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Perguntas de um escritor cubano

Muitas vezes a obra literária se vê obrigada a assumir papéis mais ambiciosos e complicados que os que normalmente lhe competem, diz Leonardo Padura Fuentes, autor de O Homem que Gostava de Cães, na abertura da Semana Do Autor da Casa das Américas, a ele dedicada.
Leonardo Padura: por que sou um escritor cubano que escreve e vive em Cuba? Foto de carac 3

Há três perguntas que faço a mim próprio com alguma frequência e, embora para outras pessoas algumas dessas interrogações possam não ter muito ou nenhum sentido, tentar encontrar uma resposta convincente para cada uma delas é um dos desafios que me deixa mais obcecado. E eu costumo ser bastante obsessivo.

A primeira, e talvez na aparência a de resposta mais fácil e óbvia é: por que sou cubano? A possível facilidade com que poderia ser respondida, ou seja, sou cubano simplesmente porque nasci em Cuba e vivi toda a minha vida em Cuba, razão pela qual sentimental, cultural e humanamente não tenho outra opção que não seja ser cubano, pode ser complicada por um certo sentimento de predestinação cósmica, de fatalidade ou capricho geográfico (a maldita circunstância de Virgílio ou da Pérola das Antilhas desde os tempos de Espanha), razões todas elas alheias à minha vontade ou capacidade de decisão. Mas a resposta até podia enrevesar-se mais se a essa condição natal ou mesmo escolhida lhe acrescentássemos os elementos do que implica uma pertença assumida para lá do que é jurídico, caindo então num território onde já incide arbítrio pessoal. Ora bem, se como acontece tantas vezes, a esta simples pergunta se lhe intercala uma recorrente e utilíssima interjeição muito comum no vocabulário de um cubano, e se se situa num determinado contexto, esta pode perder toda a sua simplicidade aparente e transformar-se num desafio histórico ou filosófico. Não é isso que acontece quando, em vez de a interrogação ser «por que sou cubano?», se pergunta «por que coño sou cubano?»...

Feita e matizada esta pergunta, a sua pertinência nas minhas obsessões torna-se mais evidente, porque, sem ela e as suas possíveis respostas, que podem ser condicionadas por factores conjunturais, me seria difícil começar a fazer a mim próprio as outras duas perguntas frequentes e evidentemente mais complicadas: por que sou um escritor cubano? E, sobretudo, uma que decalca e ao mesmo tempo amplia e modifica o sentido da anterior com uma subordinada: por que sou um escritor cubano que escreve e vive em Cuba?

Se confesso que para a primeira destas duas perguntas não tenho uma resposta convincente, talvez não acreditem. Sobretudo porque muita gente, a começar por mim próprio, não costuma acreditar nestas predestinações cósmicas que já mencionei. Devo avisar apenas que nasci e cresci numa casa onde só havia 9 livros – oito volumes das Selecções do Reader Digests e uma Bíblia -, que sou filho de um mação e de uma católica ao estilo cubano dos mais normais e correntes, que cresci num bairro chamado Mantilla onde ainda se diz «ir a Havana» quando alguém se desloca ao centro da cidade, e que até 1980 o nível escolar mais elevado obtido por alguém da minha família era o 8º ano a que tinham chegado, a muito custo, a minha mãe e uma tia paterna. É evidente que, com semelhantes antecedentes, com a agravante de durante os primeiros dezoito anos da minha vida o que mais me interessou e aquilo a que mais tempo dediquei foi praticar, ver e pensar no basebol, e que de entre todas as obrigações académicas do ensino médio a minha disciplina favorita era a de matemática, não vejo no meu passado remoto nenhuma razão que possa indicar uma vocação, na idade em que se forjam as vocações mais profundas.

Foi na Escola de Artes e Letras da Universidade de Havana, a dada altura mutilada e condenada a ser só Escola de Letras e, de repente, transfigurada em Faculdade de Filologia, que tropecei com o desejo de ser escritor, como se não pudesse deixar de o ser. O mais interessante é que cheguei a esse sítio e a esse encontro por pura causalidade socialista, pois a minha intenção de graduado pré-universitário era a de estudar jornalismo com o sonho de me tornar cronista desportivo. Mas justamente naquele ano académico não abriu a licenciatura de jornalismo, nem a de História da Arte, para a qual mais tarde tentei passar. Face a tanta reorganização do que já estava organizado – corria o ano de 1975, o auge da institucionalização do país -, cambaleando atrás do meu sonho de escrever sobre basebol, acabei por estudar Literatura Hispano-Americana, sem imaginar que aquelas «actualizações» universitárias me poriam no caminho do que tem sido a minha vida profissional e sentimental, ou seja, toda a minha vida, porque enquanto estudava esse curso tive pela primeira vez a possibilidade de sonhar, já não com a crónica desportiva, mas com a prática da literatura e, além disso, encontrei a rapariga que me acompanha desde essa altura em cada acto da minha existência (embora tenha de admitir que às vezes o faz de muito má vontade). Por isso, ao contrário de outros pretendentes a escritores ou de escritores incipientes que começaram a levantar a cabeça na ilha naqueles anos finais da década de 70 e que se tornariam mais visíveis no decénio seguinte, quando começo a sentir as exigências da literatura não fazia a mais pequena ideia do universo em que pretendia entrar e onde, de facto, estava a entrar.

Precisamente, naqueles anos, uma das profissões mais ingratas a que se podia aspirar em Cuba era justamente a da prática da literatura, à qual, no entanto, se entregavam entusiasticamente tantos habitantes do país que se podia ficar com a impressão de que éramos o paraíso dos escritores. Porque na Cuba de 1980 havia também, além de simples poetas, narradores e ensaístas, muitíssimos criadores «colectivos» de novo teatro, legiões de escritores policiais, de romance testemunho e de ficção científica, e milhares de participantes em oficinas de escrita, escritores voluntários e escritores aficionados, todos com os seus concursos, prémios e publicações. Curiosamente, aquela superpopulação da nossa República das Letras crescera justamente quando várias dezenas dos mais notáveis escritores cubanos, por causas, suspeitas e até simples desconfianças de origem variada, tinha passado toda uma década de marginalização e silêncio, durante a qual alguns deles encontraram a morte e o silêncio eterno. No entanto, o meu desconhecimento ou pouco conhecimento daquela história obscura não me impediu de reparar numa coisa que me pareceu alarmante: quão graves tinham sido os pecados ou deslizes destes escritores cubanos se naquele início da década de 80 eram reabilitados silenciosamente, como se o passado nunca se tivesse passado?

Foi no ambiente mais benigno desses anos que me tornei – ou comecei a tornar-me – um escritor cubano que vivia em Cuba e, mais por via atmosférica que por um processo de racionalização, fui descobrindo como devia enfrentar a literatura alguém que pretendesse ser aquilo em que me estava a transformar: um escritor cubano que vive em Cuba. Para começar, alguém com semelhante índole era um companheiro que necessariamente devia ter um trabalho a realizar (como jornalista, assessor literário, professor, funcionário), para além dos seus empenhos literários, que se faziam em horas roubadas ao descanso ou ao horário laboral; era alguém cuja aspiração máxima radicava no facto de arranjar um lugar na fila para publicar as suas obras nalguma editora da ilha, uma vez que o estrangeiro era uma noção difusa, longínqua, só acessível a figuras históricas como Alejo Carpentier e Nicolás Guillén, ou a autores tão reconhecidos como Manuel Cofiño, o escritor por excelência, em cuja pasta estavam sempre os amarrotados contratos das traduções para o russo, moldavo, romeno, usbeque, dos seus famosos, muito promovidos e reeditados romances. E um escritor cubano devia ser, além disso, um ser social com suficiente consciência de classe, do momento histórico – vivemos sempre num momento histórico – e da responsabilidade do intelectual na sociedade, para escrever só o que se supunha – ou o faziam supor – que devia escrever. Em poucas palavras: alguém capaz de manejar com discernimento a arte castrante da autocensura para evitar o enxovalho da censura.

Para um pretendente a escritor cubano, os meus destinos laborais daquela década de 80 foram os melhores que hoje poderia imaginar e, se me tivesse sido possível, escolher. Para minha sorte, o meu primeiro centro de trabalho foi a revista El Caimán Barbudo quando «El Caimán» se tinha transformado no centro mais activo das pequenas (ou não tão pequenas) preocupações dos jovens escritores de então. Assim, no «El Caimán» pude desenvolver o meu conhecimento do mundo e das figuras da literatura cubana do momento e desenvolvi um forte sentimento de pertença geracional. Aí aprendi também que as regras do jogo estabelecidas na década de 70 para o mundo da cultura, continuavam a funcionar numa espécie de extrainning interminável e que qualquer movimento em falso podia ser considerado um «balk» pelos árbitros da pureza ideológica. Mais tarde, depois da minha saída bastante estrepitosa do mensário cultural (cantaram-me um «balk»), fui trabalhar para o vespertino Juventud Rebelde, onde se supunha que tinha de ser reeducado ideologicamente, mas onde, na realidade, me eduquei literariamente, graças ao conhecimento mais íntimo da história do meu país, às muitas horas que pude dedicar à leitura e à prática de um jornalismo que me abriria as portas de uma consciência do que ia ser a minha literatura. Mas, sobretudo, nesses anos consegui fazer um reconhecimento mais maturo das minhas expectativas, de mim próprio e da sociedade onde vivia – para o que muito me ajudou, de uma forma dolorosa mas rápida e eficiente, o ano que passei em Angola e no decurso do qual conheci não só o medo (coisa muito pessoal), mas também a verdadeira pobreza material, e as misérias e bondades dos seres humanos, manifestadas nos seus estados mais consolidados e patentes.

Naquela época, embora tenha escrito muito pouco – sobretudo na etapa de Juventud Rebelde, quando fui carinhosa e perigosamente absorvido pelo trabalho jornalístico -, fui esboçando, juntamente com outros escritores da minha geração, alguns interesses literários que tinham muito a ver com as nossas próprias experiências, mas também com uma reacção lógica ao que se tinha escrito em Cuba, e como se tinha escrito, nos anos anteriores, nos do terrível decénio negro. Uma consciência incipiente de que a política e a literatura deviam ter existências independentes, de que o homem e os seus dramas podem ou devem ser o centro da criação artística, e de que olhar criticamente para o que nos rodeia era uma responsabilidade possível para o escritor, foram moldando alguns interesses colectivos e tornando-se patentes nas obras que, com maior ou menor sucesso artístico, criámos e até publicámos nesses tempos, não sem alguns sobressaltos, embora na realidade atenuados relativamente ao passado imediato.

Mas (devido à feliz conjunção cósmica ou a uma simples necessidade histórico-concreta) seria a década de 90 a da minha transformação real e definitiva em escritor, evidentemente cubano e que viveria em Cuba, com o remate de chegar a ser, a partir de 1995, um escritor profissional… Seria aquela época, além disso e aliás, a da queda do muro de Berlim, do cambalear e desmoronamento da irmã União Soviética, e a dos tempos mais álgidos do Período Especial. Se no meio daquelas catástrofes, que tiveram efeitos tão directos como a falta (entre outras coisas) de electricidade, comida e transporte, além da paralisação da indústria cultural e editorial do país, se no meio de tantas incertezas continuei a ser um escritor cubano que vivia em Cuba talvez se deva, sobretudo, ao facto de a primeira das perguntas que me deixam obcecado – ou seja, por que sou cubano? – ter colocado nas balanças possíveis todo o seu peso interior através de um sentido de pertença e por já ser um escritor cubano (por essa altura já dificilmente podia ser outra coisa) e a minha intenção ser a de ser um escritor cubano que escrevesse sobre Cuba, com a maior liberdade e sinceridade possíveis, empenhado em reflectir os conflitos (pelo menos alguns deles) da minha sociedade e assumindo os riscos inerentes a esse empenho. E, preso à minha pertença e para atingir esse objectivo literário, decidi pessoal, soberana e conscientemente ficar em Cuba e, apesar das carências e incertezas que batiam à porta de quase todos, e até dos meus próprios medos, escrever em Cuba e sobre Cuba.

Foi a prática da literatura que então me salvou da loucura e do desespero para que o ambiente me atirava. Entre 1990 e 1995, enquanto desempenhava o cargo de chefe de redacção de La Gaceta de Cuba e três vezes por semana fazia em bicicleta o percurso Mantilla-Vedado-Mantilla, no Verão e no Inverno, seco ou com chuva, a escrita transformou-se no meu refúgio e escrevi nesse período três romances – Um Passado Perfeito, Ventos de Quaresma e Morte em Havana -, um livro de contos, o meu longo ensaio sobre Carpentier e o real maravilhoso, três ou quatro guiões de cinema e até organizei dois livros com o meu trabalho de jornalismo dos anos anteriores e uma antologia de contos cubanos, El submarino amarillo. Graças à literatura fui a Espanha, ao México, à Colômbia, à Argentina, a Itália, aos Estados Unidos. Graças à literatura, a essas viagens e ao passaporte uruguaio de Daniel Chavarría pude comprar um computador e até uma máquina de lavar e algumas embalagens de carne de vaca picada nas lojas pagas em divisas, fechadas nessa altura para os cubanos, mas com uma frincha aberta para os escritores cubanos que viviam em Cuba e obtinham alguma moeda forte nas estadas no estrangeiro, quando essa moeda era convenientemente trocada por uns cheques avermelhados que nos permitiam aceder àquele privilégio que, embora não incluísse computadores, nos salvava da inanição e da cadeia (quando se podia acabar aí por se andar na rua com alguns dólares no bolso).

Já são horas de avisar que se para falar do que foi e, sobretudo, do que é, a prática da literatura em Cuba, parto de um inventário de caminhos, contingências e decisões pessoais, isto se deve à percepção de que a minha experiência individual como escritor cubano que viveu e vive na ilha, recebeu e foi recebendo ao longo de trinta anos o peso e a influência de todas as circunstâncias pelas que foi passando o exercício desta arte no país que, de muitas formas, condicionaram as minhas expectativas e necessidades de criador e de cidadão pertencente a uma geração muito específica de cubanos: a que nasceu na década de 50, estudou nas universidades durante o período crítico dos anos 70 e entrou na literatura insular, com uma tímida ruptura, nos anos 80. A geração que, no momento da sua maturidade e eclosão possível, viu alterado o seu desenvolvimento ou evolução com a chegada do eufemisticamente chamado Período Especial que marcou a última década do século XX e projectou o seu espectro até ao momento presente, de hoje, de agora mesmo, a geração literária cubana que talvez com maior rancor recebeu os golpes mas também os benefícios – sim, os benefícios – desses anos e a quem o simples facto de os recordar faz com que sintam fome, calor e até o risco de sofrerem uma polineurite. Lembram-se da polineurite, não é verdade?

Porque no meio daquele caos, loucura e luta pela sobrevivência pura e dura que se instaurou no país, enquanto escrevia como um louco para não enlouquecer, alguma coisa começou a mudar na situação de escritor cubano que vivia em Cuba, levada pela pressão dessa espécie cultural que, evidentemente, já não era tão abundante como nos dias de 1970 e 1980, pois publicar um livro numa editora do país se tinha transformado numa coisa excepcional e muitos deixaram de o tentar, porque outros «escritores» emergidos nos anos 70 não o eram tanto e se evaporaram, e porque muitos outros escritores cubanos que viviam em Cuba trocaram a sua situação pela de escritores cubanos que viviam fora de Cuba ou, como lhes deu por chamar, por escritores da diáspora ou do exílio (uma relação, lamentavelmente desactualizada, aparece no epílogo ao Informe contra mi mismo, do querido e já desaparecido Lichi Diego, aliás, Eliseo Alberto).

O que se moveu no território da criação e especificamente da literatura cubana foi uma soma de circunstâncias materiais e espirituais capazes, no seu conjunto, de redefinir a situação do escritor que vivia em Cuba e de alterar de uma forma bastante radical o conteúdo e as intenções da sua obra. Entre esses elementos estava a já mencionada paralisação da indústria editorial do país, o que obrigou os escritores a procurar pelo mundo um prémio literário que os salvasse da penúria e, ao mesmo tempo, um meio para publicar as suas obras sem que, pela primeira vez em três décadas, essas intenções editoriais se convertessem num pecado, punível como todos os pecados; evidentemente, esta relação diferente com o presumível ou finalmente encontrado editor estrangeiro criou, por sua vez, uma dinâmica diferente, menos preconceituosa, entre o escritor e a sua obra, pois esta última já não era destinada, pelo menos inicialmente, a um editor cubano que poderia lê-la como um funcionário do estado cubano e, dessa perspectiva comprometida, aceitá-la ou rejeitá-la; some-se a estes dois elementos, outros de carácter social e espiritual que marcariam a época: o desencanto, o cansaço histórico, a revisão crítica da sociedade e dos seus actores a que nos levaram a crise e o conhecimento da nossa e de outras realidades, de algumas verdades nem sequer suspeitadas em toda a sua dimensão e as próprias mudanças numa sociedade que estava a sofrer violentas contracções e dando origem a atitudes e necessidades antes imersas ou mesmo inexistentes… O resultado de todas essas revulsões foi uma literatura que muito poucos, talvez ninguém, podiam conceber ou imaginar nos anos anteriores, uma literatura de indagação social, de forte vocação crítica, muitas vezes mesmo de dissensão com o discurso oficial e que, com o seu carácter e buscas, marca os rumos que seguiu, desde aqueles anos finais do século XX até estes já não tão iniciais do século XXI, o que pode considerar-se o mainstream da literatura cubana. E nesse rótulo incluo, evidentemente, a literatura que escrevem os que vivem em Cuba e os que vivem fora de Cuba, a que se publica e distribui em Cuba e a que se edita fora da ilha. Uma criação que, é justo dizê-lo, muitas vezes conseguiu ser publicada e distribuída em Cuba, graças a uma percepção mais realista do meio e das necessidades de expressão artística por parte das autoridades culturais do país.

Essa literatura que começou a ser escrita e publicada na década de 90, e da qual eu participei, propôs-se perscrutar os recantos escuros ou inexplorados da realidade nacional, olhar criticamente para o passado, descer até às profundezas da sociedade em que vivíamos, encontrar respostas a perguntas existenciais, sociais e até políticas para as circunstâncias que tínhamos atravessado. Vários escritores desse momento atingiram o objectivo de encontrar editoriais fora da ilha, entidades que publicaram e promoveram as suas obras e lhes conferiram um novo sentido de independência, tanto literária como económica. No terreno artístico, essa independência manifestou-se numa criação cada vez menos condicionada pela ordem estabelecida, mais abertamente crítica ou, simplesmente, mais pessoal. No plano económico, permitiu a profissionalização de alguns escritores e a possibilidade de muitos outros o conseguirem, uma condição impensável até à década de 80 e que, evidentemente, conferia outra dose de independência ao escritor cubano que vivia e escrevia em Cuba.

No meio dessa nova circunstância nacional, talvez o maior erro desta literatura mais livre, ou desencantada, ou intencionalmente crítica, tenha sido a falta (ou a incapacidade de alguns dos seus criadores) de uma perspectiva universal, ou seja, menos localista. A insistência em determinados mundos sociais, personagens representativas, problemáticas específicas e formas expressivas que se tornaram repetitivas, fez com que uma parte notável desta literatura encalhasse no imediato, nas peculiaridades cubanas tão peculiares, e criou uma retórica que, ao passar o momento de júbilo internacional por essa nova literatura criada na ilha, em especial o romance, cortou ou dificultou o acesso às editoras forâneas (que vivem as suas próprias crises) de novos escritores cubanos que vivem em Cuba e escrevem sobre Cuba.

Mas sobre esta criação, desde os anos finais do século passado e sobretudo nos que decorreram do presente século, gravitam outras circunstâncias que, em minha opinião, estão a afectar o seu desenvolvimento.

Primeiro que tudo, a certeza de que a escrita em Cuba é um acto ou vocação de fé, um exercício quase místico. Num país onde a publicação, distribuição, comercialização e promoção da literatura funciona de acordo com conjunturas regra geral extra-artísticas e não comerciais, procura de equilíbrios culturais e até códigos aleatórios de sistematização impossível, a situação do escritor e o seu papel tornam-se instáveis e difíceis de suportar. Os escritores que publicam em Cuba recebem pelas suas obras direitos retribuídos na cada vez mais desvalorizada moeda nacional – em função do que se pode adquirir com ela -, valores pagos muitas vezes sem ter em grande conta a qualidade da obra ou a sua aceitação pública. Evidentemente, estes direitos de autor tornam quase impossível a opção pela profissionalização dos escritores (o que, é justo lembrar, é bastante comum em todo o mundo), o que pode ter efeitos na qualidade da obra empreendida. Com que recursos conta um escritor cubano para dedicar, digamos, três ou quatro anos à escrita de um romance que exija esse tempo de elaboração? É evidente que não pode depender só dos seus direitos em pesos cubanos e que tem de procurar outras alternativas laborais ou profissionais com que ganhar a vida ou onde desgastar a vida enquanto dedica o tempo restante à criação. O estado calamitoso do romance cubano dos últimos anos pode ou não ter uma relação directa com esta situação existencial e económica (impossível de inverter ou, pelo menos, de aliviar, enquanto não mudar toda a «situação económica»), mas o seu estado de deterioração pode ser visível, por exemplo, se contarmos quantas obras deste género, o mais lido e publicado no mundo, obtêm os prémios anuais da Crítica Literária, uma bitola subjectiva mas possível para avaliar as qualidades do que se difunde através das editoras do país.

Outra questão que afecta o escritor cubano há décadas, mas que se agudizou nos últimos tempos, é a sua lamentável falta de informação a respeito da literatura que está a ser criada noutras latitudes. Todos os leitores cubanos, todos os escritores que vivem na ilha, sofrem desta desactualização porque, mesmo no caso dos mais informados, a sua relação com o que se lê no mundo é sempre aleatória, dependente não das suas necessidades mas das suas possibilidades de comprar ou de encontrar determinados autores e obras que, de forma nenhuma, se publicam ou distribuem normalmente no país. Desta forma, o escritor cubano do século XXI que vive em Cuba – onde tem um acesso precário à Internet ou simplesmente não o tem – move-se como um cego pelo universo da literatura do seu tempo, na qual deve inserir-se e com a qual tem de partilhar o mercado, se conseguir chegar a abrir alguma porta dessa instância tão satanizada mas, simultaneamente, tão necessária, até para a criação e para a promoção nacional e internacional da literatura.

Não se pode esquecer também que, com muita frequência, o escritor cubano que vive em Cuba e escreve em Cuba tem de enfrentar, além disso, uma política promocional bastante deficiente, entre outras razões pela própria inexistência de um mercado do livro dentro do país, mas também, entre outros factores, pelo estado ruinoso da crítica literária doméstica e pela ainda presente, nestes tempos de mudança de mentalidades e de muitas outras coisas, desconfiança política a que pode ser sujeito se a sua obra não se mostrar complacente com os preceitos da ortodoxia fundada naqueles distantes mas ainda (para algumas mentes) actuantes limites do «correcto» patenteado nos anos 70. A soma destes elementos criou, contra a própria validação da literatura que se faz no país, a sensação de que durante duas gerações a ilha quase não deu – ou simplesmente não deu – escritores de importância, provocando uma falsa imagem de vazio.

Embora não desejasse particularmente fazê-lo, tenho de voltar agora à minha experiência pessoal para exemplificar como pode funcionar a realidade antes descrita… Quando, há pouco mais de um mês, a Casa das Américas me convidou para ser o escritor protagonista da Semana do Autor, mais ainda, o primeiro escritor cubano a que era dedicada a Semana do Autor, a minha previsível reacção foi de assombro. Como costumo fazer, comecei a interrogar-me e a primeira questão que coloquei foi: porquê eu e não outros escritores mais reconhecidos ou institucionalizados, figuras que exibem mesmo Prémios Nacionais nos seus currículos? Antes de colocar mais perguntas a mim próprio, disse à direcção da Casa que sim, que evidentemente aceitava, com muito orgulho, a honra e o reconhecimento de um trabalho que esta Semana do Autor representa, mas, ao mesmo tempo, não pude deixar de recordar que há um ano, quando a Maison de América Latina de Paris, o Pen Club Francês e a sociedade de amigos de Roger Caillois me entregou o prémio que tem o nome desse importante escritor, nenhum meio oficial nacional se aproximou de mim ou promoveu, como se promovem outros acontecimentos ou acções, um acontecimento que me ultrapassava como escritor e implicava, como é evidente, um reconhecimento da literatura cubana, sobretudo daquela se se faz em Cuba pelos escritores que vivem em Cuba. Porque, na lista dos anteriores galardoados com o prémio – nenhum cubano – apareciam os nomes, entre outros, de Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Álvaro Mutis, Adolfo Bioy Casares… e agora o de um cubano que continua a escrever e a viver em Cuba.

Não se pode esquecer, ao analisar a situação actual do escritor cubano que vive em Cuba e ao referir algumas das suas atribulações e sucessos, o mais essencial dos elementos que, em minha opinião, definem o seu carácter e, sobretudo, o da sua obra. Ao contrário de outros países, onde os escritores mais notáveis ou activos costumam ter uma presença social ou artística graças ao apoio dos meios de maior circulação ou prestígio, o escritor cubano tem apenas a sua obra e uma ou outra entrevista como meio de expressar a sua relação com o mundo, com a sua realidade, com as suas obsessões. Muitas vezes a obra literária se vê obrigada então a assumir papéis mais ambiciosos e complicados que os que normalmente lhe competem, e funciona – ou faz-se com que funcione – como instrumento de indagação social e como um meio de testemunhar uma realidade que, de outra forma, não teria um reflexo que a fixasse e dissecasse. O escritor cubano que vive em Cuba, e enfrenta dia a dia a realidade do país, com as suas mudanças, evoluções, reacções sociais e sonhos pessoais realizados ou frustrados, transformou-se num dos mais importantes recolectores da memória do presente que o futuro terá. Esta responsabilidade somada à sua própria responsabilidade literária confere ao escritor um compromisso civil que dá uma dimensão mais transcendente ao seu trabalho. Escrever sobre Cuba, sobre o que Cuba tem sido e é e sobre o que são os cubanos de ontem e de hoje, com a sinceridade e profundidade que merecem estas entidades socio-históricas e humanas, é talvez a tarefa mais complexa e simultaneamente mais satisfatória que enfrenta um escritor cubano que vive nesta Cuba do século XXI. Porque é um dever para com os cubanos e para com a nação, porque é o seu destino e porque, se alguma vez esse escritor se interroga «por que sou cubano?», «por que sou um escritor cubano?», e «por que sou um escritor cubano que vive em Cuba?», também poderia substituir o «por que» por um «para que» e encontrar talvez as suas próprias respostas, quem sabe mais próximas das predestinações cósmicas, mas também do papel social que assumiu com essa vocação de fé que é a prática da literatura.

Leonardo Padura Fuentes, escritor e jornalista cubano. Os seus romances foram traduzidos para mais de quinze idiomas e a sua obra mais recente, O Homem que Gostava de Cães, tem como personagens centrais León Trotsky e o seu assassino, Ramón Mercader. Com esta intervenção abriu os dias da Semana Do Autor, na terça-feira, 27 de Novembro.

02/12/2012

Publicado em Sin Permiso

Tradução de Helena Pitta para o Esquerda.net

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