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Trump: os frutos amargos da globalização

Os projetos antiliberais conservadores opõem-se não só à livre circulação de mercadorias, mas também de pessoas pelo mundo, embora nunca se proponham a controlar os fluxos de capitais. Artigo de José Correa Leite. .
Donald Trump
Foto Gage Skidmore/Flickr

A eleição de Donald Trump marca uma grande viragem na situação mundial, condensando fortes contradições que se acumulam desde a crise de 2008, bem como repercutindo politicamente ao impacto sobre o tecido social de décadas de orientação neoliberal no capitalismo.

No primeiro final de semana de dezembro, as eleições na Itália e na Áustria confirmaram que o eleitorado europeu não está com um humor tão diferente do estadunidense, previamente polarizado pelo Tea Party e pelo movimento encabeçado por Bernie Sanders. Embora na Áustria Alexander Van der Bellen, um independente verde, tenha ganho as eleições presidenciais, Norbert Hofer do neofascista Partido da Liberdade, obteve 46%, no remake de uma eleição em que, em maio, ele obteve 49,65%; metade do país continua polarizado por propostas xenófobas e racistas. No referendo sobre a reforma do sistema eleitoral na Itália, o primeiro-ministro democrata Matteo Renzi, foi derrotado pela oposição tanto da esquerda, com destaque para o progressista Movimento 5 Estrelas de Beppe Grilo, de um lado, quanto pela Liga do Norte, de outro, uma formação de extrema-direita cujo líder Matteo Salvini saudou o resultado eleitoral assim: “Viva Trump, viva Putin, viva la Le Pen e viva la Lega!”. Abriu-se um período de forte instabilidade no país.

Analogias preocupantes

Quando analisamos a eleição de Trump, a analogia mais próxima é a eleição, em 1980, de Reagan, quando Thatcher já era primeira-ministra da Inglaterra – conjunção que alavancou a globalização neoliberal. Agora, os ingleses aprovaram, no plebiscito de junho de 2016, o Brexit, a saída do país da União Europeia, o que levou à substituição de David Cameron por Theresa May como primeira-ministra do Reino Unido. Se Reagan e Thatcher representaram a vitória da liberalização e das políticas econômicas anti-keynesianas e anti-sociais nos dois polos imperiais, Trump agora representa a vitória de uma reação anti-globalização xenófoba e racista, em sintonia com o Brexit, que leva para Washington perigos desconhecidos.

Pode-se afirmar que o Brexit tinha um marco ideológico mais ambíguo, porém o mesmo não acontece com a chegada de Trump à presidência – imprecisamente chamado pela mídia de populista de direita. Ele foi eleito com base em um discurso de ódio, misógino e xenófobo, alimentando todo tipo de preconceito e impulsionando o supremacismo branco nos EUA, com grupos oprimidos sendo responsabilizados pelo empobrecimento de camadas da classe trabalhadora que colhem os frutos amargos da globalização neoliberal. Ao mesmo tempo, setores até agora minoritários no seio da classe dominante catalisam esses sentimentos de revolta para defenderem posições frágeis frente aos setores globalizados e financeirizados do capital. Aqui, as analogias mais próximas são com o cenário trágico dos anos 1930, quando a crise social pós-1929 foi capitalizada pelo nacionalismo conservador de direita, em especial pelas correntes fascistas e, na Alemanha, pelo nazismo.

Essas mudanças aceleram o quadro que Pierre Rousset definiu como de “caos geopolítico”. Ele afirma que, frente à crise, aos novos “(proto)imperialismos” e à emancipação das burguesias imperialistas da política (que potencializam a crise ambiental e guerras permanentes), temos um ambiente favorável à fenómenos regressivos, inclusive para a criação de novos movimentos fascistas. Estamos vendo o fortalecimento de movimentos desse tipo por toda parte: o Tea Party nos Estados Unidos, o Aurora Dourada na Grécia, a Frente Nacional na França, o Ukip na Inglaterra, o Partido da Liberdade na Holanda, o Alternativa para a Alemanha etc. A eles se somam movimentos totalitários com referências religiosas como o Estado Islâmico e outros em várias fés e regiões do mundo.

Rousset completa. “Pode discutir-se a definição do conceito de fascismo. Esses movimentos não estão organicamente ligados ao ‘grande capital’, como na Alemanha nazista, mas eles exalam um terror de tipo fascista, inclusive na vida cotidiana. Onde existem, eles ocupam o ‘nicho político” do fascismo – e colocam novos problemas políticos (para nossa geração) de resistência antifascista em larga escala”. Essa é, sem dúvida, uma preocupação de vários setores da população estadunidense depois da eleição de Trump.

Crise da globalização neoliberal

Os ventos globalizantes já vinham refluindo desde a crise de 2008. O comércio internacional era equivalente a 25% da economia nos anos 1960, 32% nos 1970, 38% nos 1980, 43% nos 1990, 55% nos 2000 e 60% na primeira década de 2010. Mas, desde 2012, o comércio internacional tem crescido “apenas” 3% ao ano, menos da metade da taxa dos trinta anos anteriores. E, em 2016, ele deve crescer menos que a economia mundial (1,7% ante 2,2%), o que significa uma tendência desglobalizante no bojo de um quadro geral de estagnação estrutural e duradoura da economia mundial, que segue tão financiarizada, especulativa e volátil como antes da falência do Lehman Brothers em setembro de 2008. Para os setores que apostaram todas as suas fichas em processos e instituições liberalizantes (avanços dos tratados de livre-comércio, OMC, euro e União Europeia…) o horizonte se torna problemático.

A contrapartida da globalização econômica e da financiarização foi o crescimento inédito das desigualdades e diferenças no acesso a direitos e riquezas. O relatório da Oxfam “Uma economia para o 1%” informa que, desde 2015, o 1% mais rico da população mundial tem mais riquezas do que os 99% restantes.

A contrapartida da globalização econômica e da financiarização foi o crescimento inédito das desigualdades e diferenças no acesso a direitos e riquezas. O relatório da Oxfam “Uma economia para o 1%” informa que, desde 2015, o 1% mais rico da população mundial tem mais riquezas do que os 99% restantes. “Em 2015, apenas 62 indivíduos detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas – a metade mais afetada pela pobreza da humanidade. Esse número representa uma queda em relação aos 388 indivíduos que se enquadravam nessa categoria há bem pouco tempo, em 2010. A riqueza das 62 pessoas mais ricas do mundo aumentou em 44% nos cinco anos decorridos desde 2010 – o que representa um aumento de mais de meio trilhão de dólares (US$ 542 bilhões) nessa riqueza, que saltou para US$ 1,76 trilhão. Ao mesmo tempo, a riqueza da metade mais pobre caiu em pouco mais de um trilhão de dólares no mesmo período – uma queda de 41%”. A globalização neoliberal tornou-se, após a crise de 2008, um fenómeno inequívoca e insuportavelmente regressivo, acelerando a concentração de renda nas mãos da elite financeira global.

A prosperidade se concentrou, nas últimas décadas, nas sedes do capital financiarizado, as grandes metrópoles globais, com o campo e as pequenas cidades – os territórios – sendo deixadas para trás. Desde 2007, a maioria da população do mundo vive nas cidades; 40 metrópoles com mais de dez milhões de habitantes concentram grande parte do poder económico e político no mundo. O abismo de riquezas é acompanhado do abismo de valores e perspectivas – como revelaram o Brexit inglês e a eleição norte-americana (como sublinha Andy Beckett). E ele é manipulado por setores conservadores, que – sem se contrapor à financiarização neoliberal – reativam sentimentos nativistas mais presentes no campo e nas pequenas cidades do que nas grandes metrópoles. Porém, na periferia do capitalismo, mesmo enormes metrópoles conformam um “planeta favela” (Davis), com legiões de precarizados expulsos do mundo rural, um terreno fértil para demagogos conservadores.

Mas a globalização avançou também no terreno social e cultural. Em 1970, 5% da população dos EUA tinham nascido fora do país; em 2015, 13% da população tinham nascido em outros países. Cifras similares podem ser encontradas na Europa, oscilando entre um topo de 15% na Áustria e 14% na Espanha e Suécia a 9% na Dinamarca e 8% na Itália. Parte desse deslocamento é consequência do fluxo de refugiados devido a guerras e desastres ambientais, mas a maioria são migrações económicas em busca de melhores condições de vida de gente sem perspetiva do mundo globalizado. Uma pequena minoria se desloca como funcionários de corporações, mas a imensa maioria o faz em condições precaríssimas, arriscando as suas vidas como clandestinos. Ao mesmo tempo, as novas tecnologias da informação e da comunicação elevaram para patamares inéditos as interconexões e trocas culturais, impulsionando um multiculturalismo cosmopolita modulado em parte pela indústria cultural corporativa, em parte pela vivencia mais plural das populações, em parte pelos fluxos de informações e saberes pelas redes sociais. Essa convivência positiva com a diversidade étnica, cultural e sexual, bem como com a emancipação das mulheres gera fortes resistências em setores reacionários, fundamentalistas ou que perderam sua primazia e seus privilégios.

Temos, em consequência, não apenas uma rebelião contra o desemprego e a falta de perspetivas económicas de setores pauperizados, mas também uma revolta de populações brancas racistas contra negros, latinos, asiáticos ou simplesmente estrangeiros. Há igualmente uma  forte revolta masculina e/ou religiosa contra os avanços na libertação das mulheres e dos homossexuais. Há uma revolta contra os elementos progressistas e subversivos que o convívio pacífico entre diferentes carrega – de forma insuportável – para conservadores e reacionário de todos os matizes. Como destaca Paul Mason, trata-se de uma revolta contra os impactos do neoliberalismo – tanto negativos como positivos.

Na ausência do horizonte de progresso, oferecido pelo nacionalismo desenvolvimentista, pela socialdemocracia e pelo comunismo, os derrotados pela globalização e os conservadores estão, gradativamente, forjando novas alianças, alicerçadas no fundamentalismo religioso e no nacionalismo xenófobo. O fenómeno já era visível, antes, no mundo árabe, onde o salafismo se radicalizava e catalisava as esperanças dos órfãos do desenvolvimentismo pan-árabe. Ele crescia, porém, em todas as religiões e em muitas partes, como uma reação ao avanço das desigualdades, do secularismo e dos valores progressistas da vida urbana vinculados ao multiculturalismo e ao cosmopolitanismo de setores afluentes das grandes metrópoles.

É verdade que o projeto Trump tem raízes estadunidenses, profundamente ancoradas no nativismo, no nacionalismo económico e no neoisolacionismo de uma certa tradição republicana, aliada do racismo sulista e do antissemitismo do meio-oeste – corrente que Pat Buchanan procurou manter viva e que Mike Davis chamou de “morto-vivo” (lembrando inclusive que “América Primeiro” foi o lema do movimento isolacionista de 1939-41, que incluía os nazistas norte-americanos). A diferença é que, atualmente, com a ausência de uma oposição de esquerda ou progressista consequente ao neoliberalismo (partidos reformistas de todos os matizes terminaram por aderir a ele…), projetos antiliberais conservadores crescem sem barreiras. Eles se contrapõem não só à livre circulação de mercadorias, mas também de pessoas pelo mundo, embora nunca se proponham a controlar os fluxos de capitais. Abarcando de Duterte nas Filipinas e Modi na Índia, à Marine Le Pen na França e Nigel Farage na Inglaterra, eles ressuscitam a xenofobia e o nacionalismo de extrema-direita, que se pensava enterrados sob os escombros da Segunda Guerra Mundial.

A classe de Davos: financiarização, media e crise da democracia liberal

A globalização neoliberal representou uma concentração inédita de riqueza e de poderes no que Naomi Klein chama “a classe de Davos”, isto é, os segmentos financiarizados e mundializados da classe capitalista, hegemónicos em praticamente todos os países do mundo e fortemente entrelaçados. Para Pierre Rousset “a relação com o território muda; e assim o estado. Os governos já não são, por exemplo, copilotos dos maiores projetos industriais (como foi o desenvolvimento das centrais nucleares por uma década na França) ou das infraestruturas sociais (educação, saúde e assim por diante). Eles devem contribuir para estabelecer as regras universalizando a mobilidade do capital, a abertura de todos os setores aos apetites do capital (educação, saúde, previdência e assim por diante), destruindo o direito social e mantendo a população passiva. Um chefe de estado é um simples mordomo”.

Enquanto os países empobrecem, as corporações não param de crescer. Em 2001, das 100 maiores economias do mundo, 51 eram corporações e 49 países (considerando as vendas das empresas e o PIB dos países). Em 2014, os dados mostravam 63 corporações e 37 governos. E em 2015, segundo a Global Justice Now, este número subiu para 69 corporações e 31 países.

Enquanto os países empobrecem, as corporações não param de crescer. Em 2001, das 100 maiores economias do mundo, 51 eram corporações e 49 países (considerando as vendas das empresas e o PIB dos países). Em 2014, os dados mostravam 63 corporações e 37 governos. E em 2015, segundo a Global Justice Now, este número subiu para 69 corporações e 31 países.

Junto com as corporações, saem beneficiados os seus gestores, os CEO que, mesmo não sendo originalmente proprietários, dirigiram profissionalmente estas empresas na obtenção de superlucros na esfera financeira e se enriqueceram no processo. Trata-se de uma nova camada da grande burguesia financeira, global vitoriosa acima de todas as demais, que recebe remunerações exorbitantes. Uma pesquisa recente do Institute for Policy Studies (IPS) mostra que, nos Estados Unidos, a aposentadoria privada de apenas cem destes alto executivos (totalizando US$ 4,7 bilhões) corresponde à de 116 milhões de norte-americanos mais pobres, incluindo aí grande parte dos negros e dos latinos. Em média, cada um desses executivos ganha US$ 253,088 em aposentadorias por mês.

Mas a classe de rentistas é mais ampla do que apenas a burguesia clássica, proprietária de capital. Ela incorpora os capitalistas tradicionais, mas também altos executivos, artistas e esportistas de destaque, parlamentares, juízes e funcionários públicos que enriquecem com a corrupção, latifundiários, sindicalistas gerindo fundos de pensão, líderes religiosos, ditadores e mafiosos de todas as estirpes (de narcotraficantes e contrabandistas a burocratas chineses ou soviéticos). O rentismo beneficia inclusive parcelas abastadas das classes médias e todos que expropriam setores populares de suas fontes de “riqueza”. A “classe de Davos” integra na mesma rede de interesses a imensa maioria dos detentores de poder económico, político e ideológico do mundo, os 1%, dela excluindo os 99%.

Ao contrário dos países, as fronteiras entre as corporações estão longe de ser evidentes. Um estudo do Instituto Federal de Tecnologia de Zurich das 43.060 corporações transnacionais mostrou, em 2011, um núcleo de 147 superempresas que controlavam 40% da riqueza total da rede. As vinte maiores incluíam – então – o Barclays Bank, JPMorgan Chase e Goldman Sachs, cuja sanha especulativa foi responsável pela crise de 2008. Quatro grupos também controlam as empresas de rating (McGraw-Hill, dona da Standard & Poor’s, Northwestern Mutual, proprietária da Russell Investments, CME Group dona de 90% of Dow Jones Indexes, e o Barclay’s, que controla o Lehman Aggregate Bond Index). Juntas, estas empresas tomam as decisões que ritmam o fluxo de capitais no cassino global e propagam as crises.

Ao mesmo tempo, sete corporações de media controlam boa parte da produção cultural e da comunicação no mundo, operando em escala planetária: GE, News Corporation, Disney, Viacom, Time Warner e CBS, todas norte-americanas, as quais se soma a Bertellsman alemã. Elas operam em estreita associação com as quatro gigantes de tecnologia digital: Microsoft, Apple, Google e Facebook. Abaixo delas, um grupo de vinte conglomerados regionais e nacionais (como a Televisa na América Latina e a Globo e a Abril no Brasil) desdobram a visão de mundo e os valores neoliberais para as culturas locais.

A fusão do capital financeiro globalizado com os grupos formadores de opinião – na classe de Davos – esvaziou a democracia liberal de qualquer sentido forte de escolha, retirando-lhe legitimidade aos olhos de boa parte do povo. Ela transformou as eleições em simples mudança dos gestores das populações e das condições de reprodução do sistema; os grupos políticos que chegam aos governos estão aderidos ao projeto globalitário ou tem que negociar isso com seus agentes como condição para ascender ao núcleo do estado (a “Carta aos Brasileiros”, apresentada por Lula em 2001, é emblemática dessa prática). Ela inclusive constrange os processos eleitorais desde fora dos países, como mostrou o recente caso grego. O “déficit democrático” da União Europeia é tema de debate há já uma década, destacando a erosão da democracia liberal e afastando as populações de uma instituição que não aceita submeter a livre circulação de capitais e mercadorias a nenhum escrutínio democrático. E os legislativos e judiciários também são sequestrados pelo poder do dinheiro, como vemos exemplarmente nos casos brasileiro e norte-americano (onde a Suprema Corte aprovou, em 2010, o financiamento empresarial de campanha virtualmente ilimitado).

A transformação das eleições em alternância de “mordomos”, alimentada pela promiscuidade entre políticos e empresários, parecia afastar qualquer processo de mudança radical que constrangesse o capital financeiro globalizado. Como afirmou em 2011 Dani Rodrik, democracia, soberania nacional e hiperglobalização são fenómenos incompatíveis entre si. E se a esquerda moderada aceitou as regras perversas desse jogo, ignorando o ódio popular que se acumulava contra a desigualdade e a globalização, contra a divisão da sociedade entre ganhadores e perdedores, a direita se preparou para subverte-las. O Brexit e Trump podem ser só os primeiros momentos de uma bola de neve que arraste consigo não apenas a globalização econômica neoliberal, mas também o multiculturalismo e a extensão de direitos. A democracia liberal é limitada, mas ela pode ser superada pela esquerda, ampliando direitos, ou pela direita, negando-os.

A crise do cuidado e da reprodução social

A globalização ampliou horizontalmente o mercado mundial com a incorporação da China e do antigo “bloco soviético”, bem como com a relocalização da atividade produtiva antes concentrada nos países centrais. Ao mesmo tempo, o mercado cresceu verticalmente, criando necessidades artificiais de todo o tipo, além de avançar sobre todo tipo de territórios e bens comuns. Com isso, o mundo daqueles que vivem do trabalho tornou-se mais proletarizado, numeroso e urbanizado do que nunca, tanto em termos relativos como absolutos.

Mas tivemos não o fortalecimento do peso social dos trabalhadores e sim seu enfraquecimento: as novas tecnologias da comunicação e da informação permitem descentralizar os processos de trabalho mantendo o comando da produção centralizado nas grandes corporações. Isso é uma reversão do processo histórico de concentração de trabalhadores em grandes unidades fabris, pela primeira vez descrito por Marx em 1848 e reforçado pelo fordismo. As novas tecnologias permitem agora que uma mesma cadeia produtiva globalizada incorpore o trabalho escravo e o trabalho em equipe pós-fordista altamente qualificado, o trabalho doméstico e a linha de montagem fordista, dirigindo os ganhos para uma corporação global sediada em qualquer parte do mundo e seus acionistas, territorialmente dispersos mas politicamente coesos na defesa da liberdade de mercado e na desregulamentação.

O mundo digital abarca menos de um terço da humanidade, excluindo o restante, e tendo efeitos muito contraditórios nos incluídos – por exemplo, super-exploração ou deslocamento barato, se você é motorista ou usuário do Uber, conforto ou marginalização, se você é um turista que se utiliza do Airbnb ou um clandestino que tenta cruzar uma fronteira vigiada por câmeras.

A conectividade permanente recém-adquirida pela humanidade é uma benção e uma maldição, um elemento de integração, exclusão e fragmentação. Dos sete mil milhões de pessoas no mundo, 2,1 mil milhões usam telefones celulares (embora tenham sido vendidos sete bilhões de aparelhos) e 1,8 mil milhões de pessoas estão no Facebook. O mundo digital abarca menos de um terço da humanidade, excluindo o restante, e tendo efeitos muito contraditórios nos incluídos – por exemplo, super-exploração ou deslocamento barato, se você é motorista ou usuário do Uber, conforto ou marginalização, se você é um turista que se utiliza do Airbnb ou um clandestino que tenta cruzar uma fronteira vigiada por câmeras. Mas nenhum malefício se coloca para os rentistas, a classe dos 1%; o mundo virtual é seu mundo, aquele do cassino global.

Nesse grande mercado, a fragmentação e o aumento da heterogeneidade estrutural do mundo do trabalho tem sido descrito como a transformação do proletariado fordista em um precariado, cuja consciência e organização de classe recua por toda parte. As antigas formas de pertencimento e construção de identidades de classe são, na ausência de grandes experiências de lutas, subvertidas pelo trabalho de sapa cotidiano da sociabilidade mercantil e do consumismo, dos media corporativos e das redes sociais. O senso comum que emerge dessa experiência é o das pessoas transformadas em uma massa de consumidores atomizados em um mercado infinito e sempre mutável, que busca dissolver todos os vínculos.

Mas os seres humanos demandam vínculos significativos; eles investem energia libidinal em identidades sociais e laços associativos. A reprodução social não se dá apenas como relações de interesses, exigindo apoio mútuo e cuidado, que pode ser suprido pela comunidade, pela família ou pelo estado – com um papel central sendo sempre atribuído às principalmente às mulheres. O neoliberalismo, buscando mercantilizar todas as relações, cria um quadro de terra arrasada, que joga bilhões de pessoas na atomização e no desamparo – o mesmo cenário que Hannah Arendt descreveu como aquele que gerou o fascismo na conclusão do seu “Origens do totalitarismo”. Todos aqueles que não podem comprar no mercado habitação, transporte, educação, saúde, previdência ou cultura estão condenados a vegetar na marginalidade e não há redes sociais, “realities shows” e realidades virtuais que supram suas carências.

Se o diagnóstico de Nancy Fraser estiver correto – de que vivemos não só uma crise econômica duradoura da dita economia real e das finanças, mas também nos aproximamos de um colapso da reprodução social análogo ao que se coloca na relação da humanidade com a natureza –, o quadro pode se tornar tão explosivo como aquele enfrentado nos anos 1930. O horizonte global de uma estagnação decenal exigirá uma mudança profunda da organização social da humanidade, em um cenário em que o neoliberalismo destruiu as alternativas antes postas.

Nas lutas adiante, tudo indica que as mulheres, os setores oprimidos e as comunidades serão chamados a jogar um papel tão decisivo quanto os trabalhadores. As classes são heterogéneas e perpassadas pelas opressões de género e raça/etnia. A questão da xenofobia, mais evidente na Europa e EUA, é, em essência, uma questão de racismo – cujo combate vem se tornando central na vida política recente dos Estados Unidos, em especial desde a formação do Black Lives Matter, e dos países europeus, em função do fluxo de refugiados para a região, consequência de intervenções imperialistas no Oriente Médio e Magreb. O ressurgimento das lutas feministas e em defesa dos direitos das mulheres à sobrevivência e mesmo à existência é marcante. Da revolução na Tunísia aos movimentos contra o estupro na Índia, passando pelo Ni Una Menos na Argentina e a Primavera Feminista no Brasil, as mulheres assumem um peso central na luta de classes.  Os setores mais afetados pela crise da produção e da reprodução são as mulheres, negras e negros, indígenas e outros povos/etnias não brancos.

Talvez a melhor síntese da situação histórica em que nos encontramos hoje seja, paradoxalmente, aquela feita por um físico, Stephen Hawking, que, impactado pelo Brexit e pela eleição de Trump e constatando as consequências políticas das desigualdades sociais e da crise ambiental, afirma que “estamos no mais perigoso momento no desenvolvimento da humanidade”.


Artigo publicado no blogue Insurgência. José Correa Leite é membro da direção nacional da Insurgência, corrente do PSOL.

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