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Comissão Europeia sobre Portugal: declaração incrível

Pode alguém que não esteja cego pela fé ideológica nas contrações fiscais expansivas, acreditar que a austeridade hoje não é contraproducente? Por Francesco Saraceno
Durão Barroso: a Comissão Europeia congratula-se por o governo manter o compromisso com a troika, apesar da decisão do Tribunal Constitucional. Foto do Parlamento Europeu

 

Uma nota rápida sobre Portugal. Comecemos por três factos:

A austeridade não resultou. Portugal está num ciclo recessivo. A economia vai encolher 2,3% este ano, mais que duas vezes as previsões do governo anterior (e a desaceleração das exportações para o resto da eurozona não está a ajudar).

A austeridade é contraproducente: o rácio do défice em relação ao PIB ampliou-se de 4,4% em 2011 para 6,4% no ano passado, e a previsão é que seja de 5,5% em 2013. Muito acima do objetivo de 3% que o governo tinha acordado com a troika. O meu palpite é que vai ser ainda maior que isso.

A varinha de mágica de confiança não é mágica. Os cortes orçamentais não incentivaram o gasto privado e as expetativas permanecem sombrias. O artigo do Financial Times cita o diário português Público que escreve: “Portugal entrou num ciclo recessivo. As pessoas não têm motivo para acreditar que o futuro será melhor. O programa [de ajustamento] falhou e tem de ser alterado”. Adeus à fada da confiança...

Há alguma surpresa nisto? De forma alguma. A austeridade costuma ser recessiva e contraproducente quando ocorrem certas condições. (a) A política monetária está no limite inferior, e não pode compensar os efeitos recessivos dos cortes orçamentais com a redução de taxas de juros. (b) Os parceiros comerciais também estão em recessão (e/ou também estão a implementar medidas de austeridade) e assim as exportações não podem substituir a redução da procura doméstica. (c) O setor privado está a ser desalavancado, e sujeito a uma crise de crédito. Esta é uma boa descrição da situação atual na eurozona. Pode alguém que não esteja cego pela fé ideológica nas contrações fiscais expansivas, acreditar que a austeridade hoje não é contraproducente? E, no entanto, hoje tivemos a oportunidade de ler a declaração da Comissão Europeia sobre Portugal. É tão incrível que vale a pena reproduzi-la na íntegra:

A Comissão Europeia congratula-se por, na sequência da decisão do Tribunal Constitucional Português sobre o orçamento de estado de 2013, o governo português ter confirmado o seu compromisso para com o programa de ajustamento, incluindo as suas metas orçamentais e respetivo calendário. Qualquer afastamento dos objetivos do programa, ou a sua renegociação, irá neutralizar os esforços já feitos e conseguidos pelos cidadãos portugueses, nomeadamente a crescente confiança dos investidores em Portugal, e prolongar as dificuldades do ajustamento.

A Comissão confia assim que o governo português irá rapidamente identificar as medidas necessárias para adaptar o orçamento de 2013 de forma a respeitar a meta orçamental revista, conforme foi pedido pelo governo português e apoiado pela troika na sétima revisão do programa.

A implementação contínua e determinada do programa oferece a melhor forma de restaurar o crescimento económico sustentado e aumentar as oportunidades de emprego em Portugal. Ao mesmo tempo, é uma precondição para uma decisão sobre a duração das maturidades da assistência financeira a Portugal, que facilitaria o regresso de Portugal aos mercados financeiros e o cumprimento dos objetivos do programa. A Comissão defende que esta decisão seja tomada em breve.

A Comissão continuará a trabalhar de forma construtiva com as autoridades portuguesas dentro dos parâmetros acordados para aliviar as consequências sociais da crise.

A Comissão reitera que um forte consenso em torno do programa contribuirá para a sua bem sucedida implementação. A este respeito, é essencial que as instituições políticas portuguesas fundamentais estejam unidas no seu apoio.”

Para resumir, a Comissão alegra-se de que o governo português decida ignorar uma sentença dos seu Tribunal Constitucional (congratula-se por...); ameaça cortar o financiamento se o governo português não seguir as suas prescrições (“é uma precondição para uma decisão...”); está num estado de negação de confiança (“a crescente confiança do investidor...”); recomenda que não ocorra uma discussão democrática (“é essencial que as instituições políticas estejam unidas no seu apoio...”).

Isto ultrapassa todas as minhas piores previsões. Fui confirmar, e ninguém mudou o dia das mentiras de 1 para 7 de abril. Isto é a sério, e dispensa mais comentários.

8 de abril de 2003

Francesco Saraceno é um economista italiano radicado em França. Investiga Política Económica e Macroeconomia, especialmente ao nível europeu.Este artigo foi citado num comentário recente de Paul Krugman.

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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