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Israel já ganhou a guerra civil síria

O seu principal inimigo militar deixou de existir, o contexto em que os palestinianos desenvolvem a sua luta de libertação fica mais desfavorável; e a solução do problema da ocupação israelita dos Montes Golã será relegada ainda mais para as calendas.
Tanque capturado pelo Exército Livre da Síria. Foto Freedomhouse

A guerra civil na Síria está longe do fim, consta até que no conclave do grupo de Bilderberg se estuda a forma de a prolongar fornecendo mais armas aos grupos que combatem o governo de Damasco, mas Israel já ganhou o conflito. Pode não ter ainda atingido todos os objetivos; no entanto, o principal foi garantido: o seu principal inimigo militar deixou de existir. Há ainda o Irão, claro, mas esse não está na fronteira e ficará enfraquecido com a perda do aliado em Damasco.

Estes elementos são factuais, digamos que estão contaminados até por uma leitura “tecnocrática” e militarizada da situação regional. Em princípio, seguindo a linha dos interesses libertadores e humanitários, a queda do regime da família Assad na Síria, ou a sua substituição por qualquer outra coisa, é um passo positivo. Israel tira as suas vantagens, é certo, mas o mundo vê-se livre de um tirano como Saddam Hussein, Ben Ali ou Muammar Khadaffi.

Será tudo assim tão linear, tão lógico?

Não é. A vitória de Israel no conflito sírio significa, no imediato, que o contexto em que os palestinianos desenvolvem a sua luta de libertação fica mais desfavorável; e que a solução do problema da ocupação israelita dos Montes Golã será relegada ainda mais para as calendas. Em termos de direito internacional, situações que motivaram dezenas de resoluções das Nações Unidas ostensivamente desrespeitadas por Israel sairão deste conflito ainda mais enterradas do que já estavam.

Mas pode acontecer que do conflito saia um regime democrático na Síria, capaz de discutir com Israel numa base de legitimidade reforçada.

Em tese o argumento é válido. Mas será o leitor ainda tão ingénuo que acredite nele?

Olhemos então para a guerra civil síria. O que começou por parecer uma “primavera árabe” – conceito cujo balanço ainda está muito longe de poder ser feito – depressa degenerou. E as manifestações pacíficas, brutalmente reprimidas, foram tomadas em mãos por grupos e grupinhos armados, a maior parte deles nascidos na hora e ostracizando a oposição existente, cada um mais desorganizado e extremista do que o outro.

No momento em que o exército regular sírio deixou de ter como primeira preocupação o vizinho israelita e passou a ocupar-se da repressão, e depois do combate interno, começou a nascer a vitória de Israel.

No momento em que a NATO, os Estados Unidos e a União Europeia decidiram que não fariam a guerra no terreno, para não replicar os fracassos e imbróglios do Afeganistão, Iraque e Líbia – onde reina a ordem do caos – e passaram a tentar organizar as oposições armadas sob comandos e financiamentos únicos, o triunfo de Israel começou a cimentar-se.

A chamada oposição síria, a começar pelo chamado Exército Sírio da Liberdade, comandado a partir da base da NATO de Inçirklirk, na Turquia, continua a ser uma manta de retalhos que disputa os próprios poderes internos enquanto procura dar luta ao exército governamental. Nesse tecido caíram as mais proscritas nódoas que vivem habitualmente sob a mira cerrada do aparelho de propaganda ocidental: uma constelação de grupos radicais islâmicos, assentes em mercenários com os salários pagos pela Arábia Saudita e o Qatar, com o armamento financiado por “grupos de amigos” que pululam nas conferências promovidas primeiro por Hillary Clinton e agora por John Kerry, e treinados, equipados e infiltrados pela NATO, CIA e afins a partir da Turquia. Essa mesma Turquia onde os direitos humanos são tratados como estamos a ver nestes dias.

Nessa constelação de extremistas islâmicos não falta, como não faltou nos Balcãs e na Líbia, por exemplo, a Al-Qaida, em si mesma ou com pseudónimo. Na Síria chama-se Al Nusra, recebe o mesmo apoio ocidental de todos os outros grupos, o que nos conduz a cenários de uma notável coerência: os governos de Hollande e Cameron armam agora diretamente (já o faziam através de interpostos parceiros) grupos radicais islâmicos que são “irmãos de armas” e “de sangue” dos terroristas que a França combate no Mali, com apoio britânico e norte-americano.

É pois de um cenário destes que um dia, certamente ainda distante, sairá o “arranjo democrático” que a NATO e a União Europeia legitimarão em Damasco. Depois de (e se) convencerem a Rússia de Putin a deixar cair o regime sabendo que depois terá de haver-se nas suas vizinhanças, mais tarde ou mais cedo, com a cruzada de destruição do aparelho nuclear iraniano – que o grupo de Bilderberg pretende concluir em três anos.

Digamos até que um cenário destes, tão pacífico e funcional como os do Afeganistão, da Líbia ou do Iraque, não será ainda o pior possível. Porque no horizonte está o desmantelamento da própria Síria, em emirados e pequenas entidades de quaisquer outras espécies de índole religiosa e/ou sectária. O cenário antevisto pelos Estados Unidos para o Iraque durante a primeira metade da ocupação é válido para a Síria e representará a vitória completa de Israel. Deixará então de ter um vizinho poderoso, substituído por uma miríade de “libanozinhos” nas imediações, por certo menos incomodativos que o Líbano propriamente dito provavelmente porque não terão Hezbollahs (a minoria xiita estará subjugada), apreciarão receber gorjetas e andarão entretidos a guerrear-se entre si por uma improvável supremacia.

A Síria fragmentada seria a vitória ideal para Israel. Que conhecendo as insuficiências dos grupos que combatem no terreno, de tempos a tempos realiza operações militares para desgastar o exército governamental – sem que o mundo se incomode com as agressões militares de um Estado soberano contra um vizinho.

Antes que essa vitória chegue, ou mesmo que não se concretize na forma desejada pelos falcões israelitas, cada vez mais enraizados no poder, há um triunfo que Israel pode desde já festejar: o cenário de uma Síria militarmente poderosa na sua vizinhança acabou. É uma preocupação a menos para a única potência nuclear do Médio Oriente.

Custa centenas de milhar de vida humanas. Que importa? Ninguém vai ter que assumir responsabilidades por isso...

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