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Em louvor da programação cultural irreverente

Urge mudar a visão ornamental da cultura para uma convivência cultural quotidiana no sentido mais amplo e não apenas no sentido artístico ou patrimonial.

O que é estranho é que todos estes Teatros e teatrinhos,
teoricamente, integrem a tal Rede. Com um ou com
trinta funcionários. Com um director artístico ou com
um vereador da cultura a "dar palpites".
Américo Rodrigues 
(Quatro Ensaios à Boca de Cena, Edições Cotovia, Lisboa, 2009)

Na maioria dos casos – reconheço que a generalização poderá eventualmente ser injusta – a vida cultural das cidades médias e pequenas portuguesas é composta, salvo honrosas exceções, por programas culturais (em equipamentos públicos) reveladores de um sentido de reverência. Reverência aos poderes político-administrativos (tutelas), reverência a filiações estéticas e gostos pessoais, reverência a amizades e afinidades eletivas, etc.

(Barbara Kruger)

A tendência dos programadores e/ou diretores de equipamentos culturais públicos é escolher e aglomerar mensalmente a oferta existente no catálogo da cultura objetivada (os produtos e serviços culturais existentes), apresentando-os a essa imensa maioria para quem a reverência ao “estado das coisas” e à eterna manutenção do status quo -leia-se reprodução das desigualdades sociais -, é um gesto automático e entranhado na memória coletiva, resultado da inércia social e cultural.

Estas programações “generalistas” pecam de facto pela sua arbitrariedade, pela leviandade com que são concebidas, e por isso servem apenas para agradar a gregos e a troianos, isto é, para não agradar a ninguém em especial ou para alimentar as formas de representação da cultura oficial, guardiãs do consenso pré-democrático.

O problema coloca-se quando se pretende que o lugar da cultura nas cidades (das práticas artísticas, do conhecimento, do pensamento,…), seja exatamente o oposto: transformar valores, referentes e hábitos culturais “monoteístas”, fornecer capacidades críticas e ferramentas cognitivas, engendrar modos de intervenção na vida pública, motivar a presença de imaginários alternativos, etc, etc…

Outro dos problemas estruturais da programação reverente, é não ter em atenção a diversidade sociocultural da cidade, o potencial das misturas, das minorias, dos estranhos, dos imigrantes… mantendo assim uma visão substancialista da identidade cultural homogénea e cristalizada. E favorecendo apenas aqueles que já são os consumidores regulares de cultura, cujo perfil é conhecido dos estudos e das estatísticas.

No entanto, como disse João Fernandes (ex- diretor do Museu de Serralves) numa entrevista ao Público: “A arte deve propor a polémica e não o consenso”. Para bom entendedor, este desiderato não pretende afirmar que as artes devam banalizar a polémica através duma estética do choque, mas que devem ter em consideração a isomorfia entre a formação coletiva do “gosto” e a construção social do “consenso”, e suspendê-la, pelo menos. Ora, se o espaço público (urbano e comunicacional) é fortemente condicionado pelos poderes mediáticos e políticos, como é que as artes e a produção cultural de um modo geral podem expor publicamente a polémica? Como é que se migra da “Urbanalização” (Garcia Canclini) para as “Heterotopias” (Michel Foucault) ou para as “Zonas Autónomas Temporárias” (Hakim Bey) ? Como quebrar o feitiço do grau zero das políticas culturais locais ? E mais presentemente, como usar o álibi da “crise” para transformar o campo cultural num laboratório vivo de cidadania e emancipação, recusando ao mesmo tempo a cosmética do conflito politicamente esvaziado? Responder a estas questões, ou a outras da mesma latitude de preocupações, requer equacionar as problemáticas e debatê-los pública e localmente. As problemáticas por sua vez vez têm origens diversas e temas conexos.

Reinstituir as instituições públicas (equipamentos culturais). Sabe-se que o papel histórico das instituições é moldar as relações sociais de modo a favorecer a função de reprodução social, ou seja, manter os esquemas e as possibilidades de funcionamento social na sua inércia adequada à manutenção do status quo, manter as hierarquias, manter os privilégios, e obviamente manter as desigualdades. Mas também é possível desenvolver práticas culturais instituintes, isto é, que através da crítica institucional se provoquem abalos tectónicos nosmodus operandis obsoletos das instituições. Não é por acaso que crise e crítica têm a mesma etimologia... A relação entre ambas é íntima, já que crise é "o momento crucial, decisivo, de mudança", e crítica é "o poder de decidir, eleger, escolher, distinguir". Portanto, devemos saber aproveitar o momento sem hipo-crisias, e não para nos adaptarmos à programação de um futuro austeritário e sub-humano.

Nestes meandros, a questão do “poder” é muito importante, os autarcas e as instituições públicas de cultura têm de auto-limitar-se no uso e abuso do poder para que ele não se torne absoluto e arbitrário. É preciso passar de uma visão acumulativa de poder para uma visão distributiva e relacional do poder. E isto requer quebrar o consenso prévio, que é anestesiante e paralisante, para através do debate de ideias e de propostas construir compromissos de forma democrática, transparente e pública. Pois, tal como os peixes num aquário, nós dependemos da atmosfera simbólica que produzirmos, as cidades devem por isso zelar pela boa qualidade da sua vida cultural, pela qualidade de vida mental e espiritual dos seus cidadãos, ou seja, pela defesa de um meio ambiente cultural vivo e vibrante... é que se não cuidarmos das capacidades criativas, críticas e cognitivas dos cidadãos é impossível sequer gerar valor económico a longo prazo no horizonte das economias criativas e do conhecimento.

Mas isso só por si não basta, é fundamental que se transformem os habitus (no sentido empregue por Pierre Bordieu), ou seja, as estruturas do pensamento/conhecimento: ideias-feitas, esquemas de perceção e as funções cognitivas (mind-set). Que essa transformação só pode ser feita de forma corajosa, exercendo a crítica e a liberdade de expressão nos meios de comunicação locais, onde de facto é uma tarefa difícil, pois nas cidades médias e pequenas ninguém parece ter “autonomia” para pôr em causa o poder local e as suas clientelas. Através da realização de projetos culturais disruptivos, que interroguem a realidade e as condições de vida existentes, através de uma programação cultural irreverente em vez da monótona apresentação de uma lista de compras espetáculos apresentados aos fins-de-semana. Em síntese, urge mudar a visão ornamental da cultura para uma convivência cultural quotidiana no sentido mais amplo e não apenas no sentido artístico ou patrimonial.

Um exemplo pertinente do que pode ser um momento crítico-instituinte, foi a realização do “marathon camp on artistic strategies in politics and political strategies in art”, em Graz (Áustria): http://www.truthisconcrete.org.

Para terminar, deixo-vos com a sugestão de participação na iniciativa que no próximo Sábado, dia 26 de Janeiro, se realiza no Museu do Chiado, o colóquio “Pode a arte anular o destino?” no âmbito da Exposição” Are you still Awake?”. Ver detalhes aqui: http://www.museudochiado-ipmuseus.pt/pt/node/1414

Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
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