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Uma jornada para o inferno do Estado Islâmico

A história de uma das poucas mulheres do Ocidente a conseguir voltar após aderir ao grupo extremista. Artigo de Kim Willsher, Carta Capital.
Ao ajudar imigrantes nos subúrbios de Paris como assistente social, Kasiki decidiu converter-se ao Islão por acreditar que isso lhe preencheria o vazio.Foto Tribuna do Norte (TN)

Sophia Kasiki é uma das poucas ocidentais que estiveram na capital do “califado” em Raqqa, na Síria, e voltaram para contar a história. Para ela, foi uma viagem ao inferno da qual parecia não haver retorno. “Eu sinto-me muito culpada. Pergunto a mim mesma como poderei viver depois do que fiz, levar o meu filho à Síria”, relatou ao jornal britâncio Observer. “ Odiei aqueles que me manipularam, exploraram a minha ingenuidade, a  minha fraqueza, a minha insegurança. Odiei-me a mim mesma.”

Cerca de 220 francesas estão com o Estado Islâmico no Iraque e na Síria. Há dois anos, só 10% dos que deixavam França para se unir aos jihadistas eram mulheres. Hoje a proporção é de 35% e um terço é de convertidas, como Kasiki. A sua história, Dans la Nuit de Daech (Na Noite do EI), publicada pela Robert Laffont, parece uma trama de suspense.

Odiei aqueles que me manipularam, exploraram a minha ingenuidade, a  minha fraqueza, a minha insegurança. Odiei-me a mim mesma

Com 34 anos, franzina, mas determinada, Kasiki nasceu no Congo-Kinshasa e foi criada numa família católica abastada, com mulheres fortes e independentes. Após a morte da mãe, quando tinha nove anos foi morar com a irmã mais velha perto de Paris, o que lhe provocou uma depressão infantil. Este problema lançou uma longa sombra durante a sua adolescência, uma espécie de “buraco no coração” que o casamento e a maternidade não conseguiram fechar.

Ao ajudar imigrantes nos subúrbios de Paris como assistente social, Kasiki decidiu converter-se ao Islão por acreditar que isso lhe preencheria o vazio, sem contar ao marido que era ateu. A nova fé trouxe-lhe conforto psicológico e a aproximou-a de três muçulmanos dez anos mais jovens, a quem apelidou de Les Petits (os pequenos) e tratava como irmãos menores.

"Sabiam que eu era insegura"

Em setembro de 2014, os três desapareceram para ressurgir na Síria; aí contactavam Kasiki diariamente. Ela considerava-se um elo entre os meninos perdidos e as suas famílias aflitas. Aos poucos, os papéis inverteram-se “Eu julgava que a situação estava controlada, mas  acabei por perceber que eles foram treinados para recrutar pessoas como eu”, disse. “Aos poucos aproveitaram-se das minhas fraquezas. Sabiam que eu era órfã e tinha-me convertido, sabiam que eu era insegura...”

Sophia Kasiki (pseudónimo) teme represálias do "califado".

Em 20 de fevereiro de 2015, Kasiki disse ao marido que viajaria para trabalhar num orfanato em Istambul durante algumas semanas e levaria o filho de 4 anos. Mas seguiu a rota dos jihadistas até o sul da Turquia e da Síria. Instalada no quartel-general do EI em Raqqa, a realidade da vida quotidiana foi diferente do “paraíso” pintado pelos seus amigos. Kasiki recebeu ordem para sair apenas acompanhada e coberta da cabeça aos pés, entregar o passaporte e restringir as comunicações com a família que deixou em França.

Na maternidade dirigida pelo Estado Islâmico, onde devia trabalhar, ficou chocada com as péssimas condições, a indiferença ao sofrimento dos pacientes e a hierarquia que colocava “arrogantes combatentes estrangeiros” no topo e os sírios na base. O apartamento que lhe foi destinado tinha sido abandonado às pressa pelos proprietários sírios, e os seus canários engaiolados serviram como uma metáfora cada vez mais poderosa para o confinamento dela e do seu filho.

Kasiki levou dez dias para despertar do seu “torpor paralisante” e perceber o terrível erro, estimulada pelas mensagens e fotos enviadas pelo marido desesperado. “Eu pedia para voltar. Todos os dias eu dizia que tinha saudade da família e o meu filho precisava ver o pai. No início deram-me desculpas, depois ameaças. Disseram-me que era uma mulher sozinha com uma criança, não poderia ir a parte alguma e se tentasse seria apedrejada ou morta. Tive terror de ser presa e ter de deixar meu filho com eles. Eu falava com ele muitas vezes, para ele ter a certeza que o pai e eu o amávamos, que ele devia ser bom para as meninas, na esperança de que entendesse. que algo de mau acontecesse e ele caísse nas garras do EI ele ouviria a minha voz na cabeça e não e assim não conseguiria matar...”

Seríamos ventres para fazer bebés para o Estado Islâmico

Quando um dos franceses pediu para levar o menino para rezar na mesquita, ela ripostou: “Tire as mãos do meu filho”. A reação foi um soco no rosto. “Eu estava numa cidade estrangeira onde não conhecia ninguém e não falava a língua. Olhei para o meu filho e percebi que cometera o pior erro de minha vida. Tinha de ser forte e fazer o possível para o tirar dali.” Os franceses praticamente prenderam Kasiki e seu filho na madaffa (casa de hóspedes), com outras dezenas de estrangeiras; ela ficou chocada ao ver crianças assistirem às execuções do EI na televisão, enquanto as mães aplaudiam e gritavam. “Elas viam os combatentes como príncipes encantados, homens fortes e poderosos que as protegeriam. A única maneira de sair da madaffa era casar-se com um deles. Seríamos ventres para fazer bebés para o Estado Islâmico.”

No dia seguinte, enquanto os seus carcereiros organizavam um casamento, Kasiki encontrou uma porta destrancada e saiu com o filho. O seu relato da fuga de Raqqa daria para fazer filmes de suspense. Depois de ter sido recebida por uma família local que arriscou a vida para os abrigar, entrou em contacto com combatentes da oposição síria, mobilizados pelo marido em França. Na noite de 24 de abril de 2015, um jovem sírio levou-a de motocicleta, com o filho escondido sob a túnica, até a fronteira turca. Se tivessem sido apanhados, teriam sido todos executados.

Em Paris, Kasiki foi interrogada por oficiais dos serviços secretos, ficou presa dois meses e impedida de contactar a família. Hoje está reconciliada com o marido, mas podia ainda enfrentar acusações de sequestro de criança.

“Fui ingénua, confusa, frágil, mas como é que aqueles rapazes comuns, não muito inteligentes, conseguiram “lavar” o meu cérebro? É uma pergunta que ainda me faço. Sempre me sentirei mal por ter levado meu filho para aquele pesadelo. Agora tenho de impedir outras pessoas de serem atraídas para esse horror. O que posso dizer? Não vão!”

Publicado originalmente na edição 884 da Carta Capital em 26 de janeiro de 2016 com o título "Jornada para o inferno".

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