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A viragem à esquerda da Irlanda

A Irlanda contrariou a tendência europeia com os seus eleitores a virarem profundamente à esquerda. O Sinn Féin foi o principal beneficiário, mas o partido tem grandes escolhas para fazer nos próximos meses se quiser capitalizar este avanço.

Levou nove anos e três eleições mas o colapso financeiro de 2008 demoliu o sistema partidário irlandês. A Grande Recessão animou uma exigência popular de mudança que a velha classe política foi incapaz ou não quis satisfazer. A oito de fevereiro, a ordem estabelecida colapsou com a pressão tendo o Sinn Féin ultrapassado os partidos dominantes de centro-direita, cujo voto combinado caiu para um mínimo histórico.

Num tempo em que os partidos de esquerda na Europa estavam a perder terreno para os seus rivais de direita e do centro, a eleição irlandesa contrariou a tendência. Seja o que for que o Sinn Féin faça a seguir, este foi claramente um voto de esquerda. As sondagem à boca da urna mostraram que a saúde e a habitação foram os temas mais importantes para os eleitores. Dois terços queriam que o investimento em serviços públicos fosse priorizado sobre os cortes de impostos. 31% concordaram com a afirmação de que a Irlanda “precisa de uma mudança radical de direção”.

É possível que esta oportunidade para a mudança venha a ser desperdiçada. Mas, por enquanto, o impulso na política irlandesa está do lado da esquerda e os partidos tradicionais conservadores estão com o pé atrás. Uma eleição que era suposto dar tréguas à turbulência política da última década teve o efeito oposto.

O jogo de Varadkar

Não foi nada do que se esperava que acontecesse quando o líder do Fine Gael, Leo Varadkar, convocou eleições antecipadas em janeiro. O partido de Varadkar tinha passado os últimos quatro anos a governar em parceria com o seu rival tradicional Fianna Fáil. Ambos os partidos sofreram atritos grandes nas duas primeiras eleições pós-crise: em 2016, o seu voto combinado desceu abaixo dos 50% (em 2007 era de 69%). A única maneira dos partidos conservadores se manterem no poder excluindo o Sinn Féin foi através de um acordo de grande-coligação sem precedentes. O Fianna Fáil não assumiu quaisquer cargos governamentais mas os seus votos mantiveram Leo Varadkar no gabinete do Taoiseach.

Os dois partidos viram que este arranjo era contra-natura e queriam voltar à sua rotina mantida desde há muito, com um governo de centro direita a enfrentar uma oposição de centro direita e fazendo turnos ao leme do Estado. Varadkar pensou que tinha uma mensagem convincente para os eleitores: uma economia forte com algumas das mais altas taxas de crescimento da eurozona, um acordo de Brexit finalmente concretizado com o governo britânico e a promessa de estabilidade depois de anos de agitação. A média nas sondagens do Fine Gael em 2019 era de 29% e o partido apenas precisava de juntar alguns pontos para chegar a uma coligação de governo viável sem o Fianna Fáil.

As passadas eleições europeias e autárquicas correram bem para Varadkar. Nem ele nem o líder do Fianna Fáil, Micheál Martin, queriam fazer um acordo com o Sinn Féin, por isso ficaram agradados ao ver o partido perder dois dos seus três eurodeputados e quase metade dos seus autarcas. O Partido Verde irlandês, um parceiro de coligação bem mais dócil, ficou em terceiro lugar com o seu resultado eleitoral mais alto de sempre. O Sinn Féin parecia à deriva. A performance de 2016 – 14% – tinha sido a sua melhor desde os anos 1920, mas ainda assim tinha sabor a desilusão depois dos números das sondagens do ano anterior. Agora parecia que se iria provar que esse tinha sido o seu auge eleitoral.

Vontade de mudança

O resultado da eleição foi um choque para todos, incluindo para o Sinn Féin. A direção do partido estava preparada para uma batalha para manter os lugares que tinha e conduziu uma campanha defensiva. Mas antes de olhar para o Sinn Féin em particular, temos de perguntar porque é que havia uma vontade generalizada de mudança em busca de uma saída política.

Para começar, a tão vangloriada recuperação economia nunca esteve à altura da propaganda. Os cabeçalhos sobre o PIB são muito pouco fiáveis, porque as empresas multinacionais usam a economia irlandesa como uma lavandaria para transferir fundos. Em 2015, as estatísticas oficiais supostamente mostraram um crescimento do PIB de 26%. Nenhum ministro se gabou acerca dessa “história de sucesso” – era patentemente absurdo – mas continuaram com a bazófia quando as mesmas estatísticas questionáveis deram um número que pareceu pelo menos algo plausível.

O crescimento não era de todo fictício mas passava ao lado da maioria dos trabalhadores irlandeses. Na sondagem à boca das urnas de 8 de fevereiro, os eleitores foram questionados sobre se tinham sentido os benefícios da recuperação: 63% disseram que não.

Os jovens sublinharam a importância da habitação: quase dois quintos de entre as pessoas com menos de 34 anos disseram que este era o fator mais importante na decisão sobre o seu voto.

Os preços das casas tornaram impossível para a maior parte das pessoa nessa faixa etária comprar a sua própria casa, enquanto que os senhorios sobem as rendas para níveis de extorsão e a construção de hotéis engole o espaço residencial.

Quando a economia irlandesa colapsou em 2008, o governo dirigido pelo Fianna Fáil e o Fine Gael gastou dezenas de biliões de euros para resgatar bancos e empreiteiros que foram responsáveis pela recessão. O dinheiro público resgatou os sistemas financeiro e fundiário mas como quid pro quo não se impôs nenhuma mudança estrutural e certamente não houve nenhuma tentativa de restaurar o setor da habitação pública como alternativa ao privado.

Agora, os mesmos bancos que teriam ido abaixo sem ajuda do Estado cobram taxas de juro bem acima da média da eurozona, enquanto que políticos como Leo Varadkar alegam que o fundos abutre dos EUA dão uma contribuição valiosa para o mercado da habitação. É difícil culpar as forças de mercado impessoais pela escassez de casas acessíveis quando as pessoas cujas decisões foram responsáveis por isso têm nomes e caras bem conhecidas de todos.

Saído do passado

O Sinn Féin posicionou-se como o partido de eleição para aqueles que queriam registar o seu descontentamento. Ao contrário do Labour e dos Verdes, não tinha estado no governo durante a recessão e não tinha sido responsável pelo resgate dos bancos ou pelos cortes nos serviços públicos. O partido também tinha um alcance e uma base ativista muito mais alargados do que os grupos da esquerda radical da Irlanda, cujo apoio está concentrado nas cidades mais populosas. As primeiras sondagens de opinião revelaram uma vaga no sentido do Sinn Féin que se manteve até ao dia das eleições.

É agora o maior partido em percentagem (24,5%) e está igualado ao Fianna Fáil em lugares conquistados (37 cada um – apesar do Fianna Fáil ter um lugar extra uma vez que o porta-voz parlamentar é eleito automaticamente). O resultado teria sido até pior para os partidos conservadores se o Sinn Féin tivesse sabido quão bem a votação lhe iria correr: o sistema eleitoral irlandês tem círculos eleitorais com vários lugares e o Sinn Féin poderia ter escolhido candidatar-se a um lugar extra em vários distritos se tivesse apresentado mais do que um candidato.

Quando começou a parecer que o Sinn Féin estava a apanhar os partidos de centro-direita, estes responderam com uma barragem de ataques focados nas ligações do partido com o IRA, passadas e (alegadamente) presentes. Para sua grande frustração, nenhum destes ataques pareceu funcionar. Houve várias razões para isso.

O partido tem agora uma nova geração de líderes sem o passado do IRA: Mary Lou McDonald, Pearse Doherty, Eoin Ó Broin. Era mais fácil associar o Sinn Féin com o IRA quando toda a gente sabia que o presidente do partido, o antecessor de McDonald Gerry Adams, tinha sido uma figura central na liderança do IRA durante décadas. McDonald pode não agradar ao paladar de todos mas ninguém pode acusá-la de envolvimento direto numa campanha de guerrilha que era profundamente impopular no Sul.

Os políticos e comentadores da comunicação social que são hostis ao Sinn Féin também reduziram a força dos seus próprio argumentos ao ligar-se a uma agenda política impopular. Cada vez que invocavam a memória das atrocidades do IRA, vinha com uma adenda implícita: “e é por isso que tens de te conformar com senhorios exploradores e o serviço de saúde arrasado.”

Este ponto não se aplica certamente a toda a comunicação social da Irlanda. Suzanne Breen do Belfast Telegraph tem escrito durante décadas acerca do caso de Paul Quinn, um jovem do sul de Armagh que foi espancado até à morte por membros do IRA em 2007. O assassinato de Quinn tornou-se um assunto político quente durante a campanha e Breen estava no seu direito ao argumentar que o Sinn Féin só se devia culpar a si próprio. O partido podia ter agido muito mais cedo para se retractar e pedir desculpas pelos comentários de Conor Murphy, um dos seus dirigentes na Irlanda do Norte, que tinha sugerido que Quinn estava envolvido em atividade criminosa.

Mas as mais das vezes, casos genuinamente pungentes – como o de Jean McConville – foram instrumentalizados de forma descarada pelos políticos do Sul. Estes políticos estão muito menos ansiosos de falar do passado quando se trata de lidar com o governo britânico cuja máquina estatal tem o seu próprio recorde sinistro de atrocidades durante o conflito. O cinismo e a existência de dois pesos e duas medidas tornaram mais fácil ao Sinn Féin desviar-se de argumentos que poderiam ter-lhe causado dificuldades reais.

Totalmente político”

A outra linha principal de ataque sugeria que o Sinn Féin não é verdadeiramente um partido democrático porque a sua liderança ainda segue ordens do Conselho Armado do IRA. As respostas a esta alegação tendem a ser duramente polarizadas: as pessoas ou a levam a sério ou a descartam. Olhemos para o relatório de 2015 da Comissão Independente de Monitorização do governo britânico que escrutina as atividades de grupos paramilitares:

“As estruturas do PIRA (o IRA Provisório) continuam de forma muito reduzida. Isto inclui uma direção sénior, o Conselho do Exército Provisório (PAC) e alguns “departamentos” com responsabilidades específicas. Num nível mais baixo, há algumas estruturas regionais de comando... Os membros do PIRA acreditam que o PAC gere tanto o PIRA quanto o Sinn Féin através de uma estratégia abrangente. Consideramos que esta estratégia tem um foco totalmente político. Os membros do PIRA têm sido direcionados para apoiar ativamente o Sinn Féin dentro da comunidade, incluindo atividades como campanha eleitoral e distribuição de panfletos. Alguns membros do PIRA estão envolvidos na recolha de informação de interesse para o grupo incluindo detalhes da atividades do Republicanismo Dissidente e na tentativa de identificação de agentes infiltrados dos serviços secretos. Um pequeno número está envolvido no armazenamento do armamento remanescente de forma a prevenir a sua para o Republicanismo Dissidente. Membros individuais do PIRA continuam envolvidos em atividade criminosa como tráfico em larga escala e têm existido incidentes isolados de violência, incluindo assassinatos... o PIRA da era dos Troubles é coisa do passado. É nosso firme entendimento que a direção do PIRA continua empenhada no processo de paz e espera chegar a uma Irlanda unificada através de meios políticos. O grupo não está envolvido em levar a cabo ataques terroristas contra o Estado e os seus representantes.”

O julgamento das agências de segurança britânicas, às quais a IMC vai beber para obter a sua informação, não devem ser considerados o Evangelho. Mas o relatório do IMC vai ao encontro do que conhecemos de outras fontes. A afirmação “os membros do PIRA acreditam que o PAC gere tanto o PIRA quanto o Sinn Féin através de uma estratégia abrangente” é cuidadosamente ambígua: podem ser os membros do PIRA que estão a ser enganados aqui, não o público em geral, tal como foram enganados na questão da desativação no início dos anos 2000. De qualquer forma, essa “estratégia abrangente” é “totalmente política” e orientada para “chegar a uma Irlanda unificada através de meios políticos.” O IRA que lutou contra as forças de segurança britânicas nos anos 1970, 1980, 1990 é agora “coisa do passado”.

Ninguém espera seriamente que figuras como Tom Murphy, durante muitos anos dirigente do Provisório no Sul de Armagh, ou o ex-comandante de Belfast Brian Gillen saiam da reforma, reconstituam o IRA enquanto força de combate e façam guerra ao Estado britânico.

Quando as autoridades irlandesas acusaram Murphy de fuga ao fisco em 2015, foi um claro sinal de que já não o consideravam uma ameaça. O Sinn Féin certamente tem uma possibilidade muito maior de alcançar a unidade da Irlanda através de meios políticos do que através do regresso à falhada campanha militar.

Os críticos do Sinn Féin acusam o partido de planear descartar-se do Tribunal Criminal Especial (SCC) sem júri, supostamente a mando dos seus chefes do IRA. Originalmente criado para lidar com organizações subversivas, o SCC tem desde então alargado o seu âmbito para cobrir o banditismo. A Aministia Internacional e o Conselho Irlandês para as Liberdades Cívicas apelaram à sua abolição.

A questão do SCC traz uma outra luz à conversa de que a direção do Sinn Féin segue as ordens do IRA. O partido diz que quer nomear uma figura judicial de destaque para determinar se o tribunal ainda é necessário e que irá cumprir o que quer que seja sugerido. Isto quer dizer que há dois obstáculos: primeiro, o Sinn Féin teria de negociar um acordo de coligação com outros partidos que permitisse um inquérito; depois, o próprio inquérito teria de recomendar a abolição do SCC. O Conselho do Exército Provisório pode dar as ordens que quiser mas o partido ainda tem passar pelo mesmo processo políticos que todos os outros.

O centro em suspenso

O Sinn Féin não era o único partido a competir pelo voto de esquerda. Os seus rivais podem ser divididos em duas categorias amplas, o centro-esquerda e a esquerda radical. O Partido Trabalhista Irlandês costumava dominar o primeiro destes nichos políticos, mas teve um resultado terrível, ganhando menos de cinco porcento dos votos. O melhor resultado do Labour ocorreu em 2011 com uma plataforma anti-austeridade, mas renegou-a imediatamente entrando em coligação com o Fine Gael, alienando assim os seus novos apoiantes. Cinco anos mais tarde, perdeu 30 dos seus 37 lugares. Desta feita não houve recuperação, apenas declínio continuado.

É difícil de vislumbrar para onde é que o Labour pode seguir a partir daqui. O partido parece desprovido de novo pensamento político. Os Social-Democratas, um grupo lançado por dois políticos saídos do Labour, tem agora o mesmo número de deputados, com algumas caras novas, recém-eleitas para articular a sua mensagem. Pode-se ter a mesma oferta de uma política de centro-esquerda muito similar sem nenhuma da bagagem recente do Labour: podemos assim acabar por assistir a uma oferta de aquisição deste pelo novo partido se o Labour continuar num impasse.

Os Verdes tiveram um dia melhor do que o Labour, com 7% dos votos e 12 lugares. Contudo, o resultado terá sido uma deceção para o partido depois do crescimento nas eleições europeias do ano passado. Esse aumento de apoio refletia um maior sentido de urgência acerca das alterações climáticas, especialmente entre as pessoas mais novas. Mas os Verdes são um veículo profundamente inadequado para este sentimento: os partidos da esquerda radical têm um registo muito melhor no que toca a temas ambientais.

Quando o líder do Partido Verde, Eamon Ryan, falou nos debates televisivos houve uma discrepância notável entre o seu diagnóstico preciso das crises climática e de biodiversidade e as soluções modestas, graduais que avançou. O partido de Ryan não apresenta medidas equivalentes ao programas ecologistas ambiciosos recentemente construídos pelas forças de esquerda na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.

A esquerda radical

Mais à esquerda, a aliança Solidarity – People Before Profit manteve cinco dos seis lugares ganhos em 2016, enquanto que independentes de esquerda como Thomas Pringle e Joan Collins também mantiveram o lugar – um resultado muito melhor do que parecia possível depois das eleições locais do ano passado.

Estas vitórias muitas vezes aconteceram por pequenas margens e os grupos socialistas podem não ter tanta sorte para o próxima vez. Mas por enquanto, a esquerda radical preservou a sua base na política nacional. Isto quer dizer que há algum espaço para respirar refletindo sobre aquilo em que acertaram e em que falharam na última década.

No seu melhor, as forças da esquerda radical da Irlanda jogaram num campeonato acima do seu. Estiveram envolvidas centralmente nas lutas contra as taxas da água, o movimento anti-austeridade mais importante depois de 2008, que mobilizou largos números de trabalhar e forçou o governo a descartar os seus planos. Foram também os únicos atores políticos com uma tomada de posição consistente pró-escolha, antes do trabalho das feministas ter tornado conveniente aos grandes partidos entrarem a bordo desse barco.

Em ambos os casos, o Sinn Féin assumiu inicialmente uma linha evasiva e equívoca e a pressão organizada da sua ala esquerda teve um impacto verdadeiro. O voto em candidatos da ala esquerda bem sucedidos em Dublin e Cork foi construído ao longo de anos de ativismo nas comunidades que tinha sido ignorado e abandonado pelos políticos convencionais.

No lado do débito, a fragmentação organizativa tornou difícil para a esquerda radical desenvolver uma plataforma e identidade política coesas. Em 2011, os grupos socialistas concorreram juntos como Aliança de Esquerda Unida (ULA) mas esta rompeu-se num par de anos. Uma das componentes da ULA, o Socialist Party, apresentou então candidatos em nome da Aliança Anti-austeridade, que se tornou por sua vez Solidarity. Até para as pessoas que seguem a política de perto, estas idas e vindas devem ter parecido muito confusas.

Um apresentador de televisão perguntou a Ruth Coppinger do Solidarity como é que ela esperava construir um movimento de massas socialista quando o seu próprio partido não tinha sido capaz de manter um dos seus três deputados na organização desde 2016 – um número rasca talvez, mas de qualquer forma significativo. O problema subjacente é a falta de uma cultura organizativa pluralista, o que quer dizer que quando surgem diferenças políticas de monta isso tende a resultar em cisões.

Estes problemas não se revelaram fatais desta vez. Contudo, isso não é argumento para sermos complacentes: se houver uma nova eleições num futuro próximo, o Sinn Féin tentará maximizar os seus lugares apresentando candidatos extra e o partido ficaria muito feliz em afastar nesse processo os seus rivais socialistas.

A esquerda radical da Irlanda tem uma contribuição vital a fazer, no desenvolvimento de um programa ecossocialista que vá além da abordagem tímida dos Verdes de forma a integrar as exigências económicas da classe trabalhadora com um plano para a descarbonização. É muito importante que mantenha uma voz na política nacional.

Objetivos primários

O que vai o Sinn Féin fazer com este mandato sem precedentes? A escolha tática do partido vai emergir do seu caráter político subjacente. Uma das estrelas do Sinn Féin durante a campanha eleitoral foi Eoin Ó Broin, o porta-voz do partido sobre questões de habitação, que representa o círculo de Dublin oeste. Antes de ser deputado, escreveu um livro importante Sinn Féin and the Politics of Left Republicanism (2009) que olhava para as sucessivas tentativas do século passado para misturar o republicanismo com a ideologia de esquerda.

Como Ó Broin notou, o seu próprio partido tinha uma hierarquia clara de objetivos políticos, com a reunificação nacional a ser prioritária relativamente ao socialismo. Isto queria dizer que a versão do Sinn Féin de uma política de esquerda, “relegada para um ponto futuro da luta, seria sempre sub-desenvolvida, uma vez que as necessidades muito mais imediatas da luta ganhavam precedência.” Ó Broin instava o seu partido a “acabar com a hierarquia de objetivos implícita na ideologia , política e estratégia do partido”, colocando o socialismo democrático num patamar equivalente à unidade irlandesa. Contudo, a ordem hierárquica que ele criticava permanece firmemente instituída.

Não é que haja algo reacionário ou indesejável na ideia de uma Irlanda unida. O acordo de partição de 1920 foi um fiasco e é perfeitamente legítimo que o Sinn Féin queria ultrapassá-lo. O acordo de Sexta-feira Santa (Good Friday Agreement - GFA) contém um mecanismo pactuado para aí chegar através de uma votação fronteiriça. As mudanças demográficas e a crise do Brexit tornaram a ideia de um voto a favor de uma unidade irlandesa parecer muito mais plausível do que era na altura em que o GFA foi assinado.

Mas a “hierarquia de objetivos” que Ó Broin descrevia significava qu o Sinn Féin se pode mover para a esquerda ou para o centro, dependendo do que pareça mais vantajoso no momento. O Sinn Féin é um partido nacionalista de esquerda para o qual o nacionalismo vem em primeiro lugar. Isto é, em última análise, muito mais significativo do que o facto de o seu programa eleitoral de 2020 ser bastante menos radical do que, por exemplo, os manifestos recentes do Partido Trabalhista britânico, que continham propostas muito mais ambiciosas para a mudança estrutural através de um aumento da propriedade pública.

Exposição sulista

O tempo de governo do Sinn Féin a norte da froneira não resultou em nenhuma reforma social-democrata significativa, apesar do partido não ter pago um preço eleitoral significativo por isso. Contudo, as coisas serão provavelmente muito diferentes no Sul se o Sinn Féin não satisfizer o desejo de mudança que foi o motor do seu crescimento recente.

No Norte da Irlanda, o Sinn Féin é essencialmente um partido nacionalista, cuja função é representar uma comunidade que sofreu durante muito anos a exclusão política. Enquanto defender os interesses dessa comunidade, enquanto promover o objetivo de longo prazo de uma Irlanda unificada, terá uma base sólida de apoio, por mais pequenos progressos que faça na sua agenda económica de esquerda que não foi nunca o motivo central de atração do partido.

Em qualquer caso, o Sinn Féin pode sempre assinalar a falta de poderes de decisão: a Irlanda do Norte continua a ser uma região no interior do Reino Unido, não um Estado com o seu próprio orçamento nacional.

O Sinn Féin não terá a mesma margem de manobra no Sul: ou cumpre pelo menos algumas das suas promessas ou pode muito bem ser que os seus votantes encontrem uma nova casa, tal como o fez o eleitorado do Labour em 2011 quando desertou do partido depois deste ter formado governo com o Fine Gael e abandonado o seu programa anti-austeridade. A volatibilidade da política eleitoral na Irlanda dá para ambos os lados.

A reforma mais importante prometida pelo Sinn Féin durante a campanha eleitoral foi a sua plataforma sobre habitação, desenvolvida por Eoin Ó Broin, que insta a um congelamento de emergência das rendas, um limite às taxas de juros nas hipotecas e a construção de habitação pública numa escala que não foi vista nas últimas décadas. Se implementada, esta plataforma teria um impacto duradouro na qualidade de vida de um número amplo de pessoas (e provavelmente iria segurar os seus votos no Sinn Féin, muito como o programa de construção de habitação própria desenvolvido pelo Fianna Fáil nos anos 1930 e 1940).

Mas também prejudicaria o interesse de todos aqueles que beneficiam do arranjo atual, incluindo os bancos e os grandes poderes da indústria de construção irlandesa. O mesmo é válido para qualquer outra política social-democrata. Para aumentar o seu poder interno, as forças conservadoras vão também recrutar o apoio da União Europeia, cujas regras orçamentais irão citar como se fossem uma barreira insuperável para qualquer agenda económica progressista.

Tentar fazer reformas significativas numa aliança de governo com o centro-direita é um caminho para lado nenhum – especialmente uma vez que estes partidos estarão ansiosos para reduzir a dimensão do Sinn Féin, afundando os seus projetos e associando-o com medidas impopulares. O aguçado sentido de pragmatismo político do Sinn Féin pode bem ser o bastante para impedir o partido de seguir esse caminho, mesmo que a sua ideologia central o permita. De qualquer forma, a estabilização da política irlandesa tão ardentemente desejada pelos pilares do país como Liam Mellows lhes chamou numa ocasião, não chegou ainda.

Texto de Daniel Finn publicado na Jacobin.

Tradução de Carlos Carujo

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