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Uma viagem pelo mundo em 2019 (2): o Norte de África e o Médio Oriente

Estamos em presença de uma região politicamente bastante conturbada e onde decorrem, atualmente, alguns dos conflitos mais mortíferos do planeta, como os que dilaceram a Síria e o Iémen. Artigo de Jorge Martins
Iémen: a guerra já provocou milhares de mortos e a fome ameaça grande parte da população; foto de KarimaKahlany/Twitter
Iémen: a guerra já provocou milhares de mortos e a fome ameaça grande parte da população; foto de KarimaKahlany/Twitter

A especificidade e a proximidade identitária destas duas regiões, onde se situa a maioria do mundo árabe e alguns dos mais importantes países islâmicos do mundo, como a Turquia e o Irão, leva-me a considerá-la em separado relativamente ao resto dos continentes africano e asiático. Acresce, ainda, que estamos em presença de uma região politicamente bastante conturbada e onde decorrem, atualmente, alguns dos conflitos mais mortíferos do planeta, como os que dilaceram a Síria e o Iémen, em resultado da luta pela hegemonia regional entre a Arábia Saudita e o Irão, da luta pelo controlo dos recursos petrolíferos por parte das grandes potências e dos interesses da indústria armamentista. É também aí que ocorre o drama palestiniano, com uma ocupação israelita cada vez mais agressiva e impune, num contexto internacional que favorece o estado judaico. No plano político, as chamadas “primaveras árabes” acabaram por degenerar em “outonos” ou, mesmo, em “invernos”, em especial nos dois casos acima citados e o autoritarismo continua a ser a regra da região, tal como dantes.

 

Norte de África: O autoritarismo com novos e velhos protagonistas e o caos líbio

Foi na Tunísia e no Egito que as “primaveras árabes” tiveram início, em 2011. Oito anos depois, tudo voltou à primitiva forma, com os regimes autoritários a pontificarem, à exceção da Líbia, que mergulhou no caos.

 

Em Marrocos, o essencial do poder reside no rei, apesar de existir um Parlamento eleito e um executivo da sua confiança, liderado pelos islamitas moderados do Partido da Justiça e Desenvolvimento (PJD). Contudo, apesar de algumas importantes reformas democráticas empreendidas pelo poder, após protestos de rua na sequência das “primaveras árabes”, subsistem, ainda, bastantes restrições às liberdades, em especial de imprensa, e os serviços secretos são omnipresentes. A presença de grupos islamitas radicais, populares entre as camadas mais pobres da população e que levam a efeito atos terroristas esporádicos (como o recente assassinato de duas turistas nórdicas, nas montanhas do Atlas) é o pretexto para a repressão. Do outro lado, existem grupos feministas cada vez mais ativos, em luta pelo aumento dos direitos das mulheres. Ao mesmo tempo, o monarca Mohamed VI encontra-se doente e passa grande parte do tempo no estrangeiro, o que adensa os boatos sobre a sua sucessão.

 

Entretanto, prossegue a ocupação marroquina do Sahara Ocidental e aumenta a repressão sobre o povo saharaui. Apesar de um acordo de cessar-fogo, assinado nos anos 90, entre o governo de Rabat e a Frente Polisário, patrocinado pela ONU, que previa a realização de um referendo sobre o futuro do território, Marrocos foi encontrando pretextos para o adiar ad eternum, apostando na política do facto consumado. Construiu, mesmo, um muro que separa a maioria do território das áreas libertadas, situadas na sua zona oriental, controladas pelos guerrilheiros independentistas. Uma parte significativa da população vive aí e em campos de refugiados situados próximos da cidade fronteiriça de Tindouf, na Argélia. O Sahara Ocidental possui grandes reservas de fosfatos e as suas águas de pesca são bastante ricas, o que aguça o apetite de países mais ricos. É isso que explica a cumplicidade das antigas potências coloniais (França e Espanha) e dos EUA com a monarquia marroquina, a que acrescem as questões estratégicas: se, durante a “guerra fria”, era vista como um baluarte anticomunista, agora é tida como uma barreira à progressão do islamismo radical. Por isso, a solução da questão não está para breve e a Frente Polisário ameaça com o regresso à luta armada.

 

Na vizinha Argélia, o poder não foi posto em causa durante as “primaveras árabes”, que aqui tiveram um eco reduzido. A sangrenta guerra civil dos anos 90, entre o governo da FLN, apoiado pelos militares, e grupos islamitas radicais, que se seguiu à anulação das eleições de 1992, ganhas pelos islamitas da FIS, terá levado uma parte significativa da população a resignar-se ao status quo. A ameaça terrorista diminuiu significativamente, embora subsistam alguns grupos radicais nas regiões desérticas meridionais, em especial após a eclosão da crise no Mali. O presidente Abdelaziz Bouteflika tem mais de 80 anos e encontra-se doente, pelo que a questão da sua sucessão começa a agitar os meios políticos argelinos. Apesar de haver eleições parlamentares, o Parlamento tem poderes limitados e as formações islamitas mais radicais foram ilegalizadas, além de que o partido governamental controla o aparelho de Estado e a maior parte da comunicação social. Na verdade, quem dirige o país é aquilo que os argelinos designam como o “pouvoir”, ou seja, o Estado subterrâneo, que toma as grandes decisões nos bastidores e onde fervilham as intrigas palacianas. Dele fazem parte os militares, os serviços secretos, a família do presidente, os líderes da FLN e alguns empresários ligados ao governo. A sucessão de Bouteflika passa por aqui e as eleições presidenciais subsequentes serão uma mera formalidade para a sua legitimação aos olhos do povo.

 

A Tunísia, onde eclodiu a primeira revolta que deu início às “primaveras árabes”, era vista, até há pouco, como o único caso de sucesso das ditas, já que, apesar de alguns percalços, levou a cabo uma transição democrática com êxito. Os islamitas moderados da Ennhada, ligados à Irmandade Muçulmana, venceram as primeiras eleições livres. O assassinato de dois líderes da esquerda, alegadamente por grupos salafistas, e a ameaça aos direitos das mulheres, no país árabe onde gozam de maior liberdade, a par com a falta de satisfação das aspirações populares no plano económico e social, levou ao triunfo do conjunto dos partidos laicos nas legislativas e presidenciais seguintes. Nestas últimas, foi eleito Beji Caid Essebsi, líder do Nidaa Tounes, partido vencedor das eleições parlamentares. Rapidamente, alguns elementos ligados ao regime do deposto presidente Ben Ali voltaram a ocupar lugares de destaque, o que gerou grande controvérsia. Em 2015, vários atentados terroristas contra turistas ocidentais, que fizeram dezenas de mortos, desferiram um golpe devastador no turismo, principal fonte de receita do país, originando uma crise económica. O descontentamento popular cresceu e, em dezembro, um jornalista residente no sul do país imolou-se pelo fogo, imitando o gesto de Mohamed Bouazizi, que levou à revolta de 2011. Contudo, salvo alguns protestos na região, o seu efeito não foi o mesmo, não só porque grande parte da população deixou de acreditar em mudanças efetivas, mas também pelo receio de que se possa cair numa situação de guerra civil e num caos semelhante à da vizinha Líbia. A Ennhada venceu esmagadoramente as municipais de maio e é favorita para as legislativas de outubro. As presidenciais decorrerão no mês seguinte e resta saber quem será o sucessor do idoso presidente Essebsi, já com 92 anos e saúde débil. Apesar deste pretender recandidatar-se, há quem, no seu partido, ache que chegou o momento de ele sair de cena e apostar num candidato mais jovem.

 

A Líbia está instalada no caos, desde a eclosão da revolta que, com o apoio militar francês, britânico e estadunidense, derrubou e executou Khadafi, em 2011. O país, resultado da união de três regiões diferentes (a Tripolitânia, a oeste; a Cirenaica, a leste, e o Fezzan, a sul), nunca teve um verdadeiro aparelho de Estado. O verdadeiro poder sempre residiu nas tribos e o poder ditatorial do antigo líder, autointitulado “guia da revolução”, não foi mais que uma forma de federar os interesses daquelas, naquilo que designou por Jamahiriya. Após a queda do ditador, rebentou uma guerra civil de contornos diferenciados, onde se digladiaram várias milícias tribais, dirigidas por diferentes “senhores da guerra”, grupos islamitas radicais e forças laicas e seculares. Em 2014, realizaram-se eleições legislativas, que nada resolveram. A partir de 2015, o país passou a ter dois governos: um na zona oriental, em Tobruk, apoiado pelos países ocidentais; outro, liderado por líderes tribais e com apoio de alguns grupos islamitas, em Tripoli. Mas ambos controlam pouco território e grande parte do país está nas mãos dos grupos acima referidos, um dos quais o Daesh, que controla algumas áreas no Norte e Leste líbios. O facto de o país ser um grande produtor de petróleo e gás aguça os “apetites”, tanto das grandes potências e das grandes empresas multinacionais do setor como dos vários atores locais. Sob mediação franco-italiana, os dois governos líbios acordaram na realização de eleições legislativas e presidenciais em 2018, mas estas voltaram a ser adiadas e não se sabe se e quando se realizarão.

 

No Egito, o segundo país que protagonizou a “primavera árabe”, com as gigantescas manifestações na Praça Tahir, que puseram fim ao regime ditatorial de Hosni Mubarak, voltou a cair no autoritarismo. Após o golpe que derrubou Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, o primeiro presidente eleito da história do país, aquela organização islamita moderada foi ilegalizada e a repressão abateu-se sobre os seus militantes e simpatizantes. O general Al-Sisi, autor do pronunciamento, que teve variados apoios, desde liberais laicos a salafistas, passando pela minoria cristã copta, fez-se eleger presidente no ano seguinte e foi reeleito em março, num ato eleitoral boicotado por quase toda a oposição. A situação estratégica do país, que controla o canal de Suez e faz a ligação entre a África e o Médio Oriente, leva as grandes potências a não querer que este seja governado por quem não se renda aos seus interesses. Assim, o atual “homem forte” do país tem o apoio dos EUA, da Rússia, de Israel e da Arábia Saudita. Apesar da forte repressão, grupos islamitas radicais polulam no Sinai, enquanto outros, embora enfraquecidos, continuam ativos no resto do território, como se viu no recente atentado que matou quatro turistas vietnamitas junto às pirâmides de Gizé, com o intuito de causar danos ao turismo, setor vital da economia egípcia.

 

Médio Oriente: Luta pela hegemonia, guerras por procuração e o drama palestiniano

 

O Médio Oriente, onde se encontram as maiores riquezas petrolíferas do mundo, é, desde há muito, uma das regiões mais conturbadas do planeta. A luta pela hegemonia entre a Arábia Saudita e o Irão tem-se refletido nas mortíferas guerras “por procuração” da Síria e do Iémen, remetendo para segundo plano o eterno drama do povo palestiniano. Simultaneamente, a Turquia assume-se como ator importante da região, em especial combatendo as pretensões dos curdos. O povo curdo viu-se dividido entre turcos, sírios, iraquianos e iranianos e pretende libertar-se dos diversos jugos a que se encontra submetido. Para já, só no Curdistão iraniano as coisas estão, aparentemente, calmas. Há, ainda, a referir a marginalização de um Qatar que tende a “correr em pista própria” por parte dos sauditas e seus aliados.

 

A Turquia, candidata à adesão à CEE/UE desde 1963, fartou-se de (des)esperar por uma resposta positiva dos europeus. Depois de, no início dos anos 90, se ter virado para os novos países turcófonos do Cáucaso e da Ásia Central, recém-saídos do jugo soviético, voltou a tentar entrar no “clube europeu”. Porém, as crescentes resistências das opiniões públicas ocidentais, acicatadas por uma extrema-direita em crescimento, levaram a maioria dos governos da UE a retrair-se. Chegado ao poder, em 2002, com uma agenda democratizadora, que pretendia romper com a tutela dos militares, defensora da ordem laica kemalista, Erdoğan e o seu partido, o islamita moderado AKP, efetuou algumas reformas democráticas, aboliu a pena de morte e manifestou abertura face aos curdos, de forma a poder cumprir os critérios de Copenhaga para a adesão à UE. E, se favoreceu uma maior islamização da sociedade, esta não pôs em causa o essencial da laicidade do Estado. Porém, dominados os militares e as instâncias judicias defensoras da herança kemalista (como o Tribunal Constitucional), o então primeiro-ministro ensaiou uma via tendencialmente autoritária no plano interno, ao mesmo tempo que, a nível internacional, se virou para o Médio Oriente, algo sem precedente desde o fim do império Otomano. Assim, rompeu a tradicional aliança informal com Israel e passou a apoiar as formações associadas à Irmandade Muçulmana, no Egito, na Tunísia e na Palestina (o Hamas). Com isso, venceu a histórica desconfiança árabe face aos turcos. Ao mesmo tempo, regressou à tradicional intransigência face aos curdos, que viram a repressão voltar a intensificar-se. Em 2015, uma intentona militar falhada, de contornos mal esclarecidos, tentou depor Erdoğan. Este deu um contragolpe devastador, fechando órgãos de comunicação social, prendendo jornalistas, militares e deputados pró-curdos, violando a sua imunidade parlamentar, demitindo centenas de funcionários públicos e professores universitários e aumentando a repressão nas regiões curdas do Sudeste do país. Em junho de 2018, após ter obtido, um ano antes, uma vitória tangencial e duvidosa num referendo constitucional que lhe permitiu passar do parlamentarismo para o presidencialismo, Erdoğan foi eleito presidente, com o apoio do seu AKP e da extrema-direita nacionalista (MHP), numa aliança que obteve, igualmente, a maioria no Parlamento. Na guerra civil síria, o agora presidente turco apoiou, praticamente desde o início, a oposição sunita a Assad. A vitória dos curdos sobre o Daesh, em Kobane, junto à fronteira com a Turquia, permitiu que estes fossem ocupando grande parte da área setentrional da Síria, onde constituem a maioria da população. Com receio de que o êxito dos curdos sírios inspirasse os seus compatriotas que vivem no Sueste do país, Ankara decidiu intervir militarmente, ocupando o enclave curdo de Afrin. Desde que os curdos iraquianos ganharam grande autonomia no Iraque pós-Saddam que Ankara reage epidermicamente contra quaisquer veleidades de criação de um Curdistão independente. Daí as divergências crescentes face aos EUA, principais apoiantes dos curdos no conflito. Apesar do autoritarismo crescente, expresso nos grandes poderes que o novo texto constitucional lhe confere, o apoio popular a Erdoğan já foi maior, como prova o facto de o seu partido só ter obtido a maioria absoluta no Parlamento através de uma coligação com a extrema-direita ultranacionalista.

Na Síria, a guerra civil que se seguiu às manifestações da oposição contra Assad, em 2011, na sequência das “primaveras árabes”, continua a fazer vítimas. Nela se encontram diferentes atores: o governo de Assad, apoiado internamente pela minoria alauita (uma corrente do xiismo) e outras minorias religiosas e externamente pela Rússia, o Irão e o Hezbollah libanês; a oposição sunita, constituída por laicos e islamitas moderados, federada no chamado Exército Livre da Síria, com o apoio dos EUA, do Ocidente, da Turquia, da Arábia Saudita e das monarquias do Golfo; os sauditas e os seus aliados apoiam também os salafistas do Tahir-al-Sham, antiga Frente Al-Nusra, faces da Al-Qaeda no país; as milícias curdas das Unidades de Proteção Popular (YPG), entretanto integradas nas Forças Democráticas da Síria, que incluem outros grupos étnicos, apoiadas pelos EUA e, até agora, não hostilizadas pelo exército sírio e pelos russos; por fim, o Daesh, financiado secretamente por importantes círculos sauditas e de outros países do Golfo. Atualmente, as tropas sírias controlam quase 2/3 do território (o Oeste, o Centro e o Sul), as forças curdas e aliados mais de 1/4 (o Nordeste e Leste), a oposição sunita e a Turquia, cerca de 10% (o Norte, incluindo parte da cidade de Alepo, a segunda do país, e a zona de Afrin, ocupada por tropas turcas para evitar a existência de uma entidade curda junto à sua fronteira), enquanto o Daesh, que chegou a ocupar a quase totalidade do Leste, Centro e Sul do país, está, para já, reduzido a pequenas bolsas, correspondentes a 0,5% do território, perdendo, assim, grande parte dos poços petrolíferos que lhe asseguravam a sobrevivência económica. Em resumo, a guerra tem corrido bem a Assad e seus aliados e parece-me que a sua vitória sobre a oposição sunita será uma questão de tempo. Resta saber o que acontecerá aos curdos da Síria, em especial se se confirmar a intenção de Trump de retirar do terreno as tropas que apoiam as suas forças, e se o Daesh conseguirá ou não se reagrupar (eventualmente, com nova roupagem) e voltar a constituir uma ameaça.

No Líbano, um país dividido constitucionalmente por linhas étnico-religiosas, a guerra na vizinha Síria tem constituído um fator de instabilidade, com os xiitas (e o seu principal partido e braço armado, o Hezbollah) e a maioria dos cristãos ao lado de Assad e os sunitas e outros cristãos apoiando a oposição. Além do mais, o país recebeu um enorme número de refugiados em relação à sua população. Após sucessivos adiamentos, realizaram-se eleições gerais em maio. Estas, onde, pela primeira vez, foi utilizado um sistema de representação proporcional, deram uma aliança clara à aliança constituída pelos primeiros. O problema é que, de acordo com o Constituição, os três principais cargos do Estado estão consignados, obrigatoriamente, às três principais comunidades: o PR tem de ser um cristão maronita, o PM um muçulmano sunita e o presidente do Parlamento um muçulmano xiita. Essa disposição e a necessidade de amplas maiorias para eleger o presidente ou formar um governo, de forma a manter o equilíbrio entre os diferentes grupos, geram impasses sucessivos. Um problema grave num momento em que o país se encontra a braços com uma enorme dívida externa e aguarda a intervenção do FMI. Algo que não é nada bom augúrio, já que a austeridade e o empobrecimento dela resultante podem potenciar tensões políticas e sociais, que poderão reabrir os confrontos interétnicos que marcaram a guerra civil dos anos 70 e subsequente intervenção síria.
 

Ao contrário de outros atores regionais, a Jordânia tem-se pautado por algum “low profile” na crise síria, embora tenha manifestado o seu apoio à oposição a Assad. Contudo, vê-se a braços com o recebimento de refugiados na sua fronteira setentrional. Num regime semelhante ao de Marrocos, em que existe um Parlamento eleito, mas onde o poder reside no rei, registaram-se, em 2011-12, grandes protestos populares, originados pela repercussão das “primaveras árabes” e pela crise económica que gerou crescente insatisfação da população de origem palestiniana, em geral mais pobre, face à monarquia e à elite beduína que a sustenta. Para aplacar a rua, o rei Abdullah efetuou reformas no sentido da democratização do regime, em especial a alteração do sistema eleitoral, que favorecia as áreas rurais, onde reside a maioria dos beduínos, em detrimento das urbanas, onde se concentram os palestinianos. Em 2016, realizaram-se eleições gerais, onde se verificou o avanço da esquerda laica e dos islamitas. A relação com Israel mantém-se num clima de “paz fria” e assim se deverá manter, sem grandes alterações.

 

O Iraque, após a criminosa invasão levada a efeito pelos EUA, em 2003, da guerra civil que se seguiu nos anos seguintes e da ocupação de grande parte do seu território pelo Daesh entre o início de 2014 e o final de 2017, parece estar a recuperar, mas o país continua no “fio da navalha”. Bush e os seus cúmplices na administração estadunidense de então, que foram para a guerra sob o falso pretexto das armas de destruição maciça, acabaram por oferecer uma prenda a dois dos seus principais inimigos: o Irão e a Al-Qaeda. Mesmo muito enfraquecido, Saddam Hussein era um adversário dos iranianos, contra os quais, nos anos 80, travou uma guerra de oito anos, e o seu regime “baathista”, embora fosse uma ditadura brutal, era laico. Com o seu derrube e a ascensão ao poder da maioria xiita, próxima de Teerão, o país dos ayatollas passou a ter, através da sua aliada Síria, ligação direta ao Mediterrâneo, garantindo uma rota alternativa ao Golfo para as suas exportações petrolíferas, e ao Hezbollah libanês, a quem fornece armamento, ameaçando o aliado israelita. Por sua vez, ao invés do que afirmou Bush, a Al-Qaeda era inexistente no país e só lá se instalou quando Saddam foi derrubado. Foi a partir de um grupo de militantes radicais do seu ramo iraquiano que nasceu o Daesh. O regime “baathista” era maioritariamente controlado pela minoria sunita, que controlava os imensos recursos petrolíferos do país, enquanto a maioria xiita e os curdos eram pobres, marginalizados e reprimidos. Após a guerra, tudo se inverteu: os xiitas tomaram o poder, os curdos reforçaram a autonomia que a zona de exclusão aérea decretada pela ONU desde a 1ª guerra do Golfo lhes permitiu consolidar, enquanto os sunitas passaram a ser marginalizados. A ideia de uma federação tricomunitária, cara aos curdos, é descartada pelas outras duas comunidades: os xiitas, porque são maioritários no país e detém o poder central; os sunitas, porque os territórios habitados maioritariamente por xiitas (que vivem, em grande parte, no Sul e no Centro) e curdos (que ocupam o Norte e Nordeste) são dotados de grande número de poços de petróleo, mas o mesmo não se passa com aqueles onde eles são a esmagadora maioria (o Oeste e o Noroeste), sendo a exceção a zona de Mossul. Não foi por acaso que a sua conquista foi fulcral para a estratégia do Daesh. A marginalização dos sunitas conduziu muitos destes a apoiar a organização islamita radical, vista como o instrumento capaz de golpear xiitas e curdos e vingar as humilhações que estes lhes infligiram. Por isso, só ao fim de quase quatro anos de guerra, e com o apoio dos EUA, as tropas iraquianas conseguiram reconquistar os territórios perdidos. Entretanto, em setembro de 2017, o governo autónomo curdo levou a efeito, à revelia de Bagdad, um referendo sobre a independência do Curdistão iraquiano, que se saldou numa votação esmagadora favorável a esta. O governo central retaliou, ocupando a cidade de Kirkuk, situada numa zona rica em petróleo, que os curdos reivindicam como sua capital e que tomaram após a derrota do Daesh. Por fim, as autoridades do Curdistão cederam, anulando a consulta, e o seu presidente, o histórico líder Masoud Barzani, abandonou o poder. Nas eleições gerais de maio, o partido de Moqtada Al-Sadr, um radical xiita próximo do Irão, foi o mais votado, mas, num quadro partidário muito fragmentado, acabou por ser formado um executivo abrangente, com membros dos três grandes grupos étnico-religiosos, embora com maioria xiita. O país continua com graves problemas, com parte das infraestruturas destruídas e grande parte da sua população na pobreza e bastante vulnerável à violência sectária e a atentados terroristas, que ainda ocorrem com alguma frequência e continuam a fazer vítimas. E não parece que, tão cedo, a situação venha a melhorar.

Por sua vez, o ultraconservador reino da Arábia Saudita atravessa um período de agitação palaciana que ainda não se sabe como terminará. Com 83 anos e doente, a sucessão do rei Salman está na ordem do dia. Ao contrário da maioria das monarquias, na casa de Saud a sucessão não é feita automaticamente do pai para o filho primogénito, sendo frequentemente o sucessor do monarca falecido um dos seus irmãos ou outro familiar. O jovem príncipe Mohammad Bin Salman (MBS), atual ministro da Defesa, com apenas 33 anos, tornou-se o principal favorito a ocupar o seu lugar. Cultivou uma imagem de reformador, sendo da sua autoria a medida tomada em junho findo de acabar com a absurda proibição de as mulheres poderem conduzir. Contudo, essa imagem ficou manchada com o bárbaro assassinato do jornalista e opositor Jamal Khashoggi no consulado saudita em Istambul. Entretanto, no plano externo, o país trava, desde há muito, uma luta pela hegemonia regional com o Irão, que o príncipe tem intensificado. Depois da intervenção militar contra os xiitas do Bahrain, o apoio ao golpe que depôs Morsi no Egito, o envolvimento na guerra civil na Síria e uma breve e mal explicada detenção do primeiro-ministro libanês, o sunita Saad Hariri, a Arábia Saudita resolveu intervir militarmente no vizinho Iémen, em favor do governo de Sana, contra os rebeldes houtis, xiitas, apoiados pelo Irão, sob a capa de uma coligação internacional de estados sunitas da zona e do Paquistão. Porém, esta não teve os efeitos planeados e o país mergulhou numa cruenta guerra civil sem fim à vista. Entretanto, MBS contribuiu para o isolamento regional do Qatar, acusando a monarquia vizinha de fomentar o terrorismo, devido ao apoio qatari à Irmandade Muçulmana. O facto de ser um dos maiores produtores mundiais de petróleo, com a facilidade de o poder extrair a baixos custos e, portanto, ser capaz de aguentar preços do barril mais baixos, torna o país um aliado vital para os EUA e para o Ocidente em geral, levando este a fechar os olhos à natureza medieval do regime saudita e às suas constantes violações dos direitos humanos. Contudo, e de forma muito lenta, o reino move-se!

As restantes monarquias absolutas do Golfo Pérsico, embora um pouco mais abertas que a saudita, possuem características semelhantes. Assentes na riqueza petrolífera dos seus territórios, asseguram um bom nível de vida à maioria da sua população, deixando os papeis menos qualificados para os imigrantes pobres vindos do subcontinente indiano e das Filipinas. Assim, o Kuwait, após a invasão iraquiana de 1991 e a guerra subsequente, recuperou bem e tem-se mantido estável. Apesar de algum crescimento da oposição (tanto liberal como islamita), o poder dos Al-Sabah não parece ameaçado. Já o Bahrain, onde a monarquia é sunita, mas a maioria da população é xiita, viveu momentos de instabilidade na sequência das “primaveras árabes”, em 2011. A exigência de reformas levou a grandes protestos populares, que, apesar de duramente reprimidos, não abrandaram. Temendo o derrube da família Al-Khalifa e a sua substituição por um regime pró-iraniano, a Arábia Saudita e os seus aliados resolveram intervir, a pedido dos EUA (que aí detém a maior base naval da região), abafando a revolta, cujos principais líderes foram encarcerados. Por sua vez, os Emiratos Árabes Unidos são um aliado fiel dos sauditas e continuam a exibir o seu novo-riquismo para os turistas ocidentais, em especial no Dubai. No Oman, o sultão Qaboos, no poder desde 1970, sofreu uma breve contestação em 2011, mas a repressão e algumas reformas cosméticas acabaram por contê-la. Apesar de ter 78 anos e estar gravemente doente, a sua sucessão é tabu no país.

 

O Qatar surge aqui como desalinhado face às restantes petromonarquias e merece um tratamento autónomo. A sua ambição de ganhar protagonismo na região suscitou a desconfiança dos sauditas, que se consideram os líderes da península arábica e da resistência contra o que consideram ser o expansionismo iraniano. A criação da Al-Jazira, a primeira estação global do mundo árabe e com uma informação relativamente livre, em 1996, foi sinal de uma tímida liberalização interna e deu prestígio ao emirato no Ocidente. A família real qatari, os Al-Thani, aproveita a riqueza petrolífera para conseguir uma influência no mundo muitíssimo superior à dimensão do país. Foi ela que lhe permitiu comprar os votos que permitiram a este ser o escolhido para albergar o Mundial de futebol de 2002. Ao mesmo tempo, e na política regional, apoiou os grupos ligados à Irmandade Muçulmana, o que enfureceu os sauditas. As divergências com estes intensificaram-se e as tropas qataris acabaram por retirar-se da coligação que invadiu o Iémen, sob o comando de Riad. Em 2017, a Arábia Saudita, os Emiratos Árabes Unidos, o Bahrain e o Egito decretaram um embargo económico ao país, acusando-o de apoiar terroristas. Para o seu levantamento, entregaram-lhe um ultimato, que incluía condições inaceitáveis, como o encerramento da Al-Jazira, que acusavam de interferir nos seus assuntos internos. O emirato recusou-o e, em resposta, estreitou relações com a Turquia e com o Irão. A crise escalou, com outros países islâmicos alinhados com os sauditas a aderir ao boicote, apesar das tentativas dos EUA, que mantém aí uma importante base aérea, para obter um entendimento. Recentemente, os sauditas ameaçaram transformar o país numa ilha, através da construção de um canal ao longo do istmo que separa a pequena península qatari da Arábia, por onde passa a fronteira entre os dois países. O que significa que a crise está para durar, embora não se preveja uma escalada militar.

Para terminar a ronda pela península arábica, falta falar do martirizado Iémen. É o país mais pobre da região, sem os recursos petrolíferos que fazem as riquezas dos seus vizinhos, mas possui uma invejável posição estratégica, junto do golfo de Aden e do estreito de Bab-el-mandeb, que dão entrada para o mar Vermelho, rota por onde passa grande parte do comércio mundial. Por isso, o seu controlo é considerado fulcral por parte das grandes potências. Em 2011, a “primavera árabe” chegou ao país, inspirada na revolução egípcia, com milhares de pessoas nas ruas, exigindo a saída do presidente Saleh, há 32 anos no poder. A resposta foi um misto de repressão e de promessas de reformas, entre as quais a de não se recandidatar em 2013. Após quase um ano de agitação, que provocou dezenas de mortos, um acordo, assinado por instância saudita, previa a saída do presidente dentro de três meses, após o que ocorreriam eleições presidenciais em que governo e oposição apoiariam o vice-presidente Hadi. Assim aconteceu, mas a verdade é que o país estava já inexoravelmente dividido: no Noroeste, os zaiditas (uma seita xiita), há muito marginalizados, exigiam uma mudança efetiva de regime e criaram a milícia houthi; no Sudoeste, existia um movimento separatista, que queria restabelecer o Iémen do Sul, antiga república pró-soviética, com capital em Aden, o maior porto do país, que existiu até à reunificação iemenita, em 1990; por fim, no desértico Sueste, pontificavam grupos salafistas, entre os quais se contava a temível Al-Qaeda da Península Arábica (AQPA), e milícias tribais. Em maio de 2015, os rebeldes houthis tomaram a capital, Sana’a, e avançaram em direção a Aden, onde se refugiaram Hadi e o seu governo. Foi então que, com o apoio dos EUA, a Arábia Saudita e outros estados sunitas seus aliados lançaram uma intervenção militar contra os rebeldes, que passaram, então, a receber apoio iraniano. Ao mesmo tempo, a AQPA e o Daesh, que, entretanto, também fizera a sua aparição no terreno, aproveitaram para lançar novos ataques e controlar novos territórios. Entretanto, o ex-presidente Saleh, que regressara ao país como aliado dos rebeldes, acabou morto por estes, quando se preparava para mudar de campo. Até ao momento, a situação no terreno é de impasse. A guerra já provocou milhares de mortos e a fome ameaça grande parte da população, em grande parte devido aos bombardeamentos sauditas sobre áreas civis e ao bloqueio por estes imposto às importações de bens alimentares. Em dezembro, as duas partes aceitaram participar em conversações de cessar-fogo, sob a égide da ONU, mas ainda é cedo para saber se produzirão quaisquer resultados.

Como já vimos, o Irão é outro ator fundamental na região. País não árabe e maioritariamente xiita, ganhou importância no mundo islâmico, após a revolução que depôs o xá e transformou a Pérsia numa república islâmica, sob a direção do ayatollah Khomeini, e tornou-se um inimigo figadal dos EUA e de Israel O regime é, na essência, tecnocrático e autoritário, onde o chamado Guia Supremo (primeiro Khomeini, depois o ayatollah Ali Khamenei) é a principal autoridade e instâncias clericais controlam o poder judicial e decidem quem pode ou não ser candidato às eleições. Existe, porém, um espaço democrático de pequeno espectro, que, dentro dos condicionalismos referidos, permite a eleição direta do presidente da República e do Parlamento. Nestas, a luta trava-se entre a linha dura e a moderada do regime. Os primeiros (conhecidos por “principialistas”) são mais intransigentes, tanto no plano interno como no externo: tendem a restringir mais as liberdades cívicas, são mais rígidos na defesa dos princípios religiosos e, consequentemente, ultraconservadores em questões de costumes, como os direitos das mulheres, advogam um maior nacionalismo económico e são mais hostis ao Ocidente em geral e aos EUA em particular. Já os segundos (os “reformistas”) são favoráveis a uma maior abertura política e uma menor rigidez nos princípios, mesmo se são, igualmente, conservadores, e defendem uma maior abertura económica ao exterior e uma menor hostilidade face ao mundo ocidental. O ex-presidente Ahmadinejad representava os primeiros; o atual, Hassan Rouhani, eleito em 2013 e reeleito em 2017, os segundos. Foi ele um dos obreiros do acordo sobre o nuclear iraniano, assinado com os EUA. A rutura daquele por parte da administração Trump e a imposição de sanções às empresas que negoceiem com Teerão ou invistam no país é um rude golpe para o campo reformista, que apostou as “fichas” todas no entendimento com os ocidentais, mesmo que os europeus se mantenham fieis a ele. A economia iraniana tem sofrido com a quebra dos preços do petróleo e as sanções já estão a contribuir para o agravamento da situação. E, como sempre acontece nestes casos, são os mais desfavorecidos que mais sofrem. Por isso, é provável que, nas próximas eleições legislativas e presidenciais, os “duros” voltem ao poder, tal como aconteceu em 2005, em que a desilusão com o último presidente reformista, Mohammad Khatami, levou os principialistas novamente ao poder. Ao invés, na frente externa regional, em que disputa a hegemonia com a Arábia Saudita, a liderança iraniana tem razões para sorrir, com a previsível vitória de Assad na guerra civil síria, as dificuldades sauditas no Iémen e a oportunidade que esta lhe forneceu de ter no Qatar um amigo do outro lado do Golfo, após o esmagamento da revolta xiita no Bahrain.

O drama palestiniano: Uma relação de forças muito favorável para os israelitas

Deixei para o fim Israel e o drama da Palestina, que, pela longa duração e especificidade da questão, merece uma análise mais aprofundada. Nos últimos anos, após a retirada dos seus colonatos de Gaza, o estado judaico tem intensificado a colonização da Cisjordânia. Apesar da retirada das suas forças, os israelitas transformaram o primeiro daqueles territórios numa autêntica prisão a céu aberto, cercando-o por terra, mar e ar. A única saída, a fronteira com o Egito, foi fechada pelo governo de Al-Sisi, com o pretexto de combater a infiltração de terroristas que operam na vizinha península do Sinai. A verdade é que, após a vitória nas únicas eleições democráticas realizadas para a Autoridade Palestiniana (AP), em 2006, o Hamas domina Gaza, que passou a controlar em definitivo no ano seguinte, após expulsar a secular Fatah numa breve guerra civil. Ora, o movimento islamita é o ramo palestiniano da Irmandade Muçulmana, o principal inimigo da ditadura egípcia, que a persegue com ferocidade, prendendo, torturando e, por vezes, executando os seus militantes. Daí o grande entusiasmo israelita com a deposição de Morsi. E, sempre que os palestinianos lançam mísseis artesanais para território israelita, mesmo sem causar danos pessoais, lá vem uma reação punitiva e desproporcionada por parte de Israel, causando numerosas vítimas civis. Ou, como aconteceu em maio, se se aproximarem das barreiras erguidas pelo ocupante para protestar, este abre fogo sobre a multidão desarmada ou armada com pedras e fisgas, atingindo, por vezes mortalmente, crianças e idosos. Na Cisjordânia, a ocupação prossegue, com todo o seu cotejo de repressão e humilhações sobre os palestinianos aí residentes. Aqui, a Fatah domina desde 2007, após o presidente Mahmoud Abbas ter demitido o governo do Hamas, na sequência dos confrontos em Gaza. Porém, o líder da AP encontra-se doente e enfraquecido. A corrupção da sua administração e a sua incapacidade de fazer frente aos israelitas desacreditaram-no quase totalmente aos olhos do seu povo. Os territórios que, de acordo com os moribundos acordos de Oslo, ficaram sob administração da AP estão rodeados, quase todos, por colonatos e/ou “check-points” militares israelitas, num verdadeiro “apartheid”, que torna a vida daqueles num verdadeiro inferno. Acrescem, ainda, as expedições punitivas sempre que há um atentado em Israel ou um ataque a colonos judeus, com a demolição de casas dos familiares do(s) atacante(s) e, até, de aldeias inteiras, como se existisse uma culpa coletiva por atos individuais. Há, ainda, a referir a construção de um muro de separação entre o território do estado judaico e a Cisjordânia ocupada e que anexa, na prática, uma franja de território desta, a que acresce o cerco de Jerusalém Oriental por colonatos israelitas. Entre os palestinianos, um executivo de unidade nacional entre a Fatah e o Hamas, que tomou posse em 2014, na sequência de acordo entre as duas partes, acabou no ano seguinte com acusações mútuas. Na prática, há dois governos: um em Gaza, liderado pelo Hamas, e outro na Cisjordânia, dirigido pela Fatah, que goza do reconhecimento internacional.

Entretanto, em Israel, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e a sua coligação ultradireitista, para além do reforço da ocupação nos territórios palestinianos, fizeram aprovar, no Parlamento, uma emenda constitucional que declara o país como “estado judeu”, o que significa, na prática, tornar os palestinianos que aí vivem (os chamados árabes israelitas), quase 1/5 da população residente, e outras comunidades em cidadãos de segunda. Em novembro, após mais uma operação punitiva em Gaza, o governo acordou um cessar-fogo com o Hamas, algo que levou à saída de alguns ministros da extrema-direita, em protesto contra a decisão. Um mês depois, acossado pela justiça, que investiga casos de corrupção em negócios onde esteve envolvido, o primeiro-ministro convocou eleições gerais para abril. Num quadro partidário sempre muito mutável e fragmentado, devido a um sistema de proporcionalidade pura a nível nacional, e marcado por grandes índices de personalização das lideranças políticas, surgiram novos realinhamentos partidários, tanto à direita como ao centro e à esquerda. Com o “campo da paz” bastante enfraquecido, é difícil que do ato eleitoral saiam grandes avanços para uma solução justa e satisfatória do drama palestiniano. As políticas israelitas dos últimos anos têm contribuído para tornar cada vez mais difícil a solução de dois estados, defendida pela ONU e pela maioria da comunidade internacional. Entretanto, a defesa de um único estado, até aqui circunscrita a muitos palestinianos e a alguns setores da esquerda israelita, passou a ser também defendida à direita. Só que, enquanto os primeiros defendem um estado bicomunitário ou binacional em todo o território da Palestina (Israel, Cisjordânia e Gaza), com direitos iguais para todos, os segundos defendem a anexação da Cisjordânia, mas não de Gaza, já que, mesmo concedendo a cidadania israelita aos palestinianos residentes na primeira, o país continuaria a ter uma maioria judaica. No que se refere à política regional, Israel não interveio no conflito na Síria, preferindo assistir, no “camarote”, à destruição de um dos seus mais encarniçados inimigos, embora preferisse a queda de Assad, dado o seu apoio ao Hezbollah. Por isso, neste momento, os interesses do estado judaico na região coincidem com os da Arábia Saudita e seus aliados, já que o Irão é, para ambos, o inimigo a abater. Uma observação da relação de forças, a nível internacional, sobre a questão palestiniana mostra que ela nunca foi tão favorável a Israel. Para além do tradicional e incondicional apoio dos EUA (reforçado pela decisão de Trump em mudar a embaixada para Jerusalém e que vai ser seguida por outros estados) e das principais potências europeias (em especial, o Reino Unido e a França), também outros países que contam na cena internacional estão com o estado judaico ou, pelo menos, não o hostilizam: a Rússia, apesar de aliada da Síria e do Irão, não se manifesta contra ele, tendo Putin e Netanyahu uma excelente relação pessoal; para a China, desde que possa fazer negócios rentáveis com os israelitas, está tudo bem; a Índia, na sua rivalidade com o muçulmano Paquistão, tornou-se um dos grandes aliados de Tel Aviv; o Brasil, com Bolsonaro, deu uma volta de 180º na sua política, até aqui pró-palestiniana; a Arábia Saudita, o Egito e, mesmo, a Jordânia possuem interesses coincidentes com os seus. O apoio da Turquia, do Qatar, do Irão e de outros países sem grande peso na arena internacional, mesmo que completado com os da “rua árabe” e da esquerda ocidental é insuficiente para os palestinianos fazerem valer a sua causa. As coisas não estão fáceis para eles e, infelizmente, não parece que 2019 traga grandes melhorias!

O 3º artigo destas previsões incidirá sobre “A África subsaariana”.

Artigo de Jorge Martins para esquerda.net

Sobre o/a autor(a)

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra
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