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"Uma educação consciente e intencional é absolutamente revolucionária"

Para celebrar este Dia Mundial da Criança, o Esquerda.net falou com Joana Lobo, fundadora do projeto Alcateia Family onde publica conteúdos na área da Parentalidade Revolucionária e Igualdade de Género desde 2019. Por Hugo Evangelista.
Joana Lobo.

Para celebrar este Dia Mundial da Criança, falámos com Joana Lobo, fundadora do projeto Alcateia Family onde publica conteúdos na área da Parentalidade Revolucionária e Igualdade de Género desde 2019.

É professora, certificada em Parentalidade e Educação Positivas, mãe de duas crianças e ativista.

Num dos teus textos defendes que "Educar é um ato revolucionário". Porquê?

Eu acho que educar é um ato revolucionário a partir do momento em que começas a refletir sobre o papel da Educação no futuro do nosso planeta e na educação das nossas crianças, nas futuras pessoas adultas que vão habitar o planeta. Nesse sentido, uma educação consciente e intencional é absolutamente revolucionária porque tu não te estás a limitar a educar por inércia, que é um pouco aquilo que eu acho que tem acontecido por desinformação. Felizmente vivemos hoje numa era de informação mas, até agora, até à nossa geração, a educação era feita muito com base naquilo que nos fizeram, que por sua vez era feito com base naquilo que fizeram a quem nos educou. Era uma coisa muito feita de heranças e não intencional nem consciente. A partir do momento em que nós hoje temos acesso à quantidade e qualidade de informação que temos, que começamos a adotar esta tal parentalidade mais informada, e uma vez que “a educação é a arma mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo” nós sabemos que uma educação mais consciente é uma das grandes ferramentas que nós temos à nossa disposição para causar um impacto positivo no nosso futuro. É nesse sentido que eu acho que a educação pode ser a resposta, não a curto prazo obviamente, mas a médio e longo prazo para muitos dos nossos desafios enquanto sociedade.

O que é a Parentalidade Revolucionária e o que a distingue da Parentalidade Positiva?

Quando nós nos focamos nas consequências que cada microdecisão parental tem na vida futura das nossas crianças, nós percebemos que o papel que estamos a desempenhar e que temos em mãos é um trabalho de uma importância brutal e acho que só o facto de termos essa consciência já é uma chave para nós sermos mais intencionais nas nossas escolhas. 

Quando aliamos estas questões todas da Parentalidade Positiva a coisas que para mim sempre foram muito viscerais - preocupações de justiça social, ambientais, etc… - e quando nós conseguimos educar tendo em vista, não só a saúde mental do nosso filho ou da nossa filha, não só a nossa relação com a criança, mas também a forma como se relacionam com todos os outros cidadãos, com o mundo, com tudo o que está a acontecer, quando saímos desta dimensão e adicionamos aqui a variável contexto, um contexto maior, um contexto social, um contexto político, um contexto ambiental, chegamos a uma nova equação e foi por isso que quis criar o conceito de Parentalidade Revolucionária. 

A minha preocupação e o meu foco é a qualidade da minha relação com a minha criança, o vínculo que eu crio com a minha criança, mas também o impacto que esta criança vai ter neste planeta e todas as questões sociais que nos cercam. 

E é aí que surgem as questões sobre Igualdade de Género, que é o tema que mais me apaixona na educação e na vida em geral, e também as questões ambientais, sobre racismo, sobre uma série de temáticas. Para mim é profundamente central que sejam abordadas desde sempre com as nossas crianças, obviamente adaptadas à sua maturidade. Acho que tem que haver esta transparência, esta honestidade.

É do somatório destas coisas todas que surge o conceito de Parentalidade Revolucionária que na sua base é Parentalidade Positiva, na forma como essa relação é nutrida e como essa relação é vista como muito importante para a criação do vínculo, mas é também na forma como essa criança e esta família se vai posicionar face ao mundo e face à nossa sociedade.

Ainda nem nasceram, e as crianças já têm à sua espera uma série de estímulos para começar a diferenciá-las: cor-de-rosa, as fadas e as bonecas para as meninas, e o azul, os foguetões e as bolas de futebol são para os meninos. Muito novas são levadas a encaixar-se neste sistema binário que lhes define a roupa, o corte de cabelo, o tipo de brincadeiras, e mais tarde a sua função na sociedade. Como é que uma pessoa combate tudo isso, sem sair derrotada pelo desgaste e a exaustão que daí vêm?

Primeiro é preciso aceitarmos que por enquanto as nossas crianças vão continuar a ter esses estímulos da sociedade. Nós sozinhos não vamos conseguir, de hoje para amanhã, garantir que os nossos filhos deixem de receber esses estímulos, a menos que a gente os feche numa sala, sem televisão e sem internet (risos). Portanto, primeiro é aceitar que isto vai continuar a acontecer e que nós temos algumas formas de lidar com isso.

Uma delas é através do exemplo que nós damos em nossas casas. Falando no caso de casais heterossexuais, o pai partilha as tarefas e faz uma divisão justa com a mãe? Essa é a primeira grande forma de nós fazermos a diferença para as nossas crianças através do exemplo. No caso de famílias heteronormativas, como é a relação homem-mulher em casa? Como é que funciona? Há uma clara percepção das crianças de que há uma sobrecarga da mulher? 

Vale a pena escutarmos os nossos filhos e percebermos de que forma é que eles sentem esta dinâmica. Temos às vezes respostas interessantes. Tive pela primeira vez, numa turma em que apliquei um questionário deste género, 18 resultados que foram “os pais partilham as tarefas de forma justa”. Eu até fiquei comovida porque normalmente são sempre as mães.

Até em famílias que não têm a mãe presente em casa, é outra figura feminina, uma tia, uma avó. São raros os casos em que é o pai que fica com a maior parte das tarefas domésticas não remuneradas.

Em segundo lugar, eu acredito muito em sermos honestos com as nossas crianças. Por exemplo “Sim, há estereótipos na nossa sociedade” ou “Sim, és um menino e se queres levar as unhas pintadas poderás ouvir comentários” mas depois vamos desconstruir isto. “Achas que faz sentido estes preconceitos?” Não estamos a proibir ou a incentivar, porque se eu incentivar o meu filho rapaz a pintar as unhas sem o alertar para aquilo que a sociedade lhe poderá dar como resposta também estou a colocá-lo numa posição injusta, porque ele vai voltar da escola a dizer “Mãe, disseram-me que isto era de meninas e que eu era isto e aquilo”. 

Portanto, eu acho que esta honestidade deve mesmo acontecer: “Claro que podes filho, é um verniz com uma cor/é uma peça de roupa, mas alerto-te para que ainda há pessoas que hoje em dia acham que isto é de menina”, e deixar a criança tomar a decisão “mas eu acho que isso é um disparate e eu quero mesmo ir assim e estou preparado para o que daí vier”. Até podemos treinar em casa com a criança alguns possíveis argumentos. Vamos pensar em conjunto, vamo-nos preparar e ajudar a criança. Se a criança está confiante e determinada na sua decisão de enfrentar a sociedade, então vamos ajudá-la a ter o repertório de argumentos que a deixem ainda mais confiantes na decisão que está disposta a tomar. Não vai às cegas. Isso é que pode ser contraproducente nesta nossa luta pela igualdade e pela desconstrução da nossa sociedade binária. Nós, às vezes, não os munimos de ferramentas para que eles depois consigam lidar com aquilo que depois a sociedade vai dar como resposta. Não vai ser bom.

Com estas duas ferramentas, de dar o exemplo em casa e da honestidade na maneira como lhes passamos a informação, estamos mais bem preparados para desconstruir tudo isto. E é um trabalho que não termina, pelo menos nesta geração.

Qual é a tua posição de, por exemplo, mostrar clássicos da Disney, que repetem e reforçam muito destas ideias que queremos combater?

Essas histórias existem, tiveram um contexto temporal, tiveram o seu espaço, e eu acho que essas histórias são hoje em dia um excelente ponto de partida para conversas espetaculares. Eu acho que nós não devemos ignorar tudo o que foi feito para trás por não ser “Woke Disney”. Temos filmes da Disney muito problemáticos mas não me parece que apagar a nossa história, apagar o que nos trouxe aqui, seja a resposta. Pelo contrário, são formas de nós começarmos diálogos com as nossas crianças. Os filmes da Disney mais antigos até começam com várias advertências e eu compreendo que haja pais que pensem “Xenofobia? Racismo? Não!” e mudem de filme, mas acho que podem ser excelentes pontos de partida para grandes “brainstormings” em família à hora de jantar que são sempre os meus preferidos. 

No que toca à Igualdade de Género e noutros temas que temos falado, sentes que existe uma evolução positiva em Portugal com as novas gerações?

Eu dou aulas em duas escolas, uma delas é uma escola TEIP (Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária) e nestas escolas eu vejo todos os dias muito mais aquilo que eu acredito ser um espelho da nossa realidade. E aí, infelizmente, ainda não há um salto qualitativo que me pareça estar adequado a 2022. Ainda há aqui um gap muito grande entre aquilo que eu penso, que eu sinto e que eu vejo na minha bolha, nos grupos com quem eu convivo e depois aquilo que ainda é a realidade do nosso país. Ainda hoje oiço meninas de 12 anos na minha escola a dizer “Que horror, uma mulher a conduzir!”. A mulher tem aquele papel na família há gerações e gerações e que é visto como única forma correta e possível de ser mulher. Ainda há muita falta de referências e falta de informação e uma inércia cultural. Quando eu falo em inércia cultural é o “foi sempre assim”, “é assim que nós fazemos”, é o espírito de não questionarmos as coisas porque nós na verdade ao longo da nossa educação não somos convidados a questionar. Assim que entramos na escola nós somos despromovidos de fazer perguntas que não sejam aquelas que estão no teste, e este espírito crítico vai sendo apagado e nós vamos começando a acreditar que “é isto que nasci para ser” e “é isto que eu sou”. Depois vemos pessoas adultas altamente frustradas porque não encontraram espaço para encontrar a sua verdade e foram colocadas em caixinhas desde muito cedo. Estamos ainda muito longe sequer de um vislumbre de uma igualdade de género em Portugal.

Às vezes já vemos essas realidades a mudarem à nossa volta, com pais muito participativos e presentes, com uma divisão justa das tarefas e em alguns casos até a ficar em casa para as mães poderem seguir as suas carreiras, mas no mundo que eu vejo, que tenho tido o privilégio de ver e de fazer parte, isso ainda não é uma realidade de todo. 

A igualdade de género é por vezes visto como um tema mais importante de ser transmitido às raparigas. Concordas?

Compreendo que no mundo de desigualdade de género que assistimos as mulheres são quem tem os seus direitos humanos mais colocados em causa. Mas também sei que o nosso trabalho tem sido apenas em exclusivo com as meninas. Hoje em dia já se aceita uma rapariga que veste de azul e anda de skate e que já não é uma princesa, mas os rapazes ainda só têm uma forma de serem rapazes. 

E isto é uma prisão que felizmente muitas meninas já conseguem sair dela, mas os rapazes não tiveram ainda permissão. Eu acho que é aqui a minha grande luta. Eu não posso querer que os meus filhos se tornem futuros homens responsáveis, respeitadores se eu continuo a dizer-lhes e a sociedade continua a dizer-lhes que eles não podem expressar emoções, que não podem chorar porque isso é de meninas, que não podem gostar da Frozen, que a única emoção que é aceite que eles exprimam é a raiva, que a única forma como eles devem resolver os seus problemas é com violência e não é com abraços.

Felizmente já existem imensas associações e organizações, influencers e outras pessoas que se esforçam diariamente para libertar as meninas dos estereótipos e para garantir que existe esta libertação feminina, para que elas possam ser literalmente tudo o que quiserem ser. Eu sinto que esse trabalho está a ser feito e muito bem feito já por bastantes pessoas. Em Portugal surgiu as "Inspiring Girls Portugal” que vai às escolas públicas com pessoas que dão o exemplo em várias áreas, e que vai dar às meninas repertório. Curiosamente, numa sessão que facilitei na minha escola levámos a Beatriz Gomes Dias, que foi espectacular. Falou sobre crescer mulher negra em Portugal para um público que se  conseguiu relacionar de forma muito fácil com a Beatriz, com as questões que a Beatriz abordou. Portanto, este trabalho está a ser feito e muito bem feito cá, mas sinto que os meninos continuam abandonados nestas questões. Os meninos continuam a não poder dar um abraço a outro amigo. Não é aceitável a violência nem agressão de ninguém para ninguém. Não é só “não se bate nas meninas”, é “não se bate”. E as equipas técnicas não estão preparadas para lidar com estes problemas do recreio. Não têm essa formação.

Não é por não quererem, é por não saberem e estão a tentar fazer o seu melhor. E ao tentar fazer o seu melhor acabam por perpetuar estes aspetos. Isto é obviamente uma generalização que eu estou a fazer, com exceções. As nossas equipas técnicas não estão ainda consciencializadas para estas questões e também é nesse sentido que eu gostava que o meu trabalho evoluísse. Agora que eu estou presente nas escolas e que me apercebo que estes desafios nem se passam tanto na sala de aula mas sim fora da sala de aula, acho que era fora da sala de aula que era mesmo importante haver esta consciencialização. Toda a comunidade educativa devia estar alerta para estes problemas, por exemplo, de violência no namoro. Nem é só com violência física, é com o ver o telemóvel dele e porque ele falou com alguém. Isto acontece não é só de um género para o outro, é de ambos os géneros. Nós temos boca, sabemos falar, vamos treinar a nossa comunicação não violenta, vamos aprender a relacionarmo-nos de uma forma positiva. É preciso trabalharmos na promoção dos relacionamentos saudáveis, independentemente do género. 

Recentemente saiu o livro infantil “Aventureira Marielle e o dia da fotografia”, da Nuna, com uma protagonista negra bem como a própria autora que também é negra. Qual é a importância da representatividade em livros infantis?

Acho que é fundamental e é uma das grandes ferramentas que está ao alcance de todos. A arte e a cultura brindam-nos com essa diversidade. A cultura e a arte nesse aspecto têm um papel fundamental especialmente quando nós ainda conseguimos viver de forma tão segregada. Nós ainda conseguimos saber em que sítios é que encontramos pessoas das várias nacionalidades, das várias cores e vivemos tão afastados das realidades uns dos outros que eu acho que para muitas famílias, nas quais eu infelizmente me incluo, se não for através da arte, através da literatura, através da cultura, não há propriamente grande representatividade no nosso dia-a-dia. Nós ligamos a televisão e não vemos essa representatividade. Portanto a literatura infantil tem um papel fundamental na forma como estes assuntos chegam da forma como podem chegar às nossas crianças.

Cá em casa os meus filhos adoram, por exemplo, a coleção de pequenas biografias “Meninas pequenas, Grandes sonhos” em que falam de personalidades importantes e falam  sobre capacitismo, racismo, feminino … sempre com histórias reais e isto gera sempre conversas interessantes.

Nós vivemos de uma forma em que é tudo tão rápido e o consumo de tudo é tão rápido que nós acabamos de ler o livro e guardamo-lo. Se nós conseguirmos estender esse momento ao máximo e explorá-lo ao máximo acho que ganhamos todos, nós adultos inclusivé. O livro não acaba no momento em que o guardamos. Se for um tema interessante nós tendemos sempre a estender esses momentos para conversas, pesquisas, vamos estudar o país, vamos ouvir a música que aquela pessoa tocou,… acho que dá para tanta coisa e são tão enriquecedores para todos, que eu acho uma mais-valia sempre que nós conseguimos trazer alguns momentos desses de literatura, de cultura, de cinema para casa porque é uma ferramenta extraordinária para nós trabalharmos estas questões.

Por fim, a Joana Lobo deixa-nos algumas sugestões de livros infantis.

O Coelho Que Sabia Ouvir

De Cori Doerrfeld

Editado pela Booksmile

 

Daqui Ninguém Passa

De Isabel Minhós Martins e Bernardo P. Carvalho

Editado pela Planeta Tangerina

 

És Importante

De Christian Robinson

Editado pela Orfeu Negro

 

Uma Grande Família

De Elisenda Roca e Rocio Bonilla

Editado pela Jacarandá

 

A Bondade Cresce

De Britta Teckentrup

Editado pela Edicare

 

Um Dia na Vida de Marlon Bundo

De Jill Twiss e Eg Keller

Editado pela Cultura Editora

 

O Jaime é uma Sereia

De Jessica Love 

Editado pela Fábula

 

Greta e os Gigantes

De Zoë Tucker e Zoe Persico

Editado pela Jacarandá

 

A Rã dos Três Olhos

De Olga de Dios
Editado pela Livros Horizonte

 

Os seguintes livros infantis são aconselhados para crianças a partir dos 7 anos.

Pequenos Livros sobre Grandes Pessoas 6: Nelson Mandela

De Isabel Thomas e Hannah Warren 

Editado pela Fábula

 

Ella Fitzgerald 

De Maria Isabel Sánchez Vegara e Bárbara Alca

Editado pela Nuvem de Letras

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