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As vinhas da barbárie

215 trabalhadores foram encontrados em situação próxima da escravatura em Bento Gonçalves, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, a trabalhar na colheita de uvas e abate de frangos. Israel Dutra mostra como a estrutura social brasileira articula formas de garantir, pela exploração do trabalho, os ganhos dos donos de terra e da ordem social vigente.
Trabalhadores resgatados de "situação análoga à escravidão". Foto do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul/Facebook.
Trabalhadores resgatados de "situação análoga à escravidão". Foto do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul/Facebook.
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A operação que revelou ao país a existência de trabalho escravo na produção vitivinicultora na serra gaúcha é um sintoma profundo. Apesar dos esforços de setores dos meios de comunicação social para tratar como “excesso” ou como ponto fora da curva, o caso das vinícolas é emblemático para entender a realidade de conjunto do nosso país.

A estrutura social brasileira, a ser percebida a partir dos conceitos do desenvolvimento desigual e combinado, articula formas variadas para garantir a exploração do trabalho, os ganhos dos donos de terra e empresas, portanto, a ordem social vigente. Convivem o arcaico e o moderno na combinação de formas para assegurar a maximização dos lucros – envolvendo a trama, terceirização, desregulação e trabalho escravo.

O moderno aparece na capacidade produtiva e, evidentemente, no lucro das três empresas vinícolas envolvidas, Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi. Em 2022, a Aurora faturou R$ 756 milhões, barendo mais um recorde, após quatro anos sucessivos. A Garibaldi declarou R$ 256 milhões; por fim, a faturação da Salton ficou em R$ 500 milhões. Os luxuosos cenários das videiras da serra gaúcha escondem rios de sangue, violência e exploração contra trabalhadores, boa parte deles migrantes de outras partes do país.

Boa parte da produção viticultora encontra-se em regiões como a gaúcha, com alto investimento em maquinaria moderna. Houve um incremento do consumo correspondente ao próprio crescimento em geral da prosperidade das vinícolas. O vinho chegou a ser considerado a “bebida da pandemia”, sendo que o Brasil representa 2% da produção total de vinho no mundo.

Mais de 200 trabalhadores em condição análoga à escravidão foram libertados em 22 de fevereiro, numa operação conjunta da Polícia Federal (PF), Polícia Rodoviária Federal (PRF) e Ministério do Trabalho. A empresa responsável pelos contratos era a terceirizada Fênix. A maior parte dos resgatados provinha do nordeste, sobretudo da Bahia.

A descrição das condições de trabalho não pode ser classificada senão como barbárie. Jornadas que chegavam a 14/16 horas por dia; dormitórios improvisados, falta de condições básicas nos banheiros; nenhuma refrigeração; castigos físicos; violência para impedir qualquer reclamação ou denúncia.

Mas como é possível, diante de tantos absurdos, que grandes empresas com dita responsabilidade social tenham sido protagonistas desta barbárie? A resposta aponta para os elementos mais gerais, uma imbricação entre a representação política, os mecanismos utilizados, a organização patronal e mesmo o discurso mediático e ideológico de importantes empresas de comunicação. Esta é a base que busca legitimar a degradação social do trabalho no Brasil do século XXI.

No âmbito da representação política, quem levantou a cabeça para defender, com argumentos racistas e xenófobos, foi o vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel. O seu discurso fascista construiu pontes entre a ideologia do ódio e a justificação da exploração das vinícolas. De forma correta, o PSOL gaúcho pediu imediatamente a sua cassação e prisão. Nos dias seguintes, protestos foram realizados na Câmara de Caxias do Sul, impedindo de forma enfática qualquer relativização das suas declarações racistas.

Na questão da violência, pessoas armadas, em geral ex-polícias recrutados para disciplinar o trabalho, muitos expulsos das corporações por má conduta, infligiam castigos a quem não se submetesse ao regime de trabalho. Tais figuras amparam-se em empresas de segurança que são, na verdade, esquemas de fachada para milícias. Mais uma vez, pela via da violência, encontram-se diferentes tentáculos da extrema-direita.

A associação comercial de Bento Gonçalves não fez por menos: emitiu uma nota em que responsabilizava a escassez de força de trabalho para sustentar a utilização de trabalho análogo à escravatura.

Setores dos meios de comunicação local demoraram para divulgar o nome das empresas envolvidas, tentando preservar as suas relações, contribuindo para “atenuar” a situação, acobertando os verdadeiros responsáveis.

E, por fim, há que se desconstruir o “mito do agro”, espalhado por todo país, que assenta bases ideológicas e materiais para este tipo de exploração, concatenada com o núcleo mais ativo das ações golpistas que a extrema-direita busca produzir nos últimos anos.

A barbárie, contudo, não está só nos vinhedos da serra gaúcha. A agroindústria Colombo, da cidade de Pirangi, em São Paulo, foi apanhada em flagrante com 32 trabalhadores em condições análogas à escravatura. Em Buri (SP), uma família acabou de ser resgatada numa grande fazenda produtora de leite, também vítima do mesmo crime. Em dez anos, o Brasil conserva a triste marca de mais de 13 mil pessoas resgatadas de condições análogas à escravatura, sendo 1.930 em 2021 e apenas nesse ano foram 523 casos já registados.

Há um padrão que se verificou na serra gaúcha: a tríade conformada pela degradação do trabalho, o racismo e a xenofobia. As portas da terceirização escancaram uma degradação maior do trabalho. O aspeto do racismo estrutural é constituinte na força de trabalho do país, e dados os deslocamentos, a questão migrante engloba xenofobia por parte de patrões e agências terceirizadas.

O amplo repúdio mostra uma consciência geral latente que precisa ser convertida em ação. Combater a expressão política, cassando e prendendo Sandro Fantinel; apoiar as medidas que juristas do trabalho têm vindo a impulsionar como no manifesto da Associação Brasileira de Juízes pela Democracia, com a imediata expropriação das terras das vinícolas, com base expressa no Artigo 243 da Constituição.

Além disso, duas batalhas de longo prazo: uma luta em defesa dos direitos no mundo do trabalho, que passe pela revogação da reforma laboral e pelo fim das terceirizações, tendo como objetivo contratos estáveis e com liberdade associativa e de reivindicação para todos os que vivem do trabalho. Por outro lado, combater o “mito do agro” como uma das formas de desbolsonarizar o país, atacando a existência do latifúndio e garantindo uma reforma agrária capaz de redistribuir a terra.

As vinhas da barbárie trazem ira e solidariedade para os debaixo. Não podemos aceitar o inaceitável.


Israel Dutra é sociólogo, secretário-geral do PSOL, membro da Direção Nacional do partido e do Movimento Esquerda Socialista.

Texto publicado originalmente na revista Movimento. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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