho chamam. O orçamento começa a estar hipotecado às despesas da guerra.

Com a eternização da guerra e a dureza das comissões, os estudantes e alguns militares despertam rapidamente para a literatura política e ideológica. Os ideais da revolução francesa (também eles subversivos para o regime) passam a ser considerados obsoletos: em seu nome a Europa escravizou, colonizou, oprimiu. A revolução russa, de 1917, forneceu a teoria e a prática da libertação social e nacional. A derrota do fascismo italiano e do nazismo germânico, e o avassalador movimento dos povos que se lhe seguiu, pondo em causa o domínio colonial das burguesias democráticas, criaram as condições para desmoralizar os povos dos países colonizadores que objectivamente se tornam aliados dos povos colonizados. Isso aconteceu até com alguns colonos.

O “Maio de 68” em França vem dar outro ânimo às forças democráticas e ao movimento anti-colonial português que passou a ser o catalizador de toda a contestação ao regime. As lutas estudantis do início dos anos 70, marcam a ideologização do movimento anti-colonialista.

O fim do colonialismo entrara já na ordem jurídica da ONU. O colonialismo passou a ser considerado um crime contra os povos colonizados e a guerra colonial é também um crime contra o povo português, porque imposta por um regime sem qualquer legitimação democrática.

Estranho é que, quando o povo português se apossou do próprio 25 de Abril ratificando de forma gritante a condenação do regime e da guerra, esta continue a ser abordada, do ponto de vista institucional e, portanto, nas escolas e na narrativa oficial da instituições democráticas, através do relato tutelado pelas Forças Armadas carecido do enquadramento político necessário à compreensão da guerra colonial. E isto apesar de não faltarem obras sérias e exaustivas, desde a referida série televisiva de Joaquim Furtado, à obra extensa e cientificamente sem mácula de Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso até à abordagem mais sintética mas nem por isso menos rigorosa da Academia Portuguesa de História.

O patrioteirismo propagandeado pelos generais, pela União Nacional, pelo Movimento Nacional Feminino e, mais tarde, pela ANP – e que ainda parece inspirar alguns sectores militares - era ridicularizado pelos milicianos e por muitos quadros permanentes.

Não admira portanto que a instrução dos mobilizados passasse em muitos casos a torpedear as orientações dos superiores e se estabelecesse tacitamente o real objectivo da instrução: dar a preparação necessária para que todos regressem, ou seja, salvar a pele.

Chega-se mesmo a integrar, em certos momentos da instrução, elementos estéticos e simbólicos que têm mais a ver com a libertação do que com a ocupação das colónias. O processo de divórcio inicia-se, o regime começa a mostrar-se impotente para ir além da exigência formal do esforço de guerra.

“Adeus até ao meu regresso” torna-se, ironicamente, a única frase patriótica que as bocas de 1 milhão de mobilizados, em treze anos de guerra, proferem. E, mais ironicamente ainda, ela é transmitida na acção de propaganda mais empenhada do regime: mostrar como os soldados estão bem e se recomendam.

Nasce a frustração em muitos colonos que exigem a guerra sem quartel, embora estejam pouco dispostos a entrar nela: é trabalho para os lapardões da metrópole.

Mas esses já não dão para as encomendas e chegam com o ânimo enfraquecido. É preciso africanizar a guerra. Os flechas, as milícias, os comandos africanos, os GE’s [grupos especiais] e GEP’s [grupos especiais para-quedistas], vão-se tornando instrumentos privilegiados do esforço de guerra. As baixas mais vultuosas – e que não estão contabilizadas no memorial recentemente inaugurado – começam a pertencer-lhes. Porque também começam a ser eles os mais e, depois, os únicos interessados na guerra: na realidade são mercenários, com um pagamento irrisório, é verdade, mas que lhes confere um estatuto que nunca tiveram: poder, encómios em vez de maus tratos e muito mais dinheiro do que alguma vez pensaram receber de um branco.

Entretanto a guerra que começara com a Mauser contra a catana passa para o dilagrama contra o RPG e o Strella. A superioridade material dos movimentos de libertação alia-se à superioridade anímica e começa a ser insustentável. A divisão dos movimentos, que tem êxito em Angola debilitando irremediavelmente a sua luta de libertação, não é bem sucedida nem na Guiné nem em Moçambique.

A acção psicológica – a tal “conquista das almas e dos corações” – perde em toda a linha no confronto com a ideologia da libertação e com a subversão por dentro das forças armadas colonialistas, levada a cabo pelos milicianos e pelo desgaste dos quadros permanentes que se tornam altamente permeáveis.

Os aldeamentos, menina dos olhos da APSIC e da propagandeada política de progresso, por mais entusiasmo que tenham despertado em muitos militares que se sentiam a dar humanidade à guerra, não passam, em rigor, de campos de concentração de populações deportadas, roubadas às suas terras, afastadas dos seus totems ou dos seus antepassados, separadas dos seus familiares, pais sem filhos, filhos sem pais, alguns deles caídos varados pelas balas ou estilhaçados por granadas em muitas acções de... “recuperação de populações”, que arrasam culturas e incendeiam as habitações. Na verdade para que queriam umas e outras se iam ser acolhidos à sombra amiga da bandeira verde rubra, em aldeamentos chapeados a zinco e cercados de arame farpado, para evitar que o inimigo molestasse as populações aldeadas?

As povoações em autodefesa que tanto orgulham os comandos militares ou eram controladas por milícias (mercenários) armados ou, por razões históricas, tribais ou étnicas estavam dispostas a combater com os portugueses, como aconteceu na Guiné, com algumas aldeias fulas ou mandingas. De qualquer maneira estavam ao abrigo das bombas de napalm lançadas pelos T-6 e das incursões piedosas das tropas especiais, brancas ou pretas.

Acreditar no portuguesismo de qualquer delas é ridículo que mata, é desconhecer o que os povos estão dispostos a suportar para sobreviver. É como não entender as povoações timorenses com bandeiras indonésias festivamente hasteadas, em véspera de votarem maciçamente pela independência.

É pensar que as tropas portuguesas na guerra colonial foram qualitativamente muito diferentes das indonésias em Timor; é esquecer que o massacre de Wiriamu,um entre muitos, teve requintes de barbaridade e perversidade dificilmente igualáveis, é esquecer a brutalidade criminosa dos grandes fazendeiros, que felizmente a pena de Lobo Antunes nos veio lembrar, nessa obra fundamental que é: “ O esplendor de Portugal”.

É esquecer que as Forças Armadas não tinham, não podiam ter, serviço de informações no terreno e que essa função era preenchida pela PIDE: com a tortura como regra para obtenção de informações e as execuções expeditas como método de aterrorização e de fazer desaparecer testemunhas ou quadros políticos e militares. Tal acontecia com o conhecimento dos comandos militares, dos capitães militares, dos subalternos militares, dos soldados militares. É esquecer os casos em que os próprios militares, mais azougados ou ambiciosos, eles próprios obtinham as suas informações à custa de tortura; e atiravam indiscriminadamente contra populações, ou por medo, ou porque no meio delas poderia estar o inimigo, ou porque os mortos da população também contavam para o relatório e, portanto, para a qualificação operacional; e, se não para a medalha, para a rotação da unidade para zona de menos risco. É, sobretudo, esquecer, que tudo isto foi feito por jovens saídos da fábrica, do cultivo da leira, da monda no latifúndio, da arte de xávega, ou da pesca do bacalhau, da escola técnica, da universidade. Que queriam paz, que queriam trabalhar, que diziam com cara inexpressiva: “adeus até ao meu regresso”.

Aquando da inauguração do memorial aos mortos na guerra em 1994 o PR exaltou os que morreram “ao serviço do país”. Quando o 25 de Abril devia ter revelado, mesmo aos mais distraídos, que tal memorial se devia às vítimas da guerra colonial.

Para não melindrar o tradicionalismo e a persistente mitologia colonialista, ignora-se o rigor histórico e permite-se chocar a memória dos que combateram, ligando-os ao regime fascista que os oprimia e admitindo que este defendia os interesses do país.

O facto de se ter atribuído falsamente às Forças Armadas portuguesas a libertação do país – quando para ela foi necessário um movimento no seu interior que desmontasse e neutralizasse a hierarquia - dificultou a lucidez da análise, a clareza da interpretação política e militar desse período histórico. Da névoa que a muitos ainda parece servir, se alimentam os branqueamentos do regime fascista, a beatificação do papel dos portugueses em África, a desculpabilização e glorificação das FA’s durante a guerra colonial, a incompreensão do próprio fenómeno da guerra e do comportamento dos militares, por um lado; por outro lado desguarnece o flanco do próprio 25 de Abril, enquanto acto libertador objectivamente necessário e sem alternativa, e dá o conveniente descrédito à chamada descolonização.

O rigor da historiografia portuguesa não deixa dúvidas quanto ao carácter do regime colonial.

Já quanto à questão militar e da guerra, mais a cargo da hierarquia militar, o rigor vê-se submerso pelo preconceito e pela defesa da honra do convento.

Uma caracterização frontal e despida de rodeios quanto à guerra colonial e ao papel das Forças Armadas é, ainda hoje, apodada de proselitismo político e ideológico, pelo menos.

O elemento chave, sempre na minha opinião, para nos libertarmos da mitologia que é hoje sustento simbólico dessa corrente em suave ascensão, vamos encontrá-lo na análise crítica que é, aliás, inimiga absoluta e radical do irracionalismo fascista.

E onde nos leva a interpretação crítica, historicamente sustentada?

Em resumo - e naquilo que importa neste âmbito - ao seguinte:

-O comportamento das Forças Armadas coloniais não respeitou a dignidade dos povos colonizados nem podia respeitar: eram forças de ocupação, opressão e repressão;

- a esmagadora maioria dos portugueses que integraram as tropas mobilizadas foram a isso obrigados por um regime ilegítimo: nessa medida foram vítimas desse regime, independentemente da forma como estiveram e se comportaram na guerra;

- o 25 de Abril foi desencadeado pela derrota militar do regime - já historicamente condenado e internacionalmente isolado - e do seu aparelho militar na guerra colonial;

- o 25 de Abril não foi feito pelas Forças Armadas;

- as FA’s, enquanto instituição, foram o pilar fundamental do fascismo e o seu instrumento na guerra colonial; por isso elas próprias passaram, com o 25 de Abril, por um processo de desagregação.

E é por aí que passa o movimento dos capitães.

Artigo de Mário Tomé, elaborado a partir da comunicação ao “I Congresso Internacional sobre a guerra colonial”, Lisboa, 13,14 e 15 de Abril, 2000

Sobre o/a autor(a)

Coronel na reforma. Militar de Abril. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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