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Veias Abertas da América Latina, 50 anos

Meio século depois de ter sido escrito, o clássico de Eduardo Galeano continua atual. Permite compreender as engrenagens do colonialismo, dos “descobridores” aos “credores internacionais”, e e sugere caminhos para superar 500 anos de exploração. Por Silvane Ortiz.
Pormenor da capa de uma das edições de As veias abertas da América Latina.
Pormenor da capa de uma das edições de As veias abertas da América Latina.

Complexa e audaz, porém, deveras instigante. A tarefa de resenhar clássicos, lidos e destrinçados, completos desde a sua primeira edição, não é das mais simples. Contudo, o exercício oferece-nos a possibilidade de revisitá-los sob a ótica de nossa realidade atual, mergulhando, uma vez mais, na sua profundidade argumentativa.

A obra do uruguaio Eduardo Galeano, As Veias Abertas da América Latina, que inaugura a década de setenta, parece insistir, tristemente, em manter-se terrivelmente atual, dolorosamente contemporânea, impiedosamente factual. O autor procede à sua análise sobre o subcontinente americano no prelúdio da sua frutuosa carreira literária (no lançamento, Galeano contava apenas 31 anos) e, talvez por conta, um tanto, disso, a sua leitura mantém o fulgor e o furor da sua juventude e o reflexo de uma geração disposta a não se calar. É sabido que o autor, já septuagenário, teria renegado a obra ou, pelo menos, refutado o seu aspecto teórico-fundante. É possível, o passar do tempo, cotejado às transformações pessoais do indivíduo, possui o condão da subversão prismática do passado. Facto é que o livro nunca perdeu o seu apelo e relevância.

Na primeira parte, o texto dedica-se à realização de um acurado levantamento histórico das condições e ações que levaram à destruição cultural e posterior dominação física e territorial do sul da América. Nesse primeiro assalto, sob domínio europeu, terra e povo acabam por converterem-se em insumos e instrumentos para o apogeu de outras terras e povos, do além-mar. Algumas passagens ganham tal vivacidade que é possível sentir o embrulhar nauseante experimentado ao presenciar-se a indignidade da vileza moral. Galeano narra e descreve, com crueza, momentos e movimentos decisivos que vieram a condicionar uma sociedade a um futuro de servilismo (modus vivendi atrelado a necessidades alheias) fruto direto da imoralidade colonial. Os grilhões da colonização foram de tal modo entranhados no id latino-americano que, mesmo muito depois dos seus processos de “independência”, Nações mantiveram-se cativas. No segundo round, assaltando esse novo livre gozar, o Norte acosta-se e derrama, sem licença, a sua democracia e liberdade. Nisso, abocanha a sorte e o nome americano. Salvo instantes oníricos, a subserviência senhoril é o que segue ligando essas porções “descoladas” de terra.

É justamente esse o gancho que o autor utiliza para configurar a condição econômica contemporânea dos países da Latinoamerica, sobre a qual se debruça a segunda parte da obra.

Uma análise econômica, por si só, exige um rigor teórico assaz elevado. Quando o panorama a ser traçado ainda exige profundo conhecimento histórico-social, a tarefa ganha dimensões continentais. E é embrenhado nesse emaranhado de histórias que insistem em se repetir, que Galeano encontra perversas similitudes nas oligarquias, usurpadoras das terras e do poder, que nunca deram chances ao destino (manifesto?) da América, ao sul do continente. Em looping eterno, os asseclas dessa degenerada aristocracia passaram, como herança, a deformidade de caráter que possibilita, desde sempre, o saque inescrupuloso do futuro de gerações de conterrâneos desterrados. A mácula desse sadismo moral nunca impediu que, pelos mais abjetos meios, a elite dominante assim se mantivesse. Quando os povos despertavam para o sonho de um futuro menos desumano, logo eram postos a dormir, à força de golpes. E esses golpes, perpetrados por braços locais (regidos, a distância segura, por uma única inteligência nortenha), aconteceram por todo o centro-sul do continente. Onde o povo ousava levantar-se, caía a cortina de ferro do autoritarismo despótico.

E ilustrando, detidamente, cada lugar e momento desses processos cíclicos de pilhagem (fruto) e contenção (potência), Galeano põe a nu a sanha vampiresca de “descobridores” e “credores” sobre o corpo e sangue latino-americanos. A América austral, repousando sob cabresto perpétuo, engendra fortuna sem nunca dela usufruir. As suas terras produzem sob um indelével usufruto externo. E o nosso país é um exemplo cruel desse sistema de apropriação do público. Ao narrar, em vários trechos, factos ocorridos no Brasil, sob o odioso período da ditadura militar, o autor apresenta aberrações que, ainda hoje, fazem parte da ignobilidade do nosso Estado nacional. O Brasil, e o seu patriarcado patrimonialista, vive de reforma em reforma, a repetir nomes e costumes. O que experimentamos sempre foi mais uma aristocracia, com o poder de decisão recaindo sobre as elites oligárquicas, do que uma democracia “plena”.

Parece claro que o que ocorre(u) na América Latina, em especial, não pode ser visto como um regime, realmente democrático. O que vemos é, e talvez não só por essas bandas, uma democracia tutelada, onde o poder repousa, sempre, no mesmo lugar onde se acumulam as fortunas. O ideal democrático serve apenas como pano de fundo para um acalanto de reivindicações (desejos e direitos). Sempre que a estabilidade estrutural da rota do poder é ameaçada, cada vez que uma picada é desbravada com o suor de braços que não se cruzam, esta pseudo-democracia é posta à terra e o trajeto é corrigido, de volta à bizarria epidérmica de trilhas pavimentadas com sangue e lágrimas.

Desde o desmembramento de terras à divisão de povos cultural e territorialmente hermanados, a conquista e espoliação da América Latina seguiu, à risca, o manual de guerra do “dividir para conquistar”. Inviabilizando vínculos e criando dependências, organizações internacionais, em especial as ligadas às finanças, bancos mundiais, servindo propósitos nada universalizantes, mantêm o ideário de dominação maquiavélico mais vivo do que nunca. Com poderes principescos, nações ricas continuam a extorquir e manipular a sorte dos seus “irmãos” menos afortunados.

Neste contexto, o sistema de mercado deve ser global, as elites são internacionalistas, desconhecem fronteiras. Já nas camadas trabalhadoras, o povo embrutecido por políticas que o contemplaram, tão somente, com a ignorância, nessas deve ser arraigado o mais simplório e estúpido ufanismo.

A união popular apavora, a dissociação sempre foi o modelo sob contínuo fomento. A maneira de manter a coleira justa é nunca se deixar conhecer a potencialidade da matilha. A perene instabilidade do terreno social mantém a atomização do corpo desunido. E essa massa pulverizada é campo fértil para a entropia. O belicismo cultural é um combustível para o crescimento da mediocridade. Aos corpos que já não mais encontram saciedade para seus anseios mais básicos, o ódio é oferecido como mantimento. Instaurado o estado de anomia, só resta a autofagia para esse organismo que já não fica em pé.

Nesse momento, de onde escrevo, o Brasil (e o mundo) vive uma situação que costuma definir gerações. Sob uma pandemia, um vírus devasta vidas, e os pobres, os negros, estão, como sempre, na linha de frente do descuido estatal. São, ainda, a parte mais tensa dessa corda que enlaça pescoços com o nó da desigualdade. Concomitantemente, encontramo-nos sob o mais perigoso governo, eleito, da nossa frágil tradição democrática. O país, carente de freios (e contrapesos), está desgovernado, encabeçado por um acéfalo com ganas ditatoriais. Sem nenhum compromisso com a ética ou, mesmo, respeito à lógica, o único ethos que parece lhe servir é o de um moralismo dissimulado, baseado na retórica esvaziada do absurdo constante. Entre torções e distorções, a verdade é velada sem desvelo. A disputa pela manutenção da autonomia da esfera pública, e defesa à sua gradual cooptação, está em aberto.

É tempo de mudanças. Ocupamos, como sociedade, um espaço histórico de onde ecoarão todas as nossas atitudes e, possivelmente ainda mais alto, o nosso silêncio. Um posicionamento é necessário e o que a vida, como mais alto bem, inalienável e universal, parece exigir de nós é, mais do que nunca, coragem para ação.


Silvane Ortiz é estudante na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Texto publicado no Outras Palavras. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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