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Bater punho: criminalizar a vítima e desculpar o agressor

Para o embaixador do “bate punho”, Miguel Gonçalves, é um mito dizer-se que não há emprego. Numa entrevista recente, por altura de uma conferência sobre o fim do trabalho, Anselm Jappe expõe alguma da sua reflexão, sobre a qual vale a pena debruçarmo-nos:

Diz-nos o filósofo que a sociedade moderna é, por definição, uma sociedade de trabalho mas que o capitalismo deturpou o trabalho. Este deixou de ser uma atividade relacional e dialética com a natureza com fim direto de supressão de necessidades e passa a ser (a força de trabalho) uma mercadoria empregue com o fim de produção de outras mercadorias com valor de troca. Substitui-se o valor de uso pelo valor de troca na produção; substitui-se o trabalho concreto pelo trabalho abstrato, onde o trabalho não se mede pelo que se produziu para suprimir necessidades, mas sim pelo gasto de energia medido em tempo. Esta interpretação que o capitalismo faz do trabalho é responsável direta pelos problemas psicológicos e sociais que resultam do mesmo. Marx expôs a questão ao falar do trabalho alienado, da fetichização da mercadoria e da subjugação do trabalhador ao objeto.

Jappe reflete também sobre as transformações tecnológicas ocorridas no sistema de produção. O maior peso da máquina (aquilo a que Ricardo Antunes chama de 'trabalho morto') poderia supor um alívio das horas de trabalho impostas ao trabalhador ('trabalho vivo'), mas isso não acontece. Acontece, perniciosamente, o contrário. O empresário exige mais produção em menor tempo, o que tem levado ao aumento do desemprego, à generalização da precariedade, à fragilização de vínculos e aos trabalhos em part time.

Tem sido esta constatação: o maior peso do trabalho morto sobre o trabalho vivo e as suas consequências no aumento do desemprego e da precariedade que têm levado alguns teóricos, essencialmente pós-modernos, a advogar o fim do trabalho. Jappe abre também essa janela sobre a hipótese do fim do trabalho, hipótese da qual discordo. Mas o verdadeiramente interessante na entrevista de Anselm Jappe é que, apesar de abrir a hipótese pós-moderna do fim do trabalho, não acompanha o pós-modernismo noutros aspetos do seu discurso típico, em particular o que se relaciona com o empreendedorismo.

Criticando o dinamismo transformado em individualismo, diz-nos o entrevistado: “olhamos para nós próprios como empreendedores, como alguém que está sempre em busca de oportunidades. É preciso fazer desporto para estar em boa forma para trabalhar, ou frequentar meios em que se conheçam pessoas que possam ajudar-nos a ter outro trabalho interessante”. Interessante a forma como é exposto o empreendedorismo, que com estas palavras, reduz o trabalhador à mercadoria que tem que encontrar forma de se vender no mercado. É, novamente, o pior do trabalho sob um sistema capitalista: esquece-se a utilidade do trabalho e o valor de uso e reduz-se a pessoa à mercadoria e ao valor de troca. Pior, como o empreendedorismo é uma lógica decorrente do individualismo, há todo um discurso programado para culpar o desempregado e não o modo de produção que o deixou desempregado; há todo um discurso elaborado para culpar o trabalhador que recebe o salário de miséria e não o patrão que apropriando-se da mais valia, lhe leva um talhão do produto do seu trabalho.

É um discurso programado para culpar as vítimas e deixar impune o capitalismo; é um mantra que acompanha o sacrifício da vítima para apaziguar o deus 'mercado'.

Em Portugal também temos essa cassete. O governo tem-na repetido e agora nomeou um embaixador para ser o seu altifalante certificado. Sim, falamos de Miguel Gonçalves, promovido por Miguel Relvas e conhecido por culpar os desempregados pelo seu desemprego porque, imagine-se, alguns deles não querem ser mercadoria barata.

Numa entrevista recente, o embaixador do “bate punho”, mostra bem de que repertório é feita a cassete que faz da vítima o culpado, do desempregado o malandro. Diz-nos Miguel Gonçalves que é um mito dizer-se que não há emprego; que as empresas não são exploradoras do trabalhador, como se diz por aí; que é preciso saber vender-se no mercado, se for preciso, vender-se a preço de saldo ou sem preço nenhum, porque o que interessa mesmo é aproveitar a oportunidade de entrar no mercado. E claro, os clássicos do repertório: há muitos direitos em Portugal e as pessoas acomodam-se e os desempregados não querem ou não sabem trabalhar.

Tudo espremido, fica a mensagem para o empreendedor: abdica dos teus direitos, vende-te barato ao mercado e faz tudo o que as empresas exigirem.

Fica também o diagnóstico do desemprego: o primeiro problema “é o de pessoas que não pensam bem o mercado, que têm um erro de análise tremendo. São pessoas de direitos que se esquecem dos seus deveres”; o segundo é “haver pessoas que não vendem o produto que o mercado compra”. Mas, ao contrário do que possamos pensar, Miguel Gonçalves não culpa os desempregados: “Eu não considero que o problema do desemprego é dos desempregados, estou a dizer é que a solução para o desemprego é dos desempregados. Essa é que é a grande diferença. E, se calhar, pode chocar dizer isto, mas muitos dos que estão desempregados, estão desempregados porque, ponto número um, não querem trabalhar e, ponto número dois, são maus a fazê-lo.”

Portanto, apenas advoga que a solução para resolver o desemprego de 1 milhão de pessoas em Portugal não é a transformação do modelo económico ou do modo de produção; nada tem a ver com opções políticas nem com medidas económicas, tem sim a ver com o facto de os desempregados não saberem sair da sua situação de desemprego. Pouco importa que haja emprego ou não. Têm que saber vender-se, como mercadoria barata e flexível. Pouco importa os seus projetos, a sua carreira, a sua identidade, a forma como se definiram no mundo, pouco importa o seu curso, a sua família, é submeter-se ao mercado ou nada.

É o dinamismo transformado em individualismo de que nos falava Anselm Jappe. Dinamismo e individualismo que alguns tomam por empreendedorismo, por mais bacoco que seja. Uma coisa fica assente: não será essa cassete a resolver os problemas, apenas serve para abafar a contestação ao problema porque tem como objetivo estilhaçar a sociedade, impedindo a comunidade e instituindo -a como um conjunto de indivíduos.

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais. Dirigente do Bloco de Esquerda
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