You are here

Violência política na Venezuela, um jogo sem destino

Presidente Maduro denuncia que está em curso um golpe de Estado contra a democracia. Mas há quem acuse o governo de usar pretextos para suspender direitos, no quadro de uma situação económica difícil, com inflação galopante e escassez de produtos básicos. Por Humberto Márquez, IPS.
Maduro acusou os meios de comunicação internacionais de instigar à violência ao transmitir relatórios e declarações sobre os acontecimentos. Foto AVN

Caracas – A violência que reapareceu esta semana nas ruas da Venezuela, com manifestações da oposição na capital e outras 12 cidades, pressagia um endurecimento do governo e dos seus adversários, num momento em que o ainda jovem mandato de Nicolás Maduro ensaia um jogo de acerto e erro diante de uma economia em crise.

Três homens, dois estudantes e um membro de um coletivo pró-governo, morreram baleados no final de manifestações em Caracas, na quarta-feira 12, num incidente que provocou dezenas de feridos e uma centena de presos, e denúncias de que estes estão incomunicados, sofrem torturas e tratamentos cruéis.

Os protestos, paradoxalmente, foram iniciados por estudantes a denunciar que a insegurança e a violência criminosa nas ruas tinham atingido os seus locais de estudo.

“Estamos a enfrentar um golpe de Estado em desenvolvimento contra a democracia e o governo que presido”, advertiu Maduro, eleito em abril para substituir o seu falecido correligionário Hugo Chávez (1954-2013), no seu primeiro discurso depois de ser informado que pessoas não identificadas dispararam contra manifestantes no centro de Caracas.

O governante acusou “grupos fascistas de ultradireita” que seguiriam “o mesmo guião de abril de 2002”, quando uma gigantesca marcha da oposição em Caracas culminou num tiroteio que causou a morte de 19 civis e desencadeou um breve golpe de Estado contra Chávez.

Acusações cruzadas

“As circunstâncias atuais são diferentes, e o governo ou não sabe onde está parado, o que é difícil de acreditar, ou usa a explosão da crise para justificar a suspensão de garantias (direitos dos cidadãos que constam na Constituição) e governar sob um estado de exceção”, disse à IPS o sociólogo Carlos Raúl Hernández, professor do doutoramento em ciências políticas da Universidade Central de Venezuela.

Para Hernández, o apoio massivo ao protesto estudantil obedece ao “enorme mal-estar que cresce em setores do próprio chavismo, devido à megacrise económica e a péssima forma como o governo está a lidar com ela”.

O panorama económico é dominado por uma das maiores taxas de inflação no mundo (56 por cento anual, mais de 70 por cento no item alimentos) e uma agoniante escassez de produtos básicos, desde leite e farinhas até papel higiénico e jornais, passando por medicamentos, bilhetes aéreos, produtos industriais e peças para veículos.

Enquanto o Estado restringe cada vez mais a saída das divisas que obtém através das exportações petrolíferas, e toma medidas pontuais de inspeção e de punição contra empresas comerciais e industriais, o empresariado exige o pagamento de dívidas milionárias contraídas sob o regime do controlo de câmbio.

Para a historiadora Margarita López Maya, do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, “perdidos os encantamentos produzidos pelo verbo e a presença do líder carismático (Chávez), a realidade nada prometedora tornou-se crua e impossível de ocultar”.

“Vivemos a ondulação produzida por mal-estares e reivindicações não satisfeitas da sociedade venezuelana, que se vêm acumulando nos meses recentes, produto de desarranjos económicos e sociais já de longa data”, assinalou López Maya.

Protestos dos estudantes

Com esse mal-estar como pano de fundo, os estudantes receberam apoio de outros cidadãos quando começaram a manifestar-se no início de fevereiro nos Andes do sudoeste.

Três jovens, acusados de atacar a residência do governador regional, foram enviados para uma prisão em Coro, no extremo noroeste, para serem julgados. Os protestos, então, recrudesceram.

Dirigentes de um setor da coligação oposicionista Mesa de Unidade Democrática convocaram manifestações na quarta-feira 12, bicentenário de uma batalha da guerra de independência contra a Espanha, na qual jovens estudantes reforçaram o exército patriota e conseguiram a vitória.

A data comemora-se como o Dia da Juventude, o que significou uma sobrecarga emotiva e política às manifestações e ao seu desenlace violento.

Nesta sexta-feira 14, enquanto prosseguiam protestos de rua em Caracas e outras cidades, desafiando o anúncio de Maduro de que só seriam permitidas manifestações previamente autorizadas, anunciou-se que os jovens presos em Coro foram libertados.

Tratar-se-ia de um primeiro passo para tirar força ao protesto, e coincide com a chegada de numerosos apelos da comunidade internacional em apoio ao diálogo e ao respeito dos direitos de todas os lados envolvidos no conflito político venezuelano.

Na Venezuela, organizações de direitos humanos como a Provea e a Rede de Apoio pela Justiça e a Paz puseram ênfase na investigação e na punição dos responsáveis pelos mortos e feridos que se seguiram aos protestos do dia 12.

Com abundantes depoimentos, fotografias e vídeos, os jornalistas no terreno documentaram a irrupção de grupos supostamente afetos ao governo, chamados genericamente de “coletivos”, que desencadearam a violência e usaram armas de fogo nos locais onde pessoas foram atingidas.

Maduro acusa rede de TV colombiana

Na partilha de culpas, Maduro acusou os meios de comunicação internacionais de instigar à violência ao transmitir relatórios e declarações sobre os acontecimentos.

O mandatário ordenou que fosse suspensa das redes de televisão por cabo a estação de notícias NTN24, com sede em Bogotá, e dirigiu advertências severas à agência francesa de notícias AFP.

Apesar da intensidade das imagens, Hernández não acha que as manifestações levem a uma mudança política substancial, e talvez apenas a solidificar ainda mais as posturas e o espírito de corpo das partes em confronto.

“Essas mudanças são obtidas pelas mobilizações de massas apenas quando estão combinadas com fatores de poder ou com a ocorrência de um golpe militar, o que não se vê hoje na Venezuela”, disse Hernández. “Desse ponto de vista, trata-se de jogos de rua sem destino”, concluiu.

14/2/2014

Publicado pela IPS

Artigos relacionados: 

Termos relacionados Internacional
(...)