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Uma viagem pelo mundo em 2019 (8): A América do Sul

Terminamos aqui a nossa viagem pelo mundo, iniciada em Portugal e simbolicamente terminada no Brasil. Dela podemos concluir que o mundo, em 2019, é um lugar perigoso, onde as tendências autocráticas, os nacionalismos agressivos, a intolerância, o ódio e a insensibilidade social tendem a crescer. Por Jorge Martins.
Foto Wikimedia.

As Guianas: Uma grande diversidade étnica e muitos problemas políticos e sociais

Apesar de se situarem numa pequena planície costeira do continente sul-americano, coberta, nas áreas mais interiores, por grandes florestas tropicais, as Guianas são, do ponto de vista cultural, uma extensão das Caraíbas, diferindo dos estados latino-americanos pelo facto de terem sido colonizadas por britânicos, holandeses e franceses e não pelos países ibéricos, como os restantes. Para além dos escravos africanos, foram para aí atraídos, pelos colonizadores, imigrantes asiáticos, provenientes da Índia, Indonésia e Indochina, o que torna estes países multiétnicos. Esse é um fator que muito condiciona as políticas locais, pois os afrodescendentes e os indodescendentes desempenhavam diferentes papeis sociais durante a colonização. A luta pela manutenção ou pela alteração do seu estatuto por parte de ambos levou a choques entre eles, o que originou frequente instabilidade política na Guiana e no Suriname. A outra continua a estar sob o jugo colonial francês.

A Guiana é uma antiga colónia britânica, independente desde 1966. A sua população é constituída por indianos (40%), negros (30%), mestiços (20%) e ameríndios (10%), valores aproximados. Antes da independência, Cheddi Jagan, um indo-guianense, fundou o Partido Popular Progressista (PPP), de orientação marxista e multiétnico. Contudo, os colonizadores britânicos aproveitaram a ambição de Forbes Burnham, afro-guianense, para dividir o partido. Este, apesar de se afirmar, igualmente, socialista, formou o Congresso Nacional do Povo (PNC), ideologicamente de centro-esquerda, e apelou aos afrodescendentes, tanto das classes baixas, constituídas por trabalhadores urbanos, mais radicais, como das classes médias, ligadas aos pequenos negócios e mais moderadas, para se unirem. O PPP ficou, assim, reduzido ao apoio dos indodescendentes, em especial dos trabalhadores agrícolas das plantações do açúcar e do arroz. Após a independência, Burnham tornou-se primeiro-ministro. Em 1970, após ter vencido com maioria absoluta dois anos antes, o chefe do executivo anunciou a transição para o socialismo e proclamou a república cooperativa da Guiana. Teoricamente, era uma boa ideia; o problema foi a prática. O PNC apropriou-se do aparelho de Estado e passou a governar de forma cada vez mais autoritária, sendo a oposição apenas tolerada. As eleições de 1973 foram uma farsa eleitoral. Nesse ano, um grupo de intelectuais de esquerda forma a Aliança do Povo Trabalhador (WPA), advogando uma via democrática para o socialismo, respeitadora das liberdades cívicas e dos direitos humanos. Em 1977, o PPP, após o chefe do governo ter rejeitado uma aproximação, promoveu uma greve dos trabalhadores do açúcar. Em 1980, a violência, até aí larvar, estalou e a repressão aumentou, visando, especialmente, a WPA, cujo líder, Walter Rodney, foi detido e, pouco tempo após a sua libertação, assassinado num atentado à bomba, que terá tido o “dedo” da polícia política. A economia do país, muito dependente da produção açucareira, entrou em recessão e o nível de vida do povo foi decaindo. Em 1985, ocorreu a morte de Burnham, que, cinco anos antes, assumira a presidência com poderes reforçados. O seu “vice”, Desmond Hoyte, substituiu-o interinamente e foi confirmado, posteriormente, numa eleição pouco transparente. Contudo, a repressão abrandou, sendo, progressivamente, levantada a censura à imprensa e revista a legislação eleitoral. Já no plano económico, iniciou as privatizações. Em 1992, realizaram-se eleições livres, que deram o triunfo ao PPP e Jagan tornou-se presidente. Após a sua morte, em 1997, a sua viúva, Janet Jagan, estadunidense de nascimento e ativista de longa data, ascendeu à presidência, mas o PNC contestou os resultados e a violência regressou às ruas, só tendo terminado após mediação internacional. Dois anos depois, a presidente, doente, renunciou e o seu ministro das finanças, Bharrat Jagdeo, substituiu-a, sendo reeleito em 2001 e 2006. Em 2011, o PPP manteve o poder, elegendo Donald Ramotar, até que, em 2015, foi derrotado pelo PNC e David Granger tornou-se o novo presidente do país. Neste século, a Guiana parece ter entrado na normalidade democrática, mas continua economicamente muito vulnerável, dependente da exportação de produtos agrícolas e minerais, o que, em caso de crise grave, poderá potenciar tensões sociais e violência.

O vizinho Suriname, antiga colónia holandesa, tem uma história algo semelhante. A sua diversidade étnica é ainda maior que a da Guiana, sendo a sua população integrada por indianos (25%), negros (20%), crioulos (15%), indonésios (15%), mestiços (15%), ameríndios (5%) e outros, em especial chineses e alguns europeus (5%), valores aproximados. Após a independência, ocorrida em 1975, Hanck Arron, um banqueiro, do Partido Nacional do Suriname (NPS), maioritariamente crioulo, o grupo étnico privilegiado durante a colonização, tornou-se primeiro-ministro, tendo sido reeleito dois anos depois em eleições consideradas fraudulentas. O seu regime caracterizou-se pelo domínio das multinacionais da indústria mineira, que exploravam a bauxite, a maior exportação do país, pela corrupção generalizada e pela falência económica, já que a esmagadora maioria dos quadros, com passaporte holandês, emigrou para a Holanda. Em 1980, um grupo de sargentos, liderados por Desiré “Dési” Buterse, depôs Arron num golpe militar. Este tornou-se, então, o “homem forte” do novo regime. Contudo, embora houvesse algum consenso sobre o início de uma transição para o socialismo, havia divisões sobre o modelo a adotar. Essas divergências resultaram em várias intentonas de diferentes origens e respetiva repressão, a par com várias manifestações e greves. Em 1982, ocorreu a chamada “matança de dezembro”, quando 13 opositores políticos e um jornalista holandês são sumariamente executados, alegadamente por tentativa de golpe de Estado. Bouterse decretou a lei marcial e prometeu transformações sociais, mas a falta de cumprimento da promessa levou parte da esquerda e dos sindicatos a retirarem-lhe o apoio. Em 1985, os partidos políticos voltaram a ser autorizados e estava previsto o regresso à ordem constitucional. Contudo, no ano seguinte, rebentou a guerra civil. Ronnie Brunswijk, antigo guarda-costas de Bouterse, desentende-se com ele. Para além de pretender a democratização do regime, exigiu uma maior distribuição da riqueza em favor dos afro-surinameses, grupo a que pertencia e sempre fora marginalizado pelas elites do poder. Com apoio financeiro do governo holandês, forma o movimento Comandos da Selva, que, apoiado nas aldeias quilombolas do Leste do país, inicia uma insurreição armada, originando uma guerra civil. Apesar disso, em 1987, um referendo aprovou um novo texto constitucional, que permitiu a realização de eleições gerais livres, durante as quais os rebeldes observaram uma trégua. A opositora Frente Unida para a Democracia e o Desenvolvimento (NF) obteve um triunfo esmagador e Ramsewak Shankar é eleito presidente pelo novo Parlamento, em 1988. Hanck Arron, cujo partido, o NPS, era a principal força da coligação vencedora, volta a chefiar o executivo. Contudo, em 1990, torna a ser deposto por Bouterse, que, no entanto, desta vez, entrega rapidamente o poder aos civis. Em 1991, a NF vence com maioria absoluta, mas perde apoio e o novo partido formado por Bouterse, o Partido Nacional Democrático (NDP), da esquerda nacionalista, ultrapassa os 20% dos votos. Entretanto, o novo presidente, Ronald Venetiaan, logrou um cessar-fogo com os guerrilheiros, que terminam com uma amnistia para estes, em troca do seu desarmamento, o qual ocorre em 1992. A descida dos preços da bauxite, nos anos 90, provoca uma grave crise económica e o país acabou por ter de aplicar um dos tristemente célebres “programas de ajustamento estrutural” do FMI. O descontentamento levou à vitória do NDP, em 1996, sendo Jules Wijdenbosch eleito presidente. Este rompeu com o FMI, mas a situação económica continuou a deteriorar-se e o governo acaba derrubado no Parlamento. Em 2000, a NF obtém uma clara vitória eleitoral e Venetiaan voltou à presidência. Este seria reeleito cinco anos depois, apesar de o seu partido ter perdido a maioria absoluta. Em 2010, “Dési” Bouterse regressou ao poder, sendo eleito presidente, após o NDP ter vencido as eleições gerais com maioria relativa. Para o efeito, fez um acordo com o seu velho inimigo e antigo líder guerrilheiro, Ronnie Brunswijk, líder de uma coligação de partidos afro-surinameses, denominada A Combinação. Nas eleições de 2015, Bouterse foi reeleito, após a Megacombinação (aliança do NDP e seus aliados esquerdistas com a de Brunswijk) ter obtido um triunfo claro. Tal como o país vizinho, também o Suriname parece ter estabilizado as suas instituições democráticas, mas continua muito dependente das exportações de bauxite, mesmo tempo começado a explorar algum petróleo existente na sua costa. Mas a sua economia continua muito dependente das flutuações dos preços nos mercados internacionais, que, em caso de queda, provocarão mais uma crise económica, com a consequente desestabilização da situação política e social do país.

Como o nome indica, a Guiana Francesa continua sob tutela da potência colonial, que lhe concedeu um estatuto de coletividade territorial autónoma. Colónia penal até aos anos 50 (é lá que se situa a tristemente célebre ilha do Diabo), é onde se localiza a base espacial de Kourou, gerida conjuntamente pelas agências espaciais francesa e europeia. Constitui uma região ultraperiférica da UE e uma das mais pobres, com um PIB per capita pouco superior a 50% da média europeia. Politicamente, nas territoriais de 2015, a lista centrista abrangente de Rodolphe Alexandre derrotou, na 2ª volta, a do independentista Alain Tien-Liong. Em 2017, ocorreram grandes protestos populares, com greves e manifestações contra o aumento do desemprego, o elevado custo de vida, a crescente criminalidade, a má qualidade dos serviços públicos e a falta de infraestruturas, exigindo mais investimentos do governo de Paris no território.

Países hispânicos: Mais industrializados e urbanizados, mas as mesmas desigualdades

Os países latino-americanos da América do Sul possuem uma história semelhante aos da América Central, com desigualdades sociais semelhantes. Porém, a região é, em geral, mais industrializada que a do istmo centro-americano e daí que, além da oligarquia rural terratenente, são importantes, também, os setores oligárquicos afetos aos setores industrial e financeiro. Por isso, apresenta maiores taxas de urbanização, fruto de um enorme êxodo rural, em especial a partir dos anos 50, o que gera elevados índices de pobreza urbana. Também aqui os breves períodos democráticos foram, frequentemente, interrompidos por golpes de Estado, que geraram ditaduras, por vezes brutais, e guerras civis. Também aqui se fez sentir, desde sempre, a ingerência dos EUA, embora de forma mais indireta e encapotada que na América Central e nas Caraíbas. Depois de uma década de 90 marcada pelo neoliberalismo, a primeira do séc. XXI marcou uma acentuada viragem à esquerda. Porém, por diferentes razões, as esquerdas falharam a prova do poder e a direita, em certos casos a mais reacionária, recuperou posições e controla novamente a maioria do continente.

A história política da Venezuela é um exemplo do que referimos acima. O país é um dos grandes produtores mundiais de petróleo, o que gera grandes “apetites” externos, tanto da parte das multinacionais do setor como das grandes potências. Apenas em 1948 se realizaram eleições presidenciais livres, que levaram à eleição do escritor Rómulo Gallegos. Contudo, poucos meses depois, foi deposto por um golpe, que colocou no poder um triunvirato militar. Em 1953, o “homem forte” daquele, Marcos Pérez Jiménez, assumiu a presidência. Se é certo que levou a cabo grandes obras públicas, governou de forma ditatorial, perseguindo os opositores e impondo uma feroz censura à imprensa. Em 1958, uma revolução popular levou à queda da ditadura. Pouco depois, os principais partidos assinaram um pacto em que se comprometiam a respeitar os resultados eleitorais. A partir daí, estabilizou-se o regime democrático, que se traduziu numa alternância bipartidária entre o partido Ação Democrática (AD), social-democrata, e o COPEI, social-cristão. A subida dos preços do petróleo, a partir de 1974, quando tomou posse Carlos Andrés Pérez, da AD, permitiu uma rápida subida do nível de vida e o crescimento da classe média. O problema foi que, na década seguinte, a descida da cotação do crude teve o efeito contrário, obrigando a uma abrupta desvalorização do bolívar, que foi o início de uma grave crise económica e social. O povo colocou as suas esperanças no regresso de Pérez, novamente eleito presidente em 1988, mas as circunstâncias eram diferentes das da presidência anterior. Em 1989, após um acordo com o FMI, tomou um conjunto de medidas altamente impopulares, que, a par com uma corrupção cada vez maior, geraram protestos generalizados, conhecidos como o Caracazo, cuja repressão provocou centenas de mortos. Em 1992, ocorreram duas tentativas de golpe de Estado, a primeira das quais liderada pelo tenente-coronel Hugo Chávez, cuja rendição em direto na televisão lhe granjeou grande popularidade, especialmente entre as classes populares. Pérez foi alvo de “impeachment” no ano seguinte e o ex-presidente Rafael Caldera, do COPEI, ganhou as eleições de 1994 e decretou uma amnistia para os revoltosos, mas a sua política de privatizações, face a uma grave crise bancária, só agravou a situação. No fundo, refletia o falhanço de um país grande produtor de petróleo, mas de cuja renda a maioria da população pouco ou nada beneficiava. Nas presidenciais de 1998, com os dois partidos alternantes totalmente desacreditados, Hugo Chávez, à frente do Movimento Revolucionário Bolivariano (MRB), vence com 56% dos votos. Dá, então, início a um processo que designa por Revolução Bolivariana, com o objetivo declarado de construir o que designou por “socialismo do séc. XXI”. Após um referendo que lhe outorgou uma maioria esmagadora, convocou, em 1999, uma assembleia constituinte. Esta elaborou uma nova Constituição amplamente democrática, que procurava conciliar a democracia representativa com a participativa. Aprovado o novo texto constitucional, o presidente decidiu, então, convocar eleições para todos os cargos eletivos, a nível nacional, estadual e local. Estas tiveram lugar em 2000 e Chávez foi reeleito com perto de 60% dos votos. Inicia, então, um conjunto de reformas económicas e sociais, entre as quais uma lei sobre o petróleo e o gás e outra dando início a uma reforma agrária. Os setores empresariais e as classes altas opõem-se a estas medidas e começam a atacar o governo, organizando manifestações e greves, com o apoio dos EUA. Em 2002, um golpe de Estado coloca no poder Pedro Carmona, líder da principal federação empresarial, mas, dois dias depois, um contragolpe repõe a legalidade constitucional. No ano seguinte, apesar da greve que paralisou a produção petrolífera, Chávez inicia um conjunto de programas sociais, as chamadas “missiones”, que levam a educação e a saúde às populações mais pobres. A oposição não desarma e, em 2004, utiliza um instrumento previsto na nova Constituição: a convocação de um referendo revogatório do presidente. Contudo, o resultado é favorável a Chávez, com 59% dos eleitores votando contra a sua destituição. Em 2006, é reeleito com perto de 63% dos sufrágios, derrotando o oposicionista Manuel Rosales. Em 2007, federa os apoiantes da revolução, criando o Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), e apresenta uma proposta de revisão constitucional, que lhe daria amplos poderes. Contudo, esta é rejeitada, em referendo, por curta margem, e Chávez aceita a derrota. Entretanto, nacionaliza uma série de empresas estratégicas, algumas pertencentes a companhias estadunidenses. Dois anos depois, consegue ver aprovado o fim da limitação dos mandatos dos cargos públicos para permitir a sua recandidatura. Entretanto, a descida dos preços do petróleo provocou sérias dificuldades económicas. Ao mesmo tempo, o regime começou a resvalar para o autoritarismo, com a prisão de alguns opositores, sob a acusação de golpismo, a intimidação de outros pelos coletivos “chavistas” e pressões crescentes sobre a comunicação social. Em 2012, já doente, Chávez foi reeleito com 55% dos votos, batendo o oposicionista moderado Henrique Capriles, que aceitou a derrota. Vítima de cancro, faleceu em 2013, o que levou à convocação de novas presidenciais. Nestas, o candidato do PSUV, Nicolás Maduro, vence tangencialmente Capriles, da Mesa de Unidade Democrática (MUD), mas os resultados foram contestados pela oposição. A queda contínua dos preços do petróleo, a partir de 2014, agravou a situação económica e o país começa a enfrentar uma grave crise social. Também a má gestão de uma administração ineficiente, “enxameada” de “boys” do regime, a corrupção endémica, o boicote de certos setores empresariais e as sanções dos EUA contribuíram para o agravamento da crise. Para tentar atrair capitais, o governo aprova o projeto do “arco mineiro do Orinoco”, que abre às companhias mineiras internacionais a exploração dos recursos aí existentes, o que se traduzirá em danos ambientais irreparáveis. Nas eleições parlamentares de 2015, a MUD vence com mais de 56% dos votos e consegue uma maioria constitucional de 2/3. Maduro e o PSUV não aceitam o resultado e, em 2017, o presidente convoca uma assembleia constituinte, que seria eleita não apenas com base no voto dos cidadãos, mas também no de organismos corporativos (associações patronais, sindicais, profissionais, coletivos e outras), todos eles controlados pelo PSUV. No fundo, procurava ganhar na “secretaria” o que perdera nas urnas. Todas as formações oposicionistas boicotam a sua eleição e aquela, só com partidários do regime, assume, ilegitimamente, as funções do Parlamento. A partir daqui, dá-se a rutura total entre governo e oposição, ao mesmo tempo que a situação económica e social se agrava, levando mais de dois milhões de venezuelanos a fugir do país. Também alguns setores da esquerda que apoiaram Chávez, os chamados “chavistas críticos”, repudiam a atuação de Maduro, a quem acusam de deriva ditatorial. Em 2018, aquele é reeleito com 68% dos votos, num ato eleitoral onde os principais candidatos da oposição foram inabilitados e que não foi reconhecido nem pela maioria da comunidade internacional nem pelas organizações de direitos humanos como livre e justo. No dia 10, a tomada de posse de Maduro foi reveladora do seu isolamento internacional. Há poucos dias, o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, declarou a ilegitimidade de Maduro e proclamou-se presidente interino, com o apoio dos EUA e outros países aliados. A verdade é que a sociedade venezuelana se encontra profundamente dividida e nem o regime nem a oposição (também ela muito dividida) têm soluções para resolver o grande problema estrutural do país: a excessiva dependência das exportações petrolíferas, cujas oscilações determinam os ciclos económicos do país. E sem um diálogo mínimo entre o governo e a oposição, que leve à realização de eleições gerais livres, fiscalizadas pela ONU, o país corre o risco de entrar em guerra civil. No entanto, os EUA, que, apesar de toda a retórica, são os principais compradores do petróleo venezuelano, apostem todas as “fichas” numa mudança rápida de regime, mas não estarão interessados num caos generalizado que paralise a produção petrolífera. Veremos o que nos reservam os tempos mais próximos, sendo certo que o futuro próximo do país será tudo menos risonho!...

A vizinha Colômbia é outro país que tem uma história conturbada. Em 1948, o líder liberal Jorge Eliécer Gaitán foi assassinado em Bogotá. A violência tomou conta do país, originando uma guerra civil entre conservadores e liberais, que durou dez anos. Em 1958, os dois partidos acordaram em repartir entre si o poder durante os 16 anos seguintes, alternando na presidência em cada quadriénio. Esta solução impediu a formação de alternativas de esquerda no seio do sistema político, o que levou à formação de vários movimentos revolucionários: as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), o Exército de Libertação Nacional (ELN) e o Movimento 19 de Abril (M19). Nos anos 70, o narcotráfico iniciou a sua expansão e os carteis da droga, em especial os de Medellín e o de Cali, foram responsáveis pelo aumento da violência urbana. Estes passaram a financiar as campanhas de políticos corruptos e a assassinar os que não se deixavam comprar. Uma das figuras mais sinistras desse período foi Pablo Escobar, líder do cartel de Medellín. Ao mesmo tempo, continuavam as ações armadas dos grupos guerrilheiros. Em 1982, o presidente conservador Belisario Betancur conseguiu um acordo de paz com as FARC, que criaram um partido legal, a União Patriótica (UP). Porém, vários dos seus dirigentes foram assassinados e o movimento voltou à guerrilha. Em 1990, o presidente liberal Virgilio Barco conseguiu um acordo de desmobilização do M-19, que se transformou em partido político. Em 1990, o cartel de Medellín assassinou três candidatos presidenciais e efetuou vários atentados e ataques terroristas. O liberal César Gaviria venceu as eleições e convocou uma assembleia constituinte, que elaborou uma Constituição mais democrática e mais descentralizadora que a anterior. Em 1993, Pablo Escobar foi abatido pela polícia, após ter fugido da luxuosa prisão onde se encontrava, e a violência dos carteis enfraqueceu. Contudo, em 1994, o liberal Ernesto Samper foi eleito com dinheiros do cartel de Cali. Em 1997, surge uma organização paramilitar de extrema-direita, as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), formadas com o apoio de latifundiários, traficantes de droga locais e alguns militares, destinada a combater os guerrilheiros. Foram responsáveis pela instauração de um clima de terror nas áreas rurais, onde levaram a efeito uma série de massacres de camponeses, sindicalistas e indígenas. Em 1998, o conservador Andrés Pastrana iniciou novo processo de paz com as FARC, com a criação de uma “zona de distensão”, onde os guerrilheiros podiam concentrar sem serem atacados pelo exército. Porém, nas eleições de 2002, a vitória coube a Álvaro Uribe, um liberal dissidente e candidato do movimento Primeiro Colômbia, que se transformaria, mais tarde, no Partido Social de Unidade Nacional (popularmente conhecido como Partido de la U), terminando com o bipartidarismo. Adepto da linha dura, abandonou o acordo firmado pelo seu antecessor e apostou na solução militar do conflito. Numa altura em que a esquerda pontificava no continente, tornou-se o mais fiel aliado dos EUA na região, o que levou estes a compensá-lo com a venda de armamento militar sofisticado e envio de peritos na contrainsurreição. Conseguiu um acordo de cessar-fogo com as AUC, após uma investigação ter provado a ligação destas com congressistas e militares. Contudo, a sua abordagem “musculada” apenas contribuiu para uma nova escalada de violência. Após ter aprovado uma emenda constitucional permitindo a reeleição, venceu as presidenciais de 2006, mas o candidato do Polo Democrático Alternativo (PDA), da esquerda, ficou no segundo lugar. Em 2010, sucedeu-lhe o seu “vice”, Juan Manuel Santos. Este deu uma viragem ao centro e procurou uma solução política para o conflito e voltou às negociações com as FARC, o que levou Uribe a deixar o partido e criar uma nova formação direitista, o Centro Democrático (CD). Em 2012, o governo colombiano assinou um plano de paz com aquela organização guerrilheira, que, em troca de uma amnistia, se transformaria num partido político. Santos foi reeleito em 2014, com uma pequena vantagem sobre o candidato “uribista” Iván Zuluaga. Em 2016, o acordo foi rejeitado por uma margem mínima (50,2%) num referendo popular, após uma agressiva campanha conduzida pelos “uribistas”. Contudo, após algumas alterações de pormenor, acabou por ser ratificado no Parlamento, no ano seguinte. Nas eleições de março, a antiga guerrilha apresentou-se como a Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC), mas os seus resultados foram muito pobres, não ultrapassando os 0,5% dos votos. É certo que o tempo de organização foi pouco e vários dos seus dirigentes locais foram (e continuam a ser) assassinados, mas, mesmo assim, o desempenho eleitoral foi muito fraco. Nas presidenciais de maio, o direitista Iván Duque, do CD de Uribe, derrotou, na 2ª volta, o candidato da esquerda, Gustavo Petro, do PDA. Apesar de, durante a campanha, ter prometido reverter o acordo de paz, a verdade é não o fez e, agora, apenas fala em revê-lo. Contudo, interrompeu as negociações com o último grupo guerrilheiro, o ELN, iniciadas por Santos. Em resposta, este perpetrou, no passado dia 17, um sangrento atentado contra a escola nacional de polícia, em Bogotá. Se estamos em presença de um regresso à violência ou perante uma tática para aparecer fortalecido à mesa das negociações só o futuro dirá.

O Equador é o segundo país mais pequeno da América do Sul e a sua história é, igualmente, marcada por uma instabilidade política constante. Apesar de ser produtor de petróleo, a maioria da população continua pobre. Depois de uma série de regimes caudilhistas e ditaduras militares, regressou à democracia, em 1978, com a eleição do presidente Jaime Roldós. Este tomou uma série de medidas progressistas, como o aumento do salário mínimo, e elaborou um plano de desenvolvimento, assente na realização de obras públicas. Apesar de populista, foi um ferranho defensor dos direitos humanos e um crítico da política dos EUA para a região. Em 1981, morreu num mal esclarecido acidente aéreo, que alguns consideram ter sido obra da CIA. Eleito em 1984, o mandato do conservador León Febres-Cordero, do Partido Social-Cristão (PSC), ficou marcado por graves violações dos direitos humanos, com o “desaparecimento” de vários opositores políticos, e por uma política económica ruinosa, que em muito agravou a dívida externa. Seguiu-se-lhe, em 1988, o social-democrata Rodrigo Borja, que abandonou o estilo autoritário do seu antecessor, mas viu o país ser atingido por uma grave crise económica e foi incapaz de responder às reivindicações indígenas. Em 1992, foi eleito um conservador, Sixto Durán, que pôs em prática as habituais políticas austeritárias impostas pelo FMI. Em 1996, ascendeu à presidência o populista Abdalá Bucaram, cunhado de Roldós, do Partido Roldosista Equatoriano (PRE). Porém, estava “a léguas” da competência e integridade daquele e as suas desastrosas políticas económicas originaram grandes manifestações de protesto, acabando por ser alvo de “impeachment” e destituído, no ano seguinte. Nos dez anos seguintes, a instabilidade tornou-se uma constante e nenhum presidente conseguiu terminar o seu mandato, tendo-se registado, inclusive, uma tentativa de golpe de Estado, em 2000, que levou à demissão do presidente Jamil Mahuad, substituído pelo seu “vice”, Gustavo Noboa. Em 2002, Lucio Gutiérrez, um dos militares golpistas, foi o primeiro indígena a ser eleito presidente, batendo o incumbente. Eleito com os votos da esquerda, acabou a governar à direita e a querer controlar o poder judicial, face a acusações de nepotismo e corrupção de que o seu governo era alvo. Em 2005, os protestos populares foram crescendo e, após uma gigantesca manifestação em Quito, acabou por abandonar o poder. No ano seguinte, as eleições levaram ao poder o candidato da esquerda, Rafael Correa, da Aliança PAIS. Convoca uma assembleia constituinte, que aprova, em 2008, uma nova Constituição, ratificada em referendo. No ano seguinte, são convocadas eleições gerais e Correa é reeleito à 1ª volta, o mesmo sucedendo em 2013. O seu programa, denominado Revolução Cidadã, caracterizou-se pelo aumento da intervenção estatal da economia, em especial no setor petrolífero e do investimento público em infraestruturas e programas sociais. Ao mesmo tempo, promoveu a reestruturação da dívida externa sem recorrer à austeridade e reformou o setor financeiro. Ficou célebre por ter concedido asilo político a Julian Assange, refugiado na embaixada equatoriana em Londres. Entre os pontos negativos, a hostilização da comunicação social, contra a qual elaborou leis que, na prática, restringiam a plena liberdade de imprensa. Não podendo apresentar-se a nova reeleição, foi candidato da Aliança PAIS o vice-presidente Lenín Moreno, que obteve uma vitória apertada sobre o liberal-conservador Guillermo Lasso. O novo presidente rapidamente se distanciou do seu antecessor, a quem acusou de autoritarismo e corrupção. Prometeu um combate sem tréguas a esta última e convocou um referendo com várias questões, a principal das quais a cláusula “anti-Correa”, que veda o retorno à presidência a quem já tenha cumprido dois mandatos. No plano económico, rompeu com a orientação anterior, implantando medidas de austeridade. A Revolução Cidadã já era!...

Também o Perú, pátria da civilização inca, é uma sociedade desigual, com grande percentagem de população pobre e, por isto, onde a instabilidade política e social são constantes. Até 1968, o país foi governado quase sempre por “caudillos” civis ou militares, com pequenos intervalos democráticos, mas o poder esteve sempre nas mãos da oligarquia, na maioria terratenente. Nesse ano, o presidente Belaúnde Terry foi derrubado por um golpe militar liderado pelo general Juan Velasco Alvarado. Apoiado pela esquerda e pelas classes populares, este encetou um processo revolucionário, com nacionalização da banca e das grandes empresas, com destaque para as petrolíferas, mineiras e pesqueiras, vitais para a economia peruana, e a realização de uma ambiciosa reforma agrária. Porém, restringiu as liberdades, proibindo os partidos políticos e encerrando os jornais afetos à oposição. Criou, ainda, uma organização de enquadramento de massas, o SINAMOS, que, na prática, funcionava como partido único. A oposição das classes médias cresceu e Alvarado, com a saúde já muito debilitada, foi deposto, em 1975, pelo general Morales Bermúdez, que reverteu parte das medidas progressistas do seu antecessor. Após uma greve geral e várias manifestações populares, foi convocada uma assembleia constituinte, em 1978. Esta aprovou o novo texto constitucional no ano seguinte e, em 1980, realizaram-se eleições democráticas, que ditaram o regresso ao poder de Belaúnde Terry, do partido Ação Popular, de tendência conservadora. No seu governo, surgiram duas organizações guerrilheiras: o temível Sendero Luminoso, maoísta, e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), guevarista. Em 1985, o triunfo coube a Alan García, do Partido Aprista Peruano (PAP), de orientação social-democrata. Contudo, a crise económica, que degenerou em hiperinflação, e o aumento dos atentados do Sendero marcaram muito negativamente a sua presidência e geraram grande descontentamento popular. Nas eleições de 1990, o candidato “aprista” foi eliminado na 1ª volta, tendo o 2º turno sido disputado pelo escritor Mario Vargas Llosa, da coligação de centro-direita FREDEMO, e Alberto Fujimori, do movimento populista Cambio 90. Com os votos da esquerda, este último venceu por margem confortável. Sob a orientação do FMI, aplicou as tradicionais receitas neoliberais, com destaque para a privatização da maioria das empresas estatais. As suas tendências autoritárias foram visíveis desde o início e, em 1992, deu um autogolpe, dissolvendo o Congresso, após os que elaborou uma nova Constituição. Nesse ano, logrou capturar Abimael Guzmán, líder do Sendero, e outros dirigentes da organização, que ficou bastante enfraquecida. Foi reeleito em 1995, derrotando facilmente o candidato oposicionista Javier Pérez de Cuellar, antigo secretário-geral da ONU. O crescente autoritarismo e a corrupção fizeram decrescer a sua popularidade. Pretextando que a sua primeira eleição ocorrera antes da aprovação da Constituição em vigor, candidatou-se a um terceiro mandato em 2000. Em eleições consideradas manipuladas, bateu Alejandro Toledo, do centrista Perú Posible, que recusou disputar a 2ª volta. Pouco tempo depois, um escândalo de corrupção, que revelou um esquema de compra de votos no Congresso, envolvendo o seu principal assessor e chefe dos serviços secretos, Vladimiro Montesinos, levou-o a abandonar o país. Convocadas novas presidenciais para o ano seguinte, foram estas ganhas por Toledo, que, ao derrotar o ex-presidente Alan García, se tornou no primeiro presidente de origem indígena. Apesar do elevado crescimento económico, o seu governo ficou marcado por um grande aumento da corrupção. Em 2006, Alan García voltou mesmo ao poder, conseguindo uma vitória apertada sobre o candidato da esquerda Ollanta Humala, do Partido Nacionalista Peruano (PNP). Este acabaria por ser eleito em 2011, vencendo Keiko Fujimori, filha do antigo presidente, do partido Força Popular (FP), numa renhida 2ª volta. Eleito com apoio de uma aliança de esquerda, o novo presidente desiludiu e acabou abandonado por esta, já que, apesar de algumas medidas de apoio social, em especial no domínio da educação, que permitiram reduzir a pobreza, prosseguiu, em geral, políticas centristas, em lugar das grandes transformações sociais que havia prometido na campanha. A nível externo, apesar de ter sido apoiado por Chávez, manteve o tradicional alinhamento com os EUA. Nas eleições gerais de 2016, Keiko Fujimori obteve 40% dos votos na 1ª volta, deixando o segundo Pedro Pablo Kuczynski, empresário e banqueiro, candidato dos Peruanos por el Kambio (PPK), a grande distância. Contudo, com o apoio da maioria das restantes forças políticas, este último conseguiu uma vitória tangencial, obtendo 50,1% dos votos. Envolvido no escândalo Odebrecht e também num esquema de compra de votos, PPK acabou por demitir-se em março, sendo substituído pelo “vice” Martín Vizcarra.

A Bolívia é o país mais pobre da América do Sul, onde a pobreza atinge cerca de 70% da população. A sua história é uma sucessão de golpes de Estado: mais de 200 em menos de dois séculos de independência. Em 1952, uma revolução popular depõe o regime oligárquico. Foi liderada pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), uma formação populista liderada por Víctor Paz Estenssoro, que tinha o apoio das classes médias e baixas. O novo governo nacionalizou as minas, estatizou a exportação de estanho (a principal do país) e impulsionou uma reforma agrária, distribuindo parte da área expropriada pelos camponeses indígenas. Em 1956, foi eleito presidente Hernán Siles Zuazo, “vice” de de Paz Estenssoro, Este voltou à presidência em 1960 e foi reeleito em 1964, ano em que foi deposto por um golpe de Estado. O país foi, então, governado por sucessivas juntas militares, numa sucessão de intentonas e golpes, que revertem parte das medidas progressistas dos governos do MNR. As suas governações criaram uma elevada dívida externa, que explodiu quando se registou uma queda dos preços do estanho, no início dos anos 80, gerando uma grave crise económica. Em 1982, a democracia foi restabelecida e Siles Zuazo, agora da social-democrata União Democrática e Popular (UDP) foi eleito presidente. Porém, incapaz de resolver os problemas derivados da gravíssima situação económica, que geram uma hiperinflação, demite-se em 1985. Nas presidenciais desse ano, Paz Estenssoro regressa à presidência, mas, ao invés do que fora a sua ação nos anos 50, implementa uma série de políticas neoliberais, entre as quais o despedimento de milhares de mineiros de estanho. Seguiu-se Paz Zamora, do Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), mas que governou com o apoio da direitista Ação Democrática Nacionalista (ADN), do antigo ditador militar Hugo Banzer. Gonzalo Sánchez de Lozada, do MNR (1993-97 e 2002-06) e o próprio Hugo Banzer (1997-2001) prosseguiram e aprofundaram políticas semelhantes, com privatizações, encerramento de serviços públicos e de várias minas. Essas medidas geraram enormes protestos populares, com manifestações e greves frequentes e nenhum deles terminou o mandato. Em 2005, o candidato da esquerda, Evo Morales, líder sindical dos cocaleros (plantadores de coca), do Movimento para o Socialismo (MAS) vence as presidenciais com perto de 54% dos votos, sendo o primeiro indígena a chegar à presidência. No ano seguinte, procede à eleição de uma assembleia constituinte, que aprova a Constituição de 2007, confirmada em referendo popular em 2009. Estabelece a Bolívia como estado plurinacional, reconhecendo, na prática, as diferentes nações indígenas. Morales vence facilmente um referendo revogatório, convocado pela oposição de direita, em 2008, e as presidenciais de 2009. Entretanto, procede à nacionalização das empresas estratégicas, com destaque para as de hidrocarbonetos; inicia a reforma agrária, distribuindo terras pelos indígenas; leva a efeito várias campanhas de alfabetização e afirma a laicidade do Estado, na linha do novo texto constitucional. A descoberta de gás natural no país, no início do século, permite-lhe dinamizar e financiar os programas sociais. Assim, o país experimenta, simultaneamente, um elevado crescimento económico e uma grande redução da pobreza. A partir de 2010, a crise económica mundial reflete-se numa travagem na economia boliviana e Morales começa a tomar algumas medidas autoritárias, perseguindo judicialmente opositores sob acusações de corrupção que alguns consideram politicamente motivadas e reprimindo alguns movimentos sociais. Outro aspeto negativo da sua governação é a aposta num modelo extrativista para financiar os seus programas sociais. Em 2014, foi reeleito, após o Supremo Tribunal ter decidido que a limitação dos mandatos apenas se aplicava a partir da vigência da atual Constituição. Em 2016, o presidente convocou um referendo para aprovar uma alteração constitucional, visando permitir a candidatura presidencial a um novo mandato, mas esta foi rejeitada por 51,3% dos votantes. Inacreditavelmente, o Supremo Tribunal considerou a consulta inválida por alegada interferência estrangeira e, apesar de a Constituição estatuir o contrário, aboliu a limitação de mandatos para todos os cargos públicos, pelo que Morales será candidato nas eleições gerais de outubro. De acordo com as atuais sondagens, deverá ser obrigado a disputar uma 2ª volta com o ex-presidente Carlos Mesa, da Frente Revolucionária da Esquerda (FRI).

O Paraguai, país interior, relativamente plano, é relativamente pobre, embora tenha experimentado um grande crescimento económico nas últimas décadas. Tal como os outros estados sul-americanos também apresenta uma vida política agitada, com o habitual cortejo de golpes de Estado e guerras civis. Em 1954, o general Alfredo Stroessner, “homem forte” do Partido Colorado, o único autorizado desde 1947, data do último conflito civil, torna-se presidente, iniciando uma longa ditadura. A partir de 1962, autorizara alguns pequenos partidos oposicionistas, mas os seus líderes eram, frequentemente, detidos e as eleições não passavam de farsas eleitorais. Esta durou até 1989, quando o ditador foi deposto pelo general Andrés Rodriguez, após 35 anos no poder. Este convocou rapidamente eleições presidenciais, que venceu por margem esmagadora. Em 1993, Juan Carlos Wasmosy, igualmente “colorado”, foi o primeiro civil a chegar à presidência desde a última guerra civil. Para além de uma grave crise económica, enfrentou uma delicada crise político-militar, quando mandou prender o nº 2 do exército, general Lino Oviedo, acusando-o de tentativa de golpe de Estado. Tudo indica que tal decisão terá sido fruto de uma luta pelo poder entre duas fações do partido governamental, já que Raúl Cubas, eleito em 1998, indultou o general, contra a opinião do vice-presidente Argaña. No ano seguinte, este foi assassinado por paramilitares afetos a Oviedo, o que provocou manifestações violentas, que levaram à renúncia do chefe de Estado, substituído por González Macchi, presidente do Senado. Em 2003, mais uma vitória dos “colorados”, que elegeram Nicanor Duarte. Este prometeu uma reforma do aparelho de Estado no sentido de uma maior democratização, mas acabou a tentar alterar a Constituição, de forma a poder ser reeleito, mas não conseguiu o seu objetivo. Em 2008, fez-se história, com a eleição para presidente do ex-bispo católico e seguidor da Teologia da Libertação, Fernando Lugo, do Partido Democrata Cristão (PDC), que concorreu integrado numa ampla aliança de formações de centro-esquerda e esquerda, a que se juntou o centrista Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), principal força da oposição tolerada a Stroessner. Contudo, este último, muito ligado ao agronegócio, em especial aos plantadores de soja (a maior produção agrícola do país), vai-se distanciando das políticas de esquerda do presidente e, em 2012, Lugo é vítima de um golpe parlamentar semelhante ao que derrubaria Dilma Rousseff no Brasil, só que muito mais rápido. Após o presidente ter anunciado um projeto de reforma agrária, o PLRA, junta-se à oposição de direita num processo de “impeachment” em que o antigo bispo é considerado politicamente responsável pelas mortes ocorridas num recontro entre forças policiais e camponeses que tentavam ocupar uma fazenda. O vice-presidente Federico Franco, do PLRA, assume o cargo. Em 2013, os “colorados” regressam ao poder, elegendo Horacio Cartes. Em abril passado, repetiram o triunfo, através de Abdo Benítez, que derrotou o liberal Efraín Alegre, apoiado por toda o centro e esquerda. Apesar do elevado crescimento económico, o país continua a viver das exportações agrícolas, em especial da soja, e apresenta grandes desigualdades sociais, criminalidade e elevadíssimos níveis de corrupção.

O Uruguai é o mais pequeno país da América do Sul, contando com pouco mais de três milhões de habitantes, metade dos quais vivem na área metropolitana de Montevideo. O seu território é plano e coberto por planícies bastante férteis, que o tornam um dos grandes produtores mundiais de carne bovina. É relativamente próspero e a sua sociedade é a menos desigual do continente sul-americano. Por isso, é politicamente mais tranquila, embora não isenta de alguns períodos de instabilidade e de rompimento da legalidade democrática. No início do século XX, o país estabilizou, com alternância ou partilha do poder entre as duas principais forças políticas: os “blancos” (como é conhecido o Partido Nacional, conservador), apoiados na burguesia rural, e os “colorados” (do Partido Colorado, centrista), com suporte na burguesia urbana. Entre 1952 e 1966, ambos os partidos estavam representados num conselho de governo, composto por seis do maioritário e três do minoritário. Tal como outros países da região, ensaiou, a partir dos anos 30, um modelo de desenvolvimento baseado na substituição de importações, que lhe garantiu elevados níveis de prosperidade. Contudo, nos anos 60, entrou em crise e as desigualdades sociais aumentaram, ao mesmo tempo que crescia a pobreza urbana, com o aumento do êxodo rural para a capital. Surge, então, um movimento de guerrilha urbana, os Tupamaros, que protagoniza ações armadas espetaculares, como raptos de membros da oligarquia e de diplomatas estrangeiros, a par com a execução de um instrutor da CIA, especialista em contrainsurreição e tortura. A repressão do movimento guerrilheiro vai erodir as liberdades cívicas e, nas presidenciais de 1971, a esquerda apresenta uma candidatura forte, na chamada Frente Ampla. Nessas, triunfou, por escassa margem, o “colorado” Juan María Bordaberry. Em 1973, com a sua conivência, dá-se um golpe de estado, que levará à instauração de uma ditadura militar até 1985. Esta caracterizou-se por uma repressão feroz, onde as prisões, as torturas e os “desaparecimentos” eram a regra. Ao mesmo tempo, a situação económica deteriorou-se e o nível de vida caiu. Apesar da censura e da repressão, o povo “chumbou”, em 1980, um projeto constitucional apresentado pelos militares, que começaram, lentamente, a preparar a transição para a democracia. Em 1985, realizaram-se eleições livres, que levaram à presidência Julio María Sanguinetti, do partido Colorado. O pacto assinado com os militares tinha como condição a aprovação de uma lei de impunidade para os crimes cometidos durante a ditadura. Em 1989, após reunir as assinaturas necessárias, foi convocado um referendo para a revogar, mas a proposta foi rejeitada nas urnas. Os dois maiores partidos foram-se alternando no poder, até que, em 2002, rebentou uma grave crise bancária, que levou à tomada de medidas de austeridade, geradoras de enormes protestos. Assim, nas presidenciais de 2004, fez-se história, com a vitória do candidato da Frente Ampla (FA), o médico Tabaré Vázquez, logo na 1ª volta. Este era um social-democrata bastante moderado e as suas políticas foram relativamente recuadas, mas criou um serviço de saúde universal e procurou resolver o problema da habitação. Defensor dos direitos humanos, aproveitou exceções na lei da impunidade para levar a julgamento Bordaberry e os ex-presidentes militares. Aprovou um projeto de lei que permite o casamento LGBT, mas vetou a legalização do aborto a pedido da mulher. Em 2009, a FA voltou a ganhar as eleições, elegendo o antigo guerrilheiro José “Pepe” Mujica. Mais à esquerda que o seu antecessor, ampliou as políticas sociais, em especial ao nível da habitação e da promoção do emprego. Aprovou a lei do aborto, que havia sido vetada por Vázquez, e tomou a medida pioneira de legalizar a venda da canábis para fins recreativos. Tornou-se popular pelo seu estilo de vida austero: reside numa pequena quinta nos arredores da capital, com a sua mulher, Lucía Topolansky, também ela ex-guerrilheira, e conduz um pequeno Volkswagen de 1987. Em 2014, Tabaré Vázquez voltou à presidência, derrotando por pequena margem Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional. Em outubro, haverá eleições gerais e as atuais sondagens dão vantagem à oposição de direita, mas há ainda bastantes indecisos, pelo que está tudo em aberto.

A Argentina é o segundo país mais extenso da região e conta com cerca de 45 milhões de habitantes. A sua região central está coberta por planície férteis, as pampas, que o tornam um grande produtor de carne bovina, trigo, soja e outras produções agrícolas, de que é grande exportador. O seu subsolo possui grandes riquezas, entre as quais algum petróleo e gás natural e apresenta um razoável grau de industrialização. Por isso, sempre foi alvo de cobiça por parte das grandes potências, em especial o Reino Unido (até à 2ª guerra mundial) e os EUA (a partir daí). Daí que a sua vida política se caracterize pela instabilidade, com alternância entre períodos democráticos e ditaduras, algo que também sucede a nível económico, onde a um período de grande crescimento económico se sucede outro de forte crise e recessão. O início do séc. XX foi marcado pelo domínio dos conservadores, a que se seguiu o dos radicais (centristas). Representantes da oligarquia, ambos permitiram o domínio da economia pelo capital estrangeiro e mostraram pouco respeito pelas regras democráticas. A partir de 1930, sucederam-se os golpes de Estados, com o governo a caber a juntas militares reacionárias. Em 1943, ocorreu novo “putsch”. Entre os golpistas encontrava-se o coronel Juan Domingo Perón. A princípio uma figura menor, foi escolhido para secretário de Estado do trabalho. Aí, foi estabelecendo laços com o movimento sindical e elaborou a primeira legislação trabalhista do país, o que lhe granjeou grande popularidade entre as massas trabalhadoras. Em 1945, novo golpe leva à prisão de Perón, mas grandes manifestações populares obrigavam a junta a libertá-lo e a garantir eleições gerais no ano seguinte, que aquele ganha, batendo o candidato radical. O peronismo, que resultou de uma aliança entre a burguesia nacional e as classes trabalhadoras, instalou um regime que podemos classificar de populista. Garantiu os direitos laborais e sindicais, estabeleceu o voto feminino, implementou medidas sociais de apoio aos mais desfavorecidos e promoveu a industrialização do país, prosseguindo com o modelo de substituição de importações, já iniciado durante as ditaduras militares dos anos 30, e praticou uma política externa não alinhada. Ao mesmo tempo, a sua mulher, Eva Perón, criou uma fundação de cariz assistencialista, que lhe valeu grande popularidade. Politicamente, o regime caracterizou-se pelo autoritarismo, com o Partido Justicialista, por ele fundado, a controlar o aparelho de Estado e a promover o culto da personalidade dele e de “Evita”. Os partidos da oposição eram tolerados, mas os seus dirigentes eram alvo de perseguições frequentes. Uma ementa à Constituição que tinha feito aprovar em 1947 permite-lhe recandidatar-se em 1951, apesar da oposição dos militares, que não aceitam a candidatura de “Evita” à vice-presidência, proposta pela Confederação Geral do Trabalho (CGT). Esta morrerá de cancro poucos meses depois. Nesse ano, há uma intentona golpista e, dois anos depois, um atentado terrorista na Praça de Maio. Em junho de 1955, a mesma praça foi alvo de um bombardeamento por parte de sublevados da aviação, que causou centenas de vítimas civis, e, em setembro, um golpe militar derruba Perón. Apesar de o intitularem de “revolução libertadora”, o novo regime militar baniu o peronismo e toda a sua simbologia, perseguiu, prendeu e executou vários militantes peronistas. Seguiu-se um período em que se alternaram governos militares e civis por eles controlados, com o apoio alternado de diferentes fações da União Cívica Radical (UCR). Sempre que as formações peronistas eram legalizadas, venciam as eleições e logo um pronunciamento militar derrubava o presidente civil e seu executivo. Entre 1966 e 1973, sucederam-se três militares na presidência, à qual ascendiam através de “putschs” sucessivos. Nesse período, foram seguidas políticas favoráveis às multinacionais, liberalizadoras e antipopulares. Face à crescente contestação popular, os militares aceitaram a realização de eleições, permitindo a participação do Partido Justicialista, mas não a candidatura de Perón. Hector Cámpora, um peronista de esquerda, é eleito com quase 50% dos votos, mas renuncia pouco tempo depois para permitir novas eleições com a participação do velho general. Este obtém uma vitória fácil, mas morre no ano seguinte. Sucede-lhe a sua “vice” e terceira mulher, Maria Estela Martinez. Sem preparação política, deixa o país, na prática, na mão do seu conselheiro pessoal e ministro López Rega, conhecido por “El Brujo”, pelos seus “conhecimentos” de astrologia. Num clima de grande turbulência, em que se confrontavam diferentes fações do “justicialismo”, surgiram vários movimentos guerrilheiros, com destaque para os Montoneros, constituídos por militantes da esquerda peronista. Rega organiza, então, uma milícia de extrema-direita, a Aliança Anticomunista Argentina, conhecida como Triplo A, responsável por vários assassinatos de militantes de esquerda, dirigentes sindicais e líderes estudantis. Em 1976, um golpe depõe a presidente e toma o poder uma junta militar, liderada pelo general Jorge Videla, a que se seguiriam mais três, todas elas empenhadas numa verdadeira cruzada anticomunista. O regime militar caracterizou-se pela instauração de um clima de terror, onde as prisões, os raptos, as violações, as execuções sumárias e os “desaparecimentos” de opositores políticos ou de simples suspeitos de o serem atingiu dezenas de milhares de pessoas. Do ponto de vista económico, levam a cabo políticas liberalizadoras e a promiscuidade entre governo, grandes empresários e a banca internacional originou uma enorme dívida externa. Em 1982, sob a presidência do general Galtieri, as tropas argentinas invadem as ilhas Malvinas, território do Atlântico sul ocupado pelo Reino Unido e que a Argentina reivindica desde o séc. XIX. Após dois meses de guerra, os argentinos são vencidos e o regime militar tem os dias contados. Em 1983, realizam-se eleições gerais que dão o triunfo a Raúl Alfonsín, um social-democrata da UCR, que derrotou o candidato peronista. Levou a julgamento os responsáveis militares pelas violações dos direitos humanos cometidos durante a ditadura, algo que não sucedeu nos países vizinhos, o que o levou a enfrentar vários levantamentos militares. Contudo, não foi capaz de melhorar a grave situação económica e financeira do país, que, em 1988, entrou em hiperinflação. No ano seguinte, o peronista Carlos Menem venceu as eleições, sendo reeleito em 1994. A sua política económica seguiu os cânones neoliberais mais ortodoxos, com privatizações e desregulação das leis laborais, o que contribuiu para aumentar o desemprego, a pobreza e a criminalidade. Surgiram, então, os “piqueteros”, grupos de desempregados que desenvolviam ações de protesto. Para combater a inflação, introduziu a dolarização da economia, estabelecendo a paridade cambial entre o peso e o dólar. Decretou, ainda, uma amnistia aos militares condenados por violação dos direitos humanos, o que gerou grandes protestos. Em 1999, o radical conservador Fernando de La Rúa, aliado à coligação de centro-esquerda FREPASO, venceu as presidenciais. Este recorreu ao FMI, que advogou as já tradicionais medidas austeritárias. Em 2001, a crise agravou-se e o país deixou de poder pagar a sua dívida externa. É adotado o “corralito”, isto é, a limitação ao mínimo dos levantamentos bancários. Face aos enormes protestos populares, o presidente demite-se, sendo substituído pelo peronista Rodrigues Saá. Porém, a contestação prossegue sob o lema “Que se vayan todos!” e aquele também renuncia. No 1º dia de janeiro de 2002, assume a presidência o também peronista Eduardo Duhalde. Este acabou com a paridade entre o dólar e o peso e denominou os depósitos bancários na moeda nacional, o que provocou grandes perdas aos depositantes e agravou a contestação social. Apenas no ano seguinte, minimamente estabilizado o sistema bancário, terminou o “corralito”. A pobreza aumentou enormemente, atingindo mais de metade da população. Nas presidenciais de 2003, o ex-presidente Menem foi o mais votado na 1ª volta, mas apenas com 24%, ficando em segundo Nestor Kirchner, da esquerda peronista, apoiado pela coligação Frente para a Vitória (FPV). Sabendo que seria humilhado no 2º turno, desistiu e Kirchner foi declarado vencedor. Este distanciou-se do FMI e iniciou um processo de reestruturação da dívida. Ao mesmo tempo, fomentou as exportações, o que permitiu um forte crescimento económico, reduzindo a pobreza e o desemprego. A FPV voltou a vencer em 2007, levando à presidência Cristina Fernández de Kirchner, mulher do anterior, que manteve as políticas do seu marido, a que acrescentou a substituição dos fundos privados de pensões por um sistema público. Nestor faleceu em 2010 e Cristina foi reeleita em 2011, com maioria absoluta. Garantiu a maioria estatal na estrutura acionista da petrolífera nacional YPF e apostou na educação e nas políticas sociais, mesmo se não esteve isenta de críticas por parte dos sindicatos e de protestos populares. A nível internacional, alinhou com Chávez e outros líderes da esquerda latino-americana. Os governos dos Kirchner conseguiram, assim, reduzir a pobreza e as desigualdades sociais. Nas presidenciais de 2015, saiu vencedor o candidato da direita, Mauricio Macri. Este adota medidas de austeridade, que reduzem o nível de vida das classes populares. Em abril, rebenta uma crise cambial, com forte desvalorização do peso, o que leva o governo a pedir nova intervenção do FMI, o que não promete nada de bom!

O Chile é, atualmente, o país mais rico da América do Sul, mas continua a ser uma sociedade muito desigual. Ao contrário de outros países sul-americanos, as suas instituições democráticas revelaram alguma solidez até ao fatídico golpe de Pinochet. Se, antes, vivia das exportações de cobre e nitratos, hoje é uma economia diversificada. A partir de 1958, a política chilena passa por uma fase conhecida como a dos “três terços”, em que a direita, a democracia-cristã (centrista) e a esquerda eram apoiadas, cada uma, por cerca de 1/3 dos eleitores. Nesse ano, o direitista Jorge Alessandri foi eleito presidente e prossegue políticas económicas liberais, baseadas na luta contra a inflação e a atração do investimento estrangeiro. Ao mesmo tempo, quis iniciar uma reforma agrária, mas apenas através da redistribuição e privatização de terras do Estado. Em 1964, foi eleito o democrata-cristão Eduardo Frei. Com o intuito de travar o passo à esquerda, leva a efeito uma política keynesiana de estímulo à construção de infraestruturas e de habitações, alarga a escolaridade obrigatória e inicia a reforma agrária, expropriando parte dos grandes latifúndios. Contudo, tais reformas não satisfazem as classes populares e os estudantes, que originam algumas greves e protesto. Em 1970, após três derrotas eleitorais, o socialista Salvador Allende, candidato da Unidade Popular (UP), uma ampla coligação de esquerda, que englobava comunistas, socialistas, radicais (social-democratas) e a esquerda cristã, venceu as presidenciais, com 36,1% dos sufrágios, seguido do ex-presidente Jorge Alessandri, do direitista Partido Nacional (34,9%), e do democrata-cristão Radomiro Tomic (28%). De acordo com a Constituição de então, quando nenhum candidato obtinha a maioria absoluta, seria o Congresso a decidir a eleição. Tal cenário ocorrera nas últimas três eleições e sempre fora eleito o mais votado nas urnas. Contudo, os EUA pressionaram a Democracia Cristã (DC) a apoiar Alessandri, mas Tomic manteve-se fiel à tradição política chilena da época e chegou a acordo com Allende para a sua eleição. A direita tenta impedir a posse do novo presidente e, dois dias antes da votação, o chefe das forças armadas, o general constitucionalista René Schneider é assassinado por um comando da extrema-direita. Allende, que declarara pretender construir o socialismo por via democrática, toma medidas progressistas, como a nacionalização do cobre e das empresas estratégicas, o aprofundamento da reforma agrária, com a expropriação dos latifúndios, o aumento dos salários e o congelamento dos preços dos produtos essenciais. Contudo, a contestação, que, até ao início de 1972, estava restrita aos setores oligárquicos, começa a estender-se às classes médias, o que leva a DC a aliar-se à direita na oposição à maioria presidencial. Entretanto, no seu seio, surgem propostas de radicalização do processo, em especial da parte da ala esquerda dos socialistas e do pequeno, mas ativo, partido da extrema-esquerda Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), que promove a ocupação de fábricas e de terras. Nas legislativas de 1973, a UP regista uma subida, conseguindo 44,2% dos votos, mas fica atrás da CODE, coligação entre a DC e a direita, que obtém 55,5%. Sem maioria parlamentar, Allende fica encurralado entre a necessidade de estabelecer um compromisso com os democrata-cristãos e a radicalização da sua base de apoio. Entretanto, as manobras de desestabilização da direita, apoiadas pela CIA, acentuam-se, com manifestações da classe média (os “cacerolazos”), uma greve de camionistas que paralisa o país, açambarcamentos de produtos básicos e atentados do grupo de extrema-direita Pátria e Liberdade. Começam a surgir rumores de golpe iminente e as forças armadas dão sinais de impaciência, apesar dos esforços do seu chefe, o general constitucionalista Carlos Prats, para as manter dentro da legalidade constitucional. Em 11 de setembro, ocorre um sangrento golpe militar, liderado pelo general Augusto Pinochet, que termina com o bombardeamento do palácio presidencial e a morte de Allende. O regime militar é sinónimo de 17 anos de terror, com prisões, torturas, execuções sumárias e “desaparecimentos” de opositores, a par com uma censura feroz sobre a comunicação social. Os que conseguem escapar vão para o exílio, mas nem aí estão seguros, como provam os assassinatos do general Prats e sua mulher, em Buenos Aires, e do ex-ministro socialista Orlando Letelier, em Washington, da autoria da polícia secreta chilena. Entretanto, face à crise económica que a incapacidade do regime agravara, este contrata os “Chicago boys”, economistas discípulos de Milton Friedman, que ensaiam aí a aplicação das políticas neoliberais, que fariam escola nas décadas seguintes. Se é certo que permitiram um aumento do crescimento económico, agravaram imenso as desigualdades sociais e a pobreza. Entretanto, face às pressões internacionais, o regime, que fizera aprovar uma nova Constituição, de cariz autoritário, em 1980, começa, em 1985, a negociar com alguns dirigentes da oposição moderada. Dois anos depois, são autorizados os partidos políticos, com exceção dos comunistas e da extrema-esquerda, como antecâmara para o plebiscito sobre a reeleição de Pinochet, convocado para 1988. Neste, o “não” vence com quase 55% dos votos e o ditador aceita, relutantemente, convocar eleições gerais para finais do ano seguinte. A oposição apresenta-se unida na Concertação de Partidos pela Democracia, que incluía socialistas, social-democratas, democrata-cristãos, radicais e esquerda cristã, entre outros, e o seu candidato, o democrata-cristão Patricio Aylwin, é eleito presidente. Contudo, apesar de expurgada dos seus elementos autoritários, a Constituição de 1980 mantinha-se em vigor e postulava a existência de senadores nomeados pelos militares, sendo o próprio Pinochet, na qualidade de ex-chefe de Estado, senador vitalício, mecanismos que impediam o julgamento dos crimes da ditadura e reformas constitucionais sem o acordo da direita. Apesar disso, é legalizado o partido comunista. A Concertação venceu as três eleições seguintes, elegendo, sucessivamente, o democrata-cristão Eduardo Frei (filho) e os socialistas Ricardo Lagos e Michelle Bachelet. Entretanto, durante o mandato do segundo, Pinochet é detido em Londres, por ordem do juiz espanhol Baltasar Garzón, que o acusa de crimes contra a humanidade e o quer julgar em Espanha. Após várias reviravoltas, o ditador é libertado dois anos depois, por alegados motivos de saúde, sendo-lhe permitido regressar ao Chile. Em 2005, uma emenda constitucional leva à abolição dos senadores não eleitos e vitalícios. Em 2010, a direita vence as eleições pela primeira vez após a transição democrática, elegendo presidente o milionário Sebástian Piñera, da formação de centro-direita Renovação Nacional (RN). Nas eleições seguintes, em 2014, Michelle Bachelet, que havia saído da presidência com grande popularidade, voltou a ser eleita. Contudo, alguma desilusão com a sua governação levou a que, em janeiro, Piñera tenha voltado a ocupar a cadeira presidencial, após bater o candidato da Concertação, um “cinzento” Alejandro Guillier, que, na 1ª volta, ficara pouco acima da candidata da esquerda, Beatriz Sánchez.

Brasil: A democracia sobreviverá a Bolsonaro?

O Brasil é o maior país da América Latina e o único cuja língua oficial é o português. É o quinto maior e o quinto mais populoso do mundo, com mais de 8,5 milhões de Km2 e quase 210 milhões de habitantes. Estamos em presença de uma sociedade muito desigual, onde uma pequena oligarquia agrária, industrial e financeira detém a maioria das riquezas do país, opondo-se a uma maioria pobre e explorada, com uma classe média frágil e dependente dos ciclos económicos. Por isso, do ponto de vista político, tem uma história bastante agitada, onde os períodos democráticos tendem para a instabilidade e a tentação autoritária está sempre “ao virar da esquina”. Os elevados índices de criminalidade e a corrupção endémica são os sintomas dessa triste realidade. O país é o exemplo típico de mito de Sísifo: quando parece ter descolado definitivamente rumo ao desenvolvimento, surge uma crise que faz tudo voltar ao ponto anterior. Após o fim da ditadura militar, que governou entre 1964 e 1985, com todo o seu cotejo de perseguições políticas, prisões, torturas, assassinatos e exílios forçados, foi eleito pelo parlamento Tancredo Neves, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), a única oposição oficial e tolerada durante a ditadura. Porém, faleceu antes de tomar posse e foi substituído pelo “vice” José Sarney. Face à grave situação económica, com grande aumento da inflação, elabora o “Plano Cruzado”, baseado na criação de uma nova moeda e no congelamento dos preços. Porém, passado um ano, este entra em colapso e a inflação volta a subir. Entretanto, em 1988, é aprovada uma Constituição progressista, que, para além de garantir os direitos cívicos e políticos, consagra os direitos trabalhistas e a prossecução de um desenvolvimento sustentável. Em 1989, ocorre uma dramática eleição presidencial, opondo, no 2º turno, o candidato da direita, Collor de Mello, a Luiz Inácio “Lula” da Silva, um antigo sindicalista metalúrgico, representando o Partido dos Trabalhadores (PT), então uma formação da esquerda radical. O primeiro, que se apresentou como um lutador contra a corrupção (o “caçador de marajás”) e beneficiou de um escandaloso apoio da rede Globo, que deu de “Lula” a imagem de um perigoso esquerdista, acabou por vencer. Dois anos depois, é abalado por um escândalo de corrupção, envolvendo o seu tesoureiro da campanha eleitoral e, após um processo de impeachment”, acaba destituído pelo Congresso. Sucede-lhe o vice-presidente Itamar Franco. O país entra em hiperinflação, que só é controlada com o Plano Real, que cria outra nova moeda, da autoria do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC), do liberal-conservador Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). O sucesso do seu plano vale-lhe a eleição em 1994, sendo reeleito em 1998, derrotando “Lula” em ambas as ocasiões. O seu governo caracterizou-se pela obediência aos cânones neoliberais, com destaque para a privatização de uma série de empresas públicas. Em 2002, fez-se história: após quatro derrotas eleitorais, “Lula” chega à presidência, sendo reeleito em 2006. Os seus governos caracterizaram-se pelos programas sociais, entre os quais se destaca o “bolsa-família”, destinado a garantir uma alimentação decente aos mais pobres. Beneficiando da subida do preço das matérias-primas, devido à grande procura chinesa, a economia brasileira cresce a bom ritmo e o nível de vida da população sobe, fazendo aumentar as classes médias. Contudo, a descoberta de que o PT se encontrava envolvido num escândalo de compra de votos no Congresso (o chamado “mensalão”) desiludiu muitos dos que acreditavam ser o partido diferente dos outros nesse aspeto. Afinal, a força política que afirmava querer mudar o sistema acabou engolida por ele. Não podendo recandidatar o seu líder, o PT aposta em Dilma Rousseff, que, graças ao apoio de “Lula”, vence as eleições de 2010. Contudo, a conjuntura económica começa a toldar-se e, em 2013, surge um conjunto de manifestações populares, primeiro contra o aumento do preço dos transportes em São Paulo, depois reclamando da má qualidade dos serviços públicos. Se começaram à esquerda, são rapidamente apropriadas pela direita, que começa a exigir a queda da presidente. No ano seguinte, nas presidenciais, Dilma consegue uma vitória apertada sobre Aécio Neves, do PSDB. No entanto, a direita não desarma e aproveita um escândalo de corrupção, denominado Lava-Jato, em que estão envolvidas várias figuras cimeiras da classe política, para colocar todas as culpas no PT. Acusada de crise de responsabilidade, a presidente é alvo de “impeachment”, acabando destituída e substituída pelo seu “vice”, Michel Temer, do PMDB. A sua administração caracteriza-se por um conjunto apressado de reformas regressivas ao nível económico e social, que lhe valem uma impopularidade sem precedentes. Em 2017, “Lula” é condenado, em 1ª instância, por corrupção e lavagem de dinheiro. Em abril passado, quando liderava todas as sondagens para as presidenciais de outubro, é preso, após condenação em 2ª instância, ficando impedido de se apresentar a sufrágio. Entretanto, o povo mostrava-se extremamente insatisfeito com os partidos tradicionais, que consideravam responsáveis pela corrupção endémica, e bastante preocupado com o aumento da criminalidade e da insegurança. Acresce, ainda, o ódio de classe da grande burguesia e de amplos setores das classes médias contra os avanços conseguidos pelos mais pobres nos governos do PT. Esses fatores levam ao êxito da candidatura de Jair Bolsonaro, um ex-capitão do exército e até aí um obscuro deputado federal da extrema-direita, defensor da ditadura militar, misógino, homofóbico e racista. O PT, impossibilitado de candidatar “Lula”, avança com Fernando Haddad, mas a campanha da maioria da comunicação social, disseminando a narrativa de que a maioria da corrupção era obra do partido, deixou-o com poucas hipóteses. Após a sua eleição, Bolsonaro formou um governo baseado na sua base de apoio, resumida nos três “bês”: boi (agronegócio), bala (militares e polícias) e bíblia (igrejas evangélicas). A isso acrescenta-se a escolha de Paulo Guedes, um economista ultraliberal para dirigir a economia, o que indicia a prossecução de políticas antipopulares, com destaque para a reforma regressiva da Previdência (Segurança Social). A sua visão extremamente reacionária da sociedade foi expressa nas tristes e execráveis declarações da sua ministra da família, a pastora evangélica Damares Alves. Por outro lado, os escândalos que envolvem os seus filhos são sinais esperados de que pouco ou nada mudará na questão do combate à corrupção. É agora tempo de a esquerda brasileira refletir sobre os erros cometidos pelos executivos do PT e de lutar para defender a democracia e a Constituição, ameaçadas por uma presidência que por ela nutre um grande desprezo.

E pronto, terminamos aqui a nossa viagem pelo mundo, iniciada em Portugal e simbolicamente terminada no Brasil. Dela podemos concluir que o mundo, em 2019, é um lugar perigoso, onde as tendências autocráticas, os nacionalismos agressivos, a intolerância, o ódio e a insensibilidade social tendem a crescer. A esquerda tem um trabalho hercúleo para, em todas as latitudes, mostrar que é uma alternativa credível e que não temos de estar limitados a escolher entre o neoliberalismo do “centrão” e o autoritarismo de cariz identitário da extrema-direita. E também que não é tornando-se autoritária e sustentada em “caudillos” que o consegue. Nunca como hoje a solidariedade internacionalista foi tão necessária. Agora, há que encontrar formas de a pôr em prática!...


Nota: Estes artigos foram elaborados com o auxílio da Wikipédia em diferentes línguas.

Sobre o/a autor(a)

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra
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