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Este parte, aquele parte

Não tenhamos dúvidas: para estes governantes, o país tem um excedente na rubrica "cidadãos". Quando assim é, resta-nos a obrigação moral de escolher entre o país ou o governo.

Nos últimos tempos contabilizei mais um punhado de amigas e amigos que planeiam sair do país. São histórias todas elas diferentes mas atravessadas pelo mesmo traço comum: o da falta de trabalho e perspetivas. Nenhum deles encara a emigração como uma saída da "zona de conforto", uma aventura jovial ou um Erasmus pós-estudantil. Trocam este país por outro porque essa é a condição para terem uma vida que valha a pena ser vivida. Partem rumo à incerteza e quase sempre magoados e desiludidos. "Se tiver de sair, nunca mais lhes perdoo", dizia-me uma amiga. É aos governantes de hoje que ela não perdoará.

Convém evitar à partida um enfoque nacionalista em torno do debate sobre a emigração. Uma esquerda que dá mais valor à humanidade do que às fronteiras tem de saber distinguir a mobilidade como hipótese da emigração como destino forçado. É que o problema essencial da emigração hoje não consiste no gesto de sair mas nas forças que expulsam os portugueses - e os imigrantes que aqui vivem e trabalham - para fora do país. São forças poderosas e reconhecíveis: é o desemprego crescente, a precariedade como modo de vida, a austeridade como caminho para o empobrecimento necessário.

Na verdade, os números sobre este novo ciclo migratório não abundam. É sempre difícil contabilizar saídas muito recentes, sobretudo quando boa parte delas se deslocam para uma União Europeia sem as barreiras fronteiriças de outrora. Relativamente a 2012, não se conhecem números para além de alguns dados muito parcelares. Sobre 2011, uma das estimativas existente - veiculada pela Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas - aponta para mais de 100 mil portugueses saídos do país. Se Portugal é desde há muito um país de emigrantes, este número indicia a existência de um fluxo migratório atual próximo do ocorrido nos últimos quinze anos da ditadura, quando cerca de um milhão e meio de portugueses fugiram da pobreza endémica e da guerra colonial.

A situação hoje tem algumas novidades. Desde logo, e invertendo uma tendência recente, Portugal apresenta agora um saldo migratório negativo - ou seja, são mais aqueles que saem do que os que entram. Por outro lado, e apesar de não existirem dados taxativos sobre o assunto, uma componente importante da nova vaga migratória tem outra configuração: mais jovens qualificados estão a emigrar. Num país onde as baixas qualificações ainda são a norma, isso representa um desperdício do investimento coletivo na educação e sinaliza a tendência de aprofundamento de um modelo económico baseado nos baixos salários.

Há quem considere que, mais do que um aumento numérico substancial, há sim um aumento da perceção social do drama da emigração. Ela estaria hoje a tocar crescentemente cidadãos e famílias com maior capacidade de expor e tornar socialmente visível a sua história. Se esse elemento é importante, convém, no entanto, não se absolutizar a narrativa em torno da tontamente designada "fuga de cérebros". Dada a percentagem de cidadãos com ensino superior, é muito improvável que a maioria das saídas seja de licenciados ou pós-graduados (ainda que os dados indiquem o seu aumento e o impacto social disso seja particularmente negativo). Na verdade, o desemprego galopante - e a crise profunda em sectores como a construção civil e a restauração - aponta para a diversificação dos extratos sociais sujeitos ao exílio económico. A emigração e o desemprego têm hoje uma crescente transversalidade social.

A estratégia da direita no poder para lidar com isso tem consistido na glamourização da emigração. Ainda há alguns dias atrás vimos Cavaco Silva e Paulo Portas apadrinharem a criação de um Conselho da Diáspora Portuguesa que se propõe inocular "prestígio" luso pelo mundo. O glamour era fraco - as televisões mostravam um friso humano cinzento e totalmente masculino, liderado pelo empresário Filipe de Botton - mas passava com eficácia a imagem do emigrante como uma espécie de "diplomata económico" da nação.

Neste processo de inversão do real, o desrespeito pela vida concreta das pessoas torna-se a norma. Ao longo de 2012, foi essa a tónica nas várias declarações proferidas pelos governantes sobre o assunto. Ao mesmo tempo que ensaiavam um despudorado elogio da errância, falando da "emigração como oportunidade" e da "saída da zona de conforto", escondiam o seu pensamento mais profundo sobre o tema: se a mão-de-obra é mercadoria, ir vendê-la para longe é um favor que se faz às estatísticas imediatas.

Não tenhamos dúvidas: para estes governantes, o país tem um excedente na rubrica "cidadãos". Quando assim é, resta-nos a obrigação moral de escolher entre o país ou o governo.

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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