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Vitória esmagadora dos nacionalistas na Córsega

Na 2ª volta das eleições territoriais da Córsega, realizadas no passado domingo, os nacionalistas da coligação Pè a Corsica (Pela Córsega) obtiveram um triunfo histórico, obtendo uma maioria absoluta clara, que lhes garantiu quase dois terços dos lugares na Assembleia daquela Comunidade Territorial. Por Jorge Martins.
Foto OLIVIER SANCHEZ, EPA.

A ilha mediterrânica pertenceu à República de Génova desde os finais do sec. XII até às primeiras décadas do sec. XVIII. Daí que a língua corsa derive do dialeto genovês e tenha grandes semelhanças com o italiano. Em 1729, o aumento dos impostos levou ao estalar de uma revolta, que levou à proclamação da independência e à subsequente criação do Reino da Córsega, em 1735. Este teve curta duração, acabando, cinco anos depois, subjugado por uma intervenção militar francesa, em socorro dos genoveses, embora a resistência tenha durado até 1743. Mas o desejo de liberdade continuava vivo e, em 1755, a ilha voltou a declarar a independência, sob a direção de Pascoal Paoli. Influenciado pelos filósofos iluministas, elaborou uma Constituição que consagrava a separação de poderes e o direito de voto às mulheres (solteiras e viúvas) que fossem chefes de família. Contudo, em 1768, Génova, que não reconhecera a independência do seu território insular, cede-o à França, em troca de uma compensação financeira. Com esse pretexto, os franceses invadem a Córsega, que resiste até 1769, ano que marca o fim da república corsa e a anexação da ilha à França. Contudo, a resistência não cessa e, esporadicamente, ocorrem revoltas, duramente reprimidas.

Com a Revolução Francesa, iniciada em 1789, Paoli regressa do exílio e, com o apoio da Assembleia Nacional Constituinte, torna-se presidente do novo departamento insular. Contudo, opõe-se ao chamado Terror jacobino e, em 1794, negoceia com os ingleses a criação de um novo Reino da Córsega, inspirado na monarquia constitucional britânica. Apesar de apoiado por tropas inglesas, este terá vida efémera, já que, dois anos depois, elas são expulsas pelas forças francesas e Paoli parte, definitivamente, para o exílio no Reino Unido. Pouco depois, surge uma revolta, encabeçada pelas forças reacionárias locais, contra as leis anticlericais aprovadas pelo Diretório.

A chegada ao poder de Napoleão Bonaparte, um filho da terra, faz aumentar o apoio à integração da ilha em França. Quando, em 1851, o seu neto, o futuro Napoleão III, dá um golpe de Estado que termina com a 2ª República francesa, a Córsega, região conservadora e católica, apoia-o entusiasticamente. Contudo, em 1859, o francês é imposto como única língua oficial na região.

Após a 1ª guerra mundial, o movimento nacionalista renasce, apoiando-se no “princípio das nacionalidades”, expresso pelo presidente norte-americano, Woodrow Wilson, na Conferência de Versalhes. Em 1923, surge o Partido Corso de Ação, inspirado no seu homólogo sardo, que se transformará, mais tarde, no Partido Autonomista Corso. Contudo, nos anos 30, uma parte dos seus militantes adere ao irredentismo italiano, com o apoio do regime fascista de Mussolini. Durante a 2ª guerra mundial, após a rendição da França, em 1940, Hitler não aceita as pretensões da Itália, que desejava a anexação da ilha. Esta fica, assim, na chamada “zona livre”, sob controlo do regime colaboracionista de Vichy. Porém, em 1942, após o desembarque aliado no norte de África, aquela é militarmente ocupada por alemães e italianos. A ilha fica, então, sob ocupação das tropas italianas. Com a queda de Mussolini e a retirada da Itália da guerra, em junho de 1943, é ocupada pelos alemães. Contudo, esta ocupação dura pouco, pois, em setembro do mesmo ano, rebenta uma sublevação popular incentivada pelos resistentes corsos. Com o apoio das forças francesas livres e dos militares italianos que se passaram para os Aliados, conseguem expulsar os ocupantes. No princípio de outubro, a Córsega é a primeira região da França europeia a ser libertada.

No final dos anos 50 e início dos anos 60 do século passado, a concessão de terras agrícolas da planície oriental da ilha a “pieds-noirs” (antigos colonos franceses na Argélia) causou mal-estar entre os corsos. Este agrava-se na década seguinte, devido à persistência dos baixos níveis de desenvolvimento da ilha comparativamente ao continente francês, com destaque para a ausência de infraestruturas de qualidade, a que se soma o crescente descontentamento provocado pelo crescimento desenfreado do turismo, com impactos ambientais negativos para as populações locais. Estavam criadas as condições para o ressurgimento do movimento nacionalista. Assim, em 1966, surge a Frente Regionalista Corsa, de onde surgiriam, mais tarde, outros movimentos nacionalistas. Em 1976, é criada a FLNC (Frente de Libertação Nacional Corsa), que será responsável por várias ações de luta armada.

Em 1982, com a aprovação da regionalização pelo governo francês, a Córsega passa a ser uma das 22 regiões da chamada França Metropolitana, algo considerado manifestamente insuficiente pelos setores nacionalistas. Em 1991, torna-se uma Coletividade Territorial de estatuto especial, passando a deter um Conselho Executivo semelhante a um governo, com maior número de competências que as restantes entidades regionais, onde o poder executivo é exercido pelo presidente da respetiva assembleia. O recrudescimento da violência, que culminou com o assassinato do prefeito Claude Érignac pela FLNC, seguido de forte repressão das autoridades francesas sobre os meios independentistas, acabou por levar o governo de Paris e os nacionalistas representados na assembleia territorial a dialogar, naquilo que ficou conhecido como o processo de Matignon. Este terá como resultado uma proposta de um novo estatuto, que consagraria uma maioria autonomia à ilha. Porém, em 2003, ela é “chumbada” num referendo local, com o voto contrário de 51% dos eleitores.

As ações armadas continuam, mas o movimento nacionalista divide-se e alguns setores deste acabam infiltrados pelo crime organizado, bastante ativo na ilha. Entretanto, certas correntes da luta armada passam a apostar, paralelamente, na via eleitoral. Uma opção que se viria a revelar acertada. Nas eleições territoriais de 2010, o centro-esquerda e a esquerda coligados vencem pela primeira vez na região, enquanto as duas listas nacionalistas somam mais de 35% dos votos na 2ª volta, obtendo 11 lugares na assembleia territorial. Em 2014, a FLNC assume o seu desarmamento sem condições prévias. Nesse mesmo ano, mais de 80% dos deputados da assembleia territorial aprovam uma nova proposta de estatuto para o território, com o aval do governo central. De acordo com ela, e tal como já era proposto em 2003, a ilha mediterrânica será transformada numa Comunidade Territorial Única, com a consequente extinção dos dois departamentos em que se dividia desde 1976: a Alta Córsega, com sede em Bastia, e a Córsega do Sul, em Ajaccio. Em consequência, esta nova entidade assumirá a totalidade dos poderes que se encontravam divididos entre a assembleia territorial e os dois conselhos departamentais. A sua entrada em vigor foi prevista para 1 de janeiro de 2018.

Nas eleições regionais de 2015, as duas listas nacionalistas, unidas na 2ª volta, obtém 35,3% dos votos. Apesar de manterem, sensivelmente, a mesma votação do ato eleitoral anterior, vencem as eleições, elegendo 24 dos 51 membros da assembleia. O líder nacionalista Gilles Simeoni é, então, eleito presidente do Conselho Executivo da Comunidade Territorial, ficando a presidência da assembleia territorial confiada ao independentista Jean-Guy Talamoni.

As eleições agora realizadas têm carácter intercalar, visando adequar o mandato dos órgãos da Comunidade à nova realidade institucional do território. Por isso, a assembleia agora eleita toma posse no primeiro dia de 2018, mas apenas estará em funções até 2021, quando se realizarem as novas eleições regionais e territoriais no conjunto do território francês. Só a partir daí cumprirá o mandato normal de seis anos. Entretanto, viu o número de deputados aumentar de 51 para 63.

O sistema eleitoral, o mesmo que rege os sufrágios regionais em França, é algo sui generis. Trata-se de um sistema proporcional de lista, mas a duas voltas e com bónus maioritário. Se uma das listas obtiver a maioria absoluta logo na 1ª volta, recebe, de imediato, um bónus de 11 lugares. Os restantes são distribuídos proporcionalmente por todas as listas que tenham obtido um mínimo de 5% dos votos válidos. Caso nenhuma lista atinja, desde logo, os 50%, há lugar a uma 2ª volta. Nesse caso, ficarão qualificadas todas as que atinjam 7% dos votos validamente expressos. Estas podem fundir-se, quer com outra(s) qualificada(s), quer com aquelas que tenham obtido entre 5 e 7% dos votos válidos, se assim o desejarem. Quer tenha ou não havido algum(ns) acordo(s) de fusão, a lista mais votada no 2º turno receberá o prémio dos 11 deputados à cabeça, sendo os restantes distribuídos proporcionalmente pelas restantes.

Na 1ª volta, realizada no dia 3, os resultados foram os seguintes:

Pè a Corsica (nacionalista, centro-esquerda e esquerda)…….…...45,4%

Direita regionalista……………………………………………………...15,0%

Lés Republicans (direita)………………………………......................12,8%

LREM (centro)…………………………………………………………...11,3%

Rinnovu (independentista, esquerda)…………………………………..6,7%

Corse Insoumise-PCF (esquerda)………………………………………5,7%

FN (extrema-direita)………………………………………………………3,3%

Registaram-se 2,1% de votos brancos e nulos.

A abstenção cifrou-se em 47,8%.

De acordo com a lei, as quatro primeiras (que ultrapassaram os 7%) passaram à 2ª volta, as duas seguintes (que se quedaram entre os 5 e os 7%) poderiam fundir-se com alguma(s) delas, enquanto a última (que ficou abaixo dos 5%) foi eliminada.

Perante este quadro eleitoral, colocaram-se várias hipóteses de fusão, mas nenhuma se concretizou. A lista do Rinnovu (Renovação) recusou juntar-se à do Pè a Corsica, apesar desta se situar, igualmente no campo nacionalista. Por seu turno, a da CI-PCF colocou imediatamente de lado a hipótese de se fundir com qualquer uma das restantes. Também não houve acordo para a união entre as listas da direita regionalista e do LR, apesar de ter havido conversações nesse sentido. Finalmente, os “macronistas” do LREM recusaram participar numa frente antinacionalista com as duas listas da direita. Logo, apenas participaram na 2ª volta as quatro primeiras, sem qualquer alteração.

Eis os resultados:

Pè a Corsica (nacionalista, centro-esquerda e esquerda)….56,5% (41 lugares)

Direita regionalista………………………………………………18,3% (10 lugares)

LREM (centro)……………………………………………………12,7% (6 lugares)

Lés Republicans (direita)……………………………….............12,6% (6 lugares)

A percentagem de votos brancos e nulos aumentou para 3,3%, enquanto que a abstenção se reduziu muito ligeiramente, cifrando-se em 47,4%.

A coligação vencedora, denominada Pè a Corsica (Pela Córsega), é constituída por duas formações, elas próprias resultantes da fusão de várias correntes do nacionalismo: a Femu a Corsica (Façamos a Córsega), autonomista, liderada por Gilles Simeoni, e a Corsica Libera (Córsega Livre), da esquerda independentista, de Jean-Guy Talamoni. Na campanha, não reivindicou a independência, mas apenas um estatuto de autonomia alargada, negociado com o governo central. Pretendem a co oficialização da língua corsa na administração, em pé de igualdade com o francês, a criação de um estatuto de residente, que implique a permanência na ilha durante um mínimo de cinco anos, para combater a especulação imobiliária (40% das residências são de segunda habitação), a autonomia fiscal, a devolução dos poderes legislativo e regulamentar, com atribuição de novas competências ao executivo territorial, em especial nas questões de desenvolvimento local, ambiente e cultura, bem como a libertação de todos os presos políticos corsos. Defendem, ainda, a coesão social e uma democracia mais participada. Apesar de não ter tido o apoio expresso dos dirigentes do Rinnovu, obteve o voto da esmagadora maioria dos seus eleitores na 2ª volta das eleições. Terá conseguido, igualmente, atrair grande parte do eleitorado da lista da esquerda CI-PCF. Relativamente ao último ato eleitoral, realizado em 2015, a lista registou uma forte subida, tanto na percentagem de votos (de 35,3 para 56,5%) como no número de eleitos (de 24 em 51 para 41 em 63). Este triunfo vem na sequência da histórica eleição, pelos nacionalistas, de três dos quatro deputados corsos nas legislativas de junho.

Ainda no campo nacionalista, há a destacar a subida eleitoral do Rinnovu, uma força política da esquerda independentista, dissidente da Corsica Libera, liderada por Paul-Félix Benedetti, que, ao contrário da coligação maioritária, fez campanha pela independência da ilha, defendendo a realização de um referendo sobre a questão. A sua lista, que obtivera apenas 2,6% dos votos em 2015, mais que duplicou a votação. Com 6,7% dos sufrágios, ficou muito perto de aceder à 2ª volta.

Ao invés, as formações unionistas mostraram as dificuldades por que passam as forças políticas tradicionais de França.

Começando pela extrema-direita, a FN sofreu uma pesada derrota, ao ver fugir mais de dois terços dos seus votantes de 2015: passou de 10,6 para 3,3% e perdeu os quatro representantes que possuía na assembleia.

Por sua vez, a direita clássica não conseguiu apresentar uma candidatura unificada. Assim, a lista dos LR, liderada pela independente Valérie Bozzi, contou apenas com o apoio oficioso do partido. Aliás, esta não cresce da 1ª para a 2ª volta, o que mostra o enquistamento do seu eleitorado. Já a lista da direita regionalista, encabeçada por Jean-Martin Mondoloni, contrária ao alargamento da autonomia (que, na sua opinião, constitui o primeiro passo rumo à independência), conseguiu melhorar o seu resultado no 2º turno, provavelmente devido à transferência de votos da FN. Em todo o caso, relativamente a 2005, em que as duas listas então apresentadas se fundiram na 2ª volta, obtendo 27,1% dos votos e 11 lugares em 51, as duas, em conjunto, apenas somaram 30,9%, embora tenham conseguindo uma maior percentagem de lugares: 16 deputados em 63 (10 da direita regionalista e seis do LR).

No centro, a lista do La République en Marche, partido do presidente Macron, foi encabeçada por Jean-Charles Orsucci, que, há quatro anos, liderara a da Córsega Social-Democrata, quedando-se, então, pelos 4,1% dos votos. Agora, obteve 11,3% dos votos na 1ª volta, beneficiando da ausência do centro-esquerda, por razões que explicaremos de seguida. Melhoraram ligeiramente entre os dois turnos, subindo para os 12,7%, talvez beneficiando do voto residual de alguns eleitores da lista da esquerda e de alguns abstencionistas, hostis à ideia independentista, o que lhes valeu a eleição de seis representantes. Por seu turno, os ecologistas centristas da pequena AEI (Action Écologiste Indépendente) retiraram a sua candidatura, alegadamente por dificuldades em financiar a campanha eleitoral.

Mas o pior ocorreu no centro-esquerda. Paul Giacobbi, antigo presidente do executivo e ex-membro do PRG (Parti Radical de Gauche), uma formação social-liberal, tradicionalmente aliada ao PS e bem implantada na região, foi condenado, no início deste ano, por desvio de fundos públicos. Apesar de aquele já não pertencer aos quadros dos “radicais de esquerda”, nem esse partido nem os socialistas apresentaram qualquer candidatura. Ora, em 2005, a lista por ele liderada obteve 18,4% dos votos no 1º turno, enquanto que as do PS e do PRG oficial ficaram desde logo eliminadas, ambas na casa dos 3%. Na 2ª volta, logrou a fusão com a lista da FG (Front de Gauche), que obtivera 5,6%, conseguindo essa lista conjunta 28,5% e a eleição de 12 dos 51 membros da assembleia (nove para a lista de Giacobbi e três para a da esquerda). Agora, a sua falta de comparência deixou muitos eleitores politicamente órfãos e explica, em parte, o aumento da abstenção.

Também a esquerda primou pela desunião. A lista apresentada sob a sigla Corse Insoumise-PCF e liderada por Jacques Casamarta foi repudiada por Jean-Luc Mélenchon, líder da France Insoumise, que acusou os comunistas de usurpação da identidade da FI. Algo que vem na sequência das divergências entre as duas forças políticas logo após as presidenciais. Não por acaso, o ex-candidato presidencial saudou a vitória de Simeoni, considerando-o o homem certo para desafiar o poder. Com 5,7% dos sufrágios, a lista obteve uma votação semelhante à da FG em 2015, mas a relação de forças não lhe possibilitou a fusão com qualquer outra. Assim, perdeu os três parlamentares que detinha.

Terminamos esta análise com a subida da abstenção face ao sufrágio de 2015: de 40,3 para 47,8% dos eleitores na 1ª volta e de 33,0% para 47,4% na segunda. A falta de comparência do centro-esquerda é, como já referimos, um dos fatores que ajuda a explicar esse crescimento no turno inicial, a que se soma, no segundo, o facto de não haver novidades face ao primeiro e de tudo estar praticamente decidido. Acrescerá, ainda, alguma desilusão com a política e o cansaço face à sucessão de atos eleitorais, recordando que, este ano, se realizaram eleições presidenciais e legislativas em França, ambas a duas voltas.

Resta, agora, saber qual o efeito deste êxito dos nacionalistas para o futuro da ilha. Para já, e face às reivindicações do novo executivo corso, com a legitimidade reforçada pelo seu esmagador triunfo eleitoral, a “bola” está do lado do governo de Paris. Se este revelar abertura, contribuirá para a pacificação do território; caso contrário, o futuro poderá ser conturbado e o independentismo crescer, a exemplo do que sucedeu na Catalunha. Simultaneamente, não será fácil para os independentistas a resolução dos grandes problemas económicos e sociais da ilha, como os elevados níveis de desemprego e pobreza e a luta contra a especulação imobiliária, a corrupção e o crime organizado, muitas vezes em ligação uns com os outros. Por outro lado, numa sociedade tradicionalmente organizada em clãs, as divergências são frequentes, pelo que ninguém aposta se a coligação vencedora se manterá unida ou se virá ao de cima a rivalidade entre Simeoni e Talamoni. Como disse uma das novas eleitas do Pè a Corsica, fazer um país (un paese da fà, slogan da coligação) é mais fácil de dizer do que de pôr em prática.

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