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Autoritarismo, uma fratura profunda na sociedade brasileira

Em tempos de Copa das Confederações, nenhuma “desordem” é permitida. No país que levou um metalúrgico à presidência e tem como atual líder uma ex-guerrilheira, combatente nos tempos de ditadura militar, quem se manifesta é preso por formação de quadrilha e calado à força pela Tropa de Choque. Por Xenya Bucchioni e Tulio Bucchioni
Repressão na abertura da Copa das Confederações, em Brasília. Foto Leonardo Prado, Brasil de Fato

A Presidenta Dilma Rousseff até tentou, mas o discurso preparado para a abertura oficial da Copa das Confederações não aconteceu. Com a voz abafada pelas vaias da multidão presente no Estádio Nacional de Brasília (Mané Garrincha), no último sábado, ela limitou-se a poucas palavras e deu por iniciada a competição entre Brasil e Japão. Do lado de fora do Estádio, a Polícia Militar e a Tropa de Choque seguiam em plena atividade: reprimindo com gás lacrimogéneo e bala de borracha os cerca de 2 mil manifestantes que protestavam contra os gastos públicos utilizados no evento. Orçado em 600 milhões de reais, o Estádio em questão custou 1.400 milhões – a diferença nos valores atesta alguns dos motivos para os ânimos da população estarem acirrados com a entrada do país na rota dos grandes eventos desportivos. Mas há outras razões. E os conflitos ocorridos, domingo, na cidade cartão postal do Brasil – o Rio de Janeiro – revelam um pouco mais dessa história mal contada.

Segundo o dossiê “Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Rio de Janeiro”, elaborado pelo ComitéPopular Rio da Copa e da Olimpíada, só na capital carioca cerca de 11 mil pessoas podem ser removidas por conta de intervenções urbanas ligadas à Copa das Confederações e à Copa do Mundo e às Olimpíadas de 2016. Mas no país do futebol, não há tempo para discussão – muito menos para manifestação. Gritos como "da Copa eu abro mão, quero dinheiro para saúde e educação!" não podem ser tolerados no Brasil-promessa-mundial. Novamente, o que se viu durante os protestos àfrente do Estádio do Maracanã foi a democracia brasileira sendo feita com base na truculência da polícia militar. Em ambos os casos, a violência contra os manifestantes, somada às imagens do confronto ocorrido em São Paulo, no último dia 13 de junho, expõe uma fratura profunda persistente na sociedade brasileira: o autoritarismo – legado dos vinte e um anos de ditadura civil militar sob o qual o país viveu.

Caça aos manifestantes

Avaliar somente as armas utilizadas para conter os protestos é pouco perto da atuação com resquícios ditatoriais da polícia. Há relatos de caça aos manifestantes que já se encontravam em suas casas após a manifestação ocorrida em Brasília. Em nota pública, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) pontua que: “Numa reação vergonhosa com o intuito de reprimir as manifestações e criminalizar o Movimento, o GDF (Governo do Distrito Federal) iniciou, no fim da tarde, uma verdadeira caça às bruxas (expediente da Ditadura Militar!), prendendo nada menos que cinco companheiros, entre eles duas militantes da coordenação do MTST que estavam com uma criança de 4 anos! Além disso, outros vários militantes e aliados do Movimento foram perseguidos pelas polícias militar e federal durante a noite”. Desta vez, o partido da Presidenta Dilma Rousseff, o Partido dos Trabalhadores, sob a figura do governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, não pode deixar a conta da repressão nas mãos de sua base aliada, como no Rio de Janeiro, nem esconder-se sob a sombra da oposição, como em São Paulo.

De São Paulo, o desabafoda jornalista Maria Cecília Fazzini Cardial, que varreu o Facebook na última semana, dá conta da arbitrariedade injustificada contra a população brasileira: seu filho Henrique Cardial Camargo, de 21 anos, foi preso por formação de quadrilha (crime inafiançável) junto com outros nove jovens – todos fichados no Presídio de Segurança Tremembé II, conhecido por receber os chamados presos especiais, que cometeram crimes como violação, pedofilia ou correm risco de vida noutra penitenciária, ou, ainda, se envolveram em crimes de grande repercussão nosmédia.

Além das prisões irregulares e da falta de justa causa, os detidos também foram submetidos a outra série de ilegalidades: ausência de advogado; omissão de informação e de direito ao silêncio; e coação, ao irem sozinhos para salas prestar depoimentos. Um tratamento bastante diferente daquele recebido por alguns tipos ‘especiais’ de brasileiros. É o caso, por exemplo, do bicheiro1 Carlinhos Cachoeira, que em janeiro deste ano curtia a sua lua de mel num dos resorts mais luxuosos do país, depois de sair ileso de uma ampla investigação por tráfico de influência e ligações com o esquema de jogo ilegal. Acusado de envolvimento com autoridades políticas, como o governador do Estado de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), e o ex-senador Demóstenes Torres, Cachoeira também foi acusado de controlar o aparato repressivo do Estado – via o pagamento ao comandante da PM em Goiânia, ao comandante da Polícia Civil, ao delegado geral e ao corregedor da Polícia Civil.

Vinculação dos movimentos sociais ao terrorismo

Diante de uma justiça seletiva, de uma polícia repressora e um governo que faz vista grossa aos abusos de poder, talvez não cause surpresa a tentativa de vinculação entre os movimentos sociais e a nova lei que irá definir os crimes de terrorismo. A primeira tentativa de votação no Congresso aconteceu, ironicamente, na última quinta-feira – data da repressão mais violenta da polícia militar (PM) e da Tropa de Choque às manifestações contra o aumento da tarifa dos transportes públicos, em São Paulo.

Polémico, o artigo 2 do texto da nova lei define como terrorismo: “Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial ou étnico”. Sem um consenso entre o sub-relator do tema segurança pública, Miro Teixeira (PDT), que é contra parte do parecer do relator geral, Romero Jucá (PMDB), a votação foi adiada para o dia 27 de junho.

Enquanto a data não chega, a luta segue. Agora, engrossada pela perplexidade dos factos. Ao que parece, o enterro do fantasma da truculência que acompanha a história do Brasil está próximo de acontecer. E o primeiro passo parece consensual: a desmilitarização da Polícia Militar.

1“Bicheiro”, ou “banqueiro” do jogo do Bicho é o sujeito que organiza (e lucra) com o jogo, uma bolsa ilegal de apostas, em números que representam animais, muito popular no Brasil, apesar de a sua prática ser uma contravenção.

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