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Aborto é moeda eleitoral no 2º turno do Brasil

Na campanha para o segundo turno das eleições presidenciais, Dilma e Serra apresentam-se como paladinos de uma cruzada moralista contra a despenalização do aborto. Por Fabiana Frayssinet, da IPS
Dilma Rousseff durante visita ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida. Foto: Roberto Stuckert Filho.

Rio de Janeiro – O aborto converteu-se numa arma “tira votos”, da qual dois candidatos fogem na campanha para o segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, e que os sectores religiosos mais conservadores usam como troca para dar o seu apoio.

Esta é uma situação que não reflecte a posição maioritária do eleitorado sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, afirmam analistas e representantes do movimento feminino organizado, que criticam o uso do corpo das mulheres como moeda eleitoral e qualificam o assunto como falso dilema.

A legalização ou não do aborto – no Brasil punido com prisão de até dez anos, só permitido em caso de risco de morte para a mãe ou se a gravidez é produto de violação – protagoniza a agenda para a votação do dia 31, entre Dilma Rousseff, do governante Partido dos Trabalhadores (PT) e José Serra, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). As alegações de que Dilma é a favor da legalização do aborto são vistas como a principal causa para a candidata favorita não ter conseguido a vitória no primeiro turno. Uma enxurrada de votos migrou da candidata do PT para Marina Silva, que disputou o primeiro turno pelo Partido Verde (PV) e pertencente à Igreja Evangélica.

Marina, que condena o aborto e defende a realização de um plebiscito sobre a sua eventual legalização, surpreendeu no primeiro turno obtendo 20% dos votos, contra 47% de Dilma e 33% de Serra. Na campanha para o segundo turno, Dilma e Serra apresentam-se como paladinos de uma cruzada moralista contra a despenalização do aborto, sendo que, no passado, ambos expressaram uma posição de abertura ao direito de as mulheres decidirem.

Beatriz Galli, da organização não-governamental Ipas Brasil (filial de uma rede internacional que promove os direitos e a saúde sexual das mulheres), lamentou à IPS o facto de a discussão se ter reduzido “a estar contra ou a favor do aborto, ou contra ou a favor da vida”. Dilma tinha defendido antes que era preciso avançar para a despenalização do aborto, enquanto agora destaca no seu site que está “pessoalmente contra o aborto”. Com o apoio de uma foto do recente baptizado do seu primeiro neto, diz que “seria muito estranho que tendo uma manifestação de vida no seio da minha família eu defender uma posição a favor do aborto”.

Dilma assegura que o aborto induzido é “uma violação contra a mulher”, embora acrescente que em seu provável governo “o Estado brasileiro não considerará isso como uma questão de polícia, mas de saúde pública e social”. José Serra segue essa linha. Em 1998, como ministro da Saúde no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), contribuiu para regulamentar a prática do aborto dentro da saúde pública, nos casos de vítimas de violação, mas agora alerta que a sua legalização causaria “uma carnificina”.

Além disso, Serra apela para frases como “um homem que nunca se envolveu em escândalos e sempre foi coerente, condenou o aborto e defendeu a vida”, ou “um homem de família”, para contrapor sua imagem à de Dilma, divorciada e participante durante a juventude da luta clandestina contra a ditadura brasileira (1964-1985). Para Beatriz, está a ser produzido “um falso dilema, porque a questão principal é se o Estado deve criminalizar uma questão de saúde pública, colocando a saúde e a vida das mulheres em risco por obrigá-las a buscar um aborto clandestino”.

Estimativas conservadoras do Sistema Único de Saúde indicam que no Brasil são feitos anualmente pelo menos 1,5 milhão de abortos clandestinos. As complicações pela prática insegura ocasionam 250 mil internações em centros públicos de saúde a cada ano, e é uma das principais causas de mortalidade materna. Beatriz insiste que um assunto de direitos humanos das mulheres não deve ser reduzido a um enfoque religioso.

Um estudo da antropóloga Débora Diniz, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Género, revela que uma em cada cinco brasileiras submeteu-se a um aborto antes dos 40 anos. Das mulheres que abortaram, 88% declararam-se religiosas, diz o estudo. Um dado revelador neste país de 192 milhões de habitantes, com a maior quantidade de católicos do mundo e onde os fiéis evangélicos crescem em ritmo vertiginoso.

“A história dessas mulheres não pode ser ignorada pela busca desenfreada dos votos das comunidades religiosas que consideram o aborto um crime abominável”, afirma Débora num artigo. “O aborto transformou-se em moeda de troca para ganhar votos”, acrescentou, afirmando que as concessões políticas feitas pelos candidatos representam “ameaças democráticas”, porque comprometem o princípio do Estado laico.

Guacira César de Oliveira, directora-fundadora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), disse à IPS que existe uma análise tendenciosa “que exige dos candidatos um determinado posicionamento contra o aborto, como se fosse a única possibilidade de ganhar a eleição”. Guacira atribui-a a uma “ofensiva conservadora de direita junto ao fundamentalismo religioso”, que conseguiu colocar o aborto no centro da campanha, acima de outros temas que também teriam sido obstáculos para a vitória de Dilma no primeiro turno, como a corrupção.

Entre esses temas estão as denúncias de corrupção do governo Lula, do qual Dilma foi integrante desde o seu início em 2003 até Março último, primeiro ministra de Minas e Energia e depois chefe de gabinete. Guacira destacou que a “satanização eleitoral” do aborto não reflecte a opinião da maioria. Recordou que o maioritário eleitorado feminino deve recorrer ao risco de um aborto inseguro “para garantir sua opção de ter filhos quando quiser e puder. Os úteros das mulheres não podem ser moeda de troca nestas eleições”, ressaltou.

Carmem Silva, educadora do Instituto Feminista para a Democracia “SOS Corpo”, concorda que se trata de uma manipulação do “fundamentalismo religioso” que cresceu em todo o mundo, mas que no Brasil se teria associado “aos grandes meios de comunicação, aos políticos de direita e aos militares com saudades da ditadura militar”. Guacira e Carmem destacam que o aborto deixou fora dos debates temas da agenda das mulheres, como a participação política, cuidados com as vítimas de violência, e igualdade de oportunidades no trabalho. “Com tantas questões cruciais para a democracia e os direitos fundamentais, como educação, segurança pública ou a assistência social, o curioso é que se aposte em que o novo presidente do Brasil será escolhido pela sua posição sobre o aborto”, resumiu Débora.

15/10/2010

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